Monday, April 30, 2018

O POETINHA DESTA SEGUNDA FAZ PARTE DA SANTÍSSIMA TRINDADE DA POESIA BEAT AO LADO DE MR. GINSBERG E MR. FERLINGHETTI




A BAGUNÇA TODA... QUEM SABE

Subi seis lances de escada
até meu pequeno quarto mobiliado
abri a janela
e comecei a jogar fora
as tais coisas mais importantes na vida

Primeiro, a Verdade, ganindo como um dedo-duro:
“Não! Direi coisas terríveis de você!”
“Ah, é? Não tenho nada a esconder... FORA!”
Depois, Deus, assombrado, corado e choroso de espanto:
“Não é culpa minha! Não sou a causa de tudo isso!” “FORA!”
Depois o Amor, aliciando subornos: “Você não conhecerá a impotência!
As garotas da capa da Vogue, todas suas!”
Apertei sua bunda gorda e gritei:
“Seu destino é um desvalido!”
Peguei a Fé, a Esperança e a Caridade
as três juntas abraçadas:
“Você não vai sobreviver sem nós!”
“Estou enlouquecendo com vocês! Tchau!”

Depois a Beleza... Ah, a Beleza –
Tão logo a levei até a janela
disse: “Você eu amei mais na vida
... mas é uma assassina; a Beleza mata!”
Sem querer realmente atirá-la
desci correndo as escadas
chegando a tempo de apanhá-la
“Você me salvou!” sussurrou
Coloquei-a no chão e disse: “Anda.”

Subi de volta as escadas
procurei o dinheiro
não havia dinheiro pra jogar fora.
Só restava a Morte no quarto
escondida atrás da pia da cozinha:
“Não sou real!” gritou
“Não passo de um rumor espalhado pela vida...”
Atirei-a fora com a pia e tudo, sorrindo
e então notei que o Humor
era tudo que havia restado –
Tudo que pude fazer com o Humor foi dizer:
“Com a janela fora pela janela!”

tradução: Márcio Simões

GREGORY CORSO por PATTI SMITH


Gregory Corso, a flor da Geração Beat, se foi. Colhido para prover a graça do jardim do Papai e todos no céu estão encantados e admirados. Encontrei Gregory a primeira vez na frente do Hotel Chelsea. Suspendeu o casaco e baixou as calças, expelindo expletivos Latinos. Vendo minha cara de espanto, sorriu e disse, “Não estou mostrando a bunda pra você querida, estou mostrando pro mundo”. Me lembro de pensar, sorte do mundo de ser exposto aos glúteos de um poeta de verdade.
E isso ele era. Todos que têm histórias, reais ou embelezadas, das legendárias travessuras de Gregory e de sua caótica indiscrição têm igualmente histórias de sua beleza, remorso e generosidade. Ele me notou de maneira carinhosa no início dos anos 70 porque o espaço em que eu vivia era similar ao dele – pilhas de papéis, livros, sapatos velhos, mijo em xícaras – uma desordem mortal. Fomos parceiros de crimes perturbadores durante leituras de poesia particularmente tediosas em St. Mark. Embora ralhassem conosco com razão, Gregory me aconselhou a espetar com minhas armas irreverentes e a exigir mais desses que se sentam diante de nós se dizendo poetas.
 
E sem dúvida Gregory era um poeta. A poesia era sua ideologia, e os poetas seus santos. Havia sido chamado e sabia disso. Talvez seu único dilema fosse às vezes perguntar, Por que, Por que ele? Nasceu em Nova York, em 26 de março de 1930. Sua jovem mãe o abandonou. O Garoto foi da casa adotiva ao reformatório e à prisão. Teve pouca educação formal, mas sua educação autodidata era ilimitada. Abraçou os Gregos e os Românticos, e os Beats o abraçaram, colocando folhas de louro em seus negros cachos rebeldes. Kerouac o sagrou cavaleiro como Raphael Urso, foi a alegria e orgulho deles e também sua mais provocativa consciência.
Nos deixou dois legados: um corpo de obra destinado a durar pela sua beleza, disciplina e influente energia, e suas qualidades humanas. Era meio Peter Rose, meio Percy Bysshe Shelley. Podia ser um rebelde explosivo, beligerante e desafiador, e ao mesmo tempo ingênuo como um garoto, humilde e cheio de compaixão. Estava sempre querendo se desculpar, compartilhar seus conhecimentos e aberto a aprender. Me lembro de vê-lo sentado ao lado da cama de Allen Ginsberg quando ele estava morrendo. “Allen está me ensinando a morrer”, dizia.
 No começo do verão seus amigos se reuniram para lhe dizer adeus. Sentamos ao lado da sua cama na Horatio Street em silêncio. A noite cheia de estranhas correspondências. Uma filha que ele nunca tinha conhecido. Um mecenas de muito longe. Um jovem poeta aos seus pés. Numa tela sem som, Pull My Daisy, de Robert Frank, divulgado abertamente na TV pública – sem consciência de sua sincronia mística. Imagens dos “Papais”, jovens e loucos, preto e branco. Fotos de Allen afixadas na parede. O modesto quarto dominado pela poltrona de Gregory em toda sua glória surrada. Quantos sonhos pontuados pela fumaça dos cigarros. Ele estava morrendo. Todos dissemos adeus.
 
Mas Gregory, talvez pressentindo a devoção ao seu redor, tomou parte num verdadeiro milagre católico. Levantou-se. E foi reminiscências adentro o suficiente para ouvirmos sua voz, sua gargalhada, e algumas bem-vindas obscenidades. Pudemos escrever poemas e cantar para ele, assistir futebol e ouvi-lo recitar Blake. Ainda ficou aqui o suficiente para viajar até Minneapolis para encontrar sua filha, ser um rei entre crianças, ver outro outono, outro inverno e outro século. Allen o ensinou a morrer. Gregory nos lembrou de como viver e estimar a vida antes de nos deixar uma segunda vez.
 
No fim de seus dias, ainda sofria de um tormento de poeta jovem – o desejo de atingir a perfeição. E na morte, como na arte, vai atingir. A luz fresca derrama. Os garotos da rodovia o guiam. Mas antes de ascender a algum cartonado clarão sagrado, Gregory, sendo ele mesmo, suspende seu casaco, baixa suas calças e conforme expõe seus glúteos de poeta pela última vez, grita, “Ei, cara, beije minha margarida”. Ah Gregory, os anos e pétalas voam.
Bem nos quis. Mal nos quis. Bem nos quis.





JOÃO e JEREMIAS - A PORRA DA HISTÓRIA (um folhetim beat de JR Fidalgo - 11ª de 16 partes)



CAPÍTULO XVIII


Após dois dias sem luz, João finalmente conseguiu arrumar algum dinheiro para solicitar à empresa de eletricidade que fosse feita a religação, o que só aconteceu um dia e meio depois. Quando, por fim, conseguiu ligar novamente o computador, encontrou novos textos de Jeremias em sua caixa postal

Afinal, que sentido havia naquela dissertação sobre bocetas, assunto do último e-mail de Jeremias?  Que lugar aquilo poderia ocupar no enredo da história que Jeremias insistia em querer contar?

A fragmentação dos textos, o frequente descompasso temporal das situações que descrevia, as charadinhas idiotas, tudo isso já tinha virado rotina, quer dizer, João já tinha se conformado com o fato de que, se ia continuar metido naquilo, quem determinava o ritmo era Jeremias, e não ele. Mas aquela história de bocetas… Tudo bem, ele também adorava bocetas, mas e daí?

“E sobre o que é essa história?”

“É difícil explicar.”

“Mas você não tem nem uma vaga ideia do enredo da história?”

“É que tudo ainda está muito fragmentado. Ele muda de assunto de repente, depois retoma um outro assunto que tinha abordado vários e-mails antes. Além disso, vive introduzindo situações novas. É tudo muito caótico.”

“Bem, na verdade, saber do que trata a história que esse tal de Jeremias está querendo contar não tem a mínima importância. O importante aqui para nós é saber como é que você está se sentindo em relação a isso tudo.”

“Eu estou me sentindo perdido, angustiado, mas ao mesmo tempo excitado. Vou da depressão à euforia em fração de segundos. Será que eu sou um daqueles sujeitos com distúrbio bipolar. Afinal, muita gente hoje em dia tem esse negócio aí. Vai ver que eu tenho também.”

“Distúrbio bipolar não está em questão no momento. O que eu estou perguntando é como você vem se sentindo a respeito dessa coisa de seu amigo, que você não via nem tinha notícias há tantos anos, ter reaparecido do nada, através do seu correio eletrônico, dizendo que você precisava escrever uma história que ele queria contar.”

“Eu já disse.”

“Disse o quê?”

“Como eu estou me sentindo. Eu acho que estou pirando. Eu não consigo pensar em mais nada a não ser nessa tal história, aonde ela vai levar, o que significa, quando vai chegar o próximo e-mail do Jeremias, será que o e-mail vai se referir a mais um trecho de algo que já abordou antes ou ele vai começar um novo assunto, será que estou organizando direito a ordem dos textos que ele já me encaminhou ou já mexi e remexi tanto naquilo tudo que a história que estou escrevendo já não é mais a história de Jeremias, mas uma história que eu mesmo estou inventando.”

“João, no telefone, quando você me implorou para eu atendê-lo ainda hoje, você me disse que andava tão obcecado com esse negócio de história que não estava conseguindo fazer mais nada. Explique melhor isso, por favor.”

“É o seguinte, faz quase um mês que eu não consigo trabalhar nos textos que eu já devia ter entregue às pessoas que me contrataram. Para alguns dos meus clientes, eu disse que havia ficado doente, mas já estava melhor e logo terminaria o serviço solicitado. Então eles me deram novos prazos.  Outros, porém, tinham urgência da coisa e simplesmente cancelaram os pedidos e foram procurar outras pessoas para fazer o que eu devia ter feito e não fiz.”

“Você percebe como essa história toda está afetando a sua vida?”

“De que história você está falando, da história do Jeremias ou da minha história?”

“De como a história do seu amigo Jeremias está afetando a sua história, a sua vida. Nem trabalhar você está conseguindo trabalhar. Isso está ficando grave. A minha sugestão, como seu terapeuta, é que você esqueça tudo, delete todos os e-mails do Jeremias que chegarem, finja que esse tal de Jeremias jamais manteve contato de novo, faça de conta que ele morreu e que toda essa coisa de contar história, escrever a história, tudo isso não passou de um surto, um pesadelo que precisa ser esquecido.”

“Não é fácil.”

“O que não é fácil?”

“Fingir que Jeremias já morreu e que a história que ele quer contar nunca existiu.”

“Essa história pelo menos tem alguma coisa que seja interessante?”

“Tem”.

“O que, por exemplo?”

“Bocetas”.


CAPÍTULO XIX

Aconteceu um dia, quando Jeremias limpava as gaiolas das chinchilas. Percebeu, de repente, que tinha de assumir totalmente o que ele era – ou pelo menos assumir totalmente o que ele sentia ser -, justamente para tentar descobrir, talvez pela primeira vez desde que começou a respirar em cima do planeta, quem ele realmente era. Afinal, àquela altura, definitivamente não conhecia aquele sujeito que via toda a manhã no espelho do banheiro, quando acordava naquele lugar.

O primeiro passo nesse sentido era assumir integralmente o seu corpo, isto é, sentir o seu corpo, sentir seus ombros encurvados sem fazer qualquer tentativa para endireitá-los, sentir sua cabeça latejando no ritmo da pulsação do seu sangue dentro das suas veias, sentir seus pulmões se esforçando para captar o máximo de ar possível dentro dos limites mínimos permitidos pela absurda quantidade de cigarros consumidos durante décadas, enfim, sentir, sentir e sentir, por mais angustiante, frustrante e dolorido que isso fosse.

Não tinha a mínima idéia do que aquela súbita necessidade de autoconhecimento, surgida do nada e impregnada pelo cheiro forte do cocô das chinchilas, significava. Mas era melhor do que nada. Sentir-se ao máximo pelo máximo de tempo. Talvez fosse, enfim, uma maneira de fazer alguma coisa diferente e não enlouquecer enquanto estivesse ali.

Como, durante todo o dia, os internos tinham uma extensa programação a cumprir, Jeremias decidiu que iria concentrar seus exercícios de autoconhecimento sensitivo, ou seja lá o que fosse aquilo, no período em que cuidava dos animais da fazenda, tarefa que sempre fazia sozinho, a não ser, é óbvio, pela presença dos bichos.

Naquele verão, todos, de repente, perceberam que eram artistas. Alguns tocavam violão, outros cantavam, outros pintavam, outros começaram a escrever livros, outros descobriram uma súbita habilidade para fazer artesanato…

Para Jeremias, Carlos e Júlio, a coisa começou quando, todas as noites, passaram a se reunir para ouvir a coleção de discos de vinil que Júlio acumulara desde a adolescência. Acompanhados por intermináveis baseados, eles quase sempre varavam as madrugadas e o toca-discos só era desligado pouco antes do amanhecer.

Os três só falavam de música, comiam música, dormiam música, trepavam música, cagavam música. Em pouco tempo, todas as pessoas do grupo também foram contaminadas. Jeremias não se lembrava de quem foi o primeiro, mas alguém compôs uma música e logo depois todos estavam compondo suas músicas, sozinhos ou em parceria com os outros. Com harmonias primárias, as canções falavam, em geral, das várias facetas do delírio calmo que caracterizava aqueles dias quentes e compridos.

Um dia Carlos entrou na casa de Jeremias e, violão em punho, mostrou como, ouvindo um disco ao vivo de Richie Havens, havia descoberto como afinar o violão em mi aberto, ou cebolão, como aquele tipo de afinação era então também conhecida. Jeremias, que tentava aprender as primeiras posições em seu recém-comprado violão, adorou a nova forma de tocar e, no dia seguinte, quando foi até a casa de Carlos, mostrou as três canções que havia composto durante a madrugada passada.

Cris e Mô também entraram numas de compor e já tinham várias canções falando sobre “coisas de mulher”. Júlio, que era o único que ainda não havia composto nada, desencantou quando, numa uma rápida viagem aos Estados Unidos, onde foi comprar roupas indianas para revenda (um bom negócio na época), trouxe de lá uma Fender, “a guitarra do Hendrix”.

Alex apareceu mais ou menos por essa época, cabelos encaracolados, óculos redondos, sorriso fácil. Quando Alex pegou num violão, todos os outros perceberam o que era realmente tocar. Ele tinha o tal do dom, mas seria também a primeira baixa sofrida pelo grupo.

Foi ele que sugeriu que aquelas pessoas formassem uma banda. Foi ele também que encontrou um local, nos altos de um armazém caindo aos pedaços, no centro da cidade, para que a “banda” começasse a ensaiar.  Foi ele também que um dia se trancou nesse lugar e ficou dedilhando sua guitarra velha até que seus dados sangrassem, e só saiu de lá porque Júlio arrombou a porta, arrancou a velha guitarra de suas mãos e o mandou embora.

Depois disso, Alex falava cada vez menos e, sempre que podia, se isolava do resto do pessoal, abraçado ao seu violão, que ficava dedilhando compulsivamente por horas, até que alguém, novamente, o obrigasse, geralmente à força, a se separar do instrumento.

Numa quinta-feira nublada, chegou a notícia. A família de Alex o tinha internado numa clínica psiquiátrica. Nunca mais ninguém teve notícias dele durante aquele e vários outros verões depois.

Nina foi a segunda a pirar. A princípio, ninguém notou nada de diferente. Nina sempre falou muito e sempre gostou de anfetaminas. Portanto, o fato de ela estar falando muito não era algo que chamasse a atenção de ninguém. Só que, aos poucos, as pessoas começaram a perceber que Nina não parava de falar nunca. E ninguém conseguia mais interrompê-la, já que sempre arrumava um jeito de retomar o assunto sobre o qual estava discorrendo e o emendava com outro, outro e outro, e tudo se transformava num monólogo sem fim.

Mas o que realmente preocupou as pessoas foi o surgimento daquelas manchas roxas em várias partes de seu corpo. A princípio, como Nina andava pra cima e pra baixo com um gringo que ninguém conhecia direito, cogitou-se a hipótese do cara estar batendo nela, talvez até com seu consentimento – quem sabe eles curtissem uma de sadomasoquismo ou coisas do tipo.

Um dia, porém, Jon, o gringo que andava com ela, procurou Jeremias e Carlos pra se queixar que não sabia mais o que fazer com Nina. Ela só falava, falava e falava, e agora tinha entrado numas de que ele precisava levá-la para a Bélgica, para apresentá-la aos pais dele. Jon não pensava em voltar para a Bélgica, com ou sem Nina, mas cada vez que ele tentava explicar isso a ela, Nina começava a chorar convulsivamente e dizia que ia se matar.

Jeremias e Carlos perceberam que Jon estava mesmo assustado e, para tranqüilizá-lo, disseram que iriam conversar com Nina.

“Legal, mas como é que a gente vai conversar com ela, se ela não ouve ninguém, só fala?”, perguntou Carlos, logo que o gringo foi embora.

“Sei lá, só que a gente precisa dar um jeito. O problema não é só com o gringo, não. Ela tá deixando todo mundo maluco, já reparou?”, disse Jeremias.

“Tá, velho, tá mesmo. Eu pelo menos fico piradinho. E as manchas? Já reparou como estão ficando cada vez maiores e mais escuras.”

“Pois é, e o que a gente faz?”

Depois de uma consulta geral a todos os envolvidos – e sem que ninguém pensasse em qualquer outra alternativa menos pior -, a decisão comum foi, a contragosto geral, levá-la de volta à casa dos pais.

Nunca mais ninguém teve notícias de Nina, nem aquele e nem em outros verões depois.


Após aquela espécie de iluminação enquanto limpava a gaiola das chinchilas, Jeremias decidiu, não sabia bem por qual motivo, que faria absolutamente tudo o que as pessoas ali faziam. Não perguntaria por que, apenas faria e esperaria acontecer o que tivesse que acontecer, se é que havia alguma coisa para acontecer.

Se as pessoas lá rezavam, ele também rezaria. Se as pessoas lá liam textos bíblicos, ele também leria. Se as pessoas lá passavam boa parte do dia lendo e escrevendo sobre as suas vidas em grossos cadernos, ele também leria e escreveria. Se as pessoas ficavam naquele lugar por um longo tempo, até que ganhassem condições de voltar para o mundo lá fora, ele também ficaria ali o tempo que achassem que fosse preciso para ele.

Jeremias não decidira agir daquela maneira porque acreditasse que aquilo tudo daria algum resultado, mas sim porque entrara numas de fazer tudo exatamente ao contrário do que havia feito, no passado, quando foi, por várias vezes, enclausurado em lugares parecidos com aquele onde se encontrava agora. Talvez, se fizesse tudo ao contrário, os resultados também seriam ao contrário, ou seja, talvez a coisa desse certo.

E, como não tinha absolutamente qualquer outra alternativa, simplesmente começou a deixar a coisa rolar.

Bem, é lógico que Jeremias também cogitou a possibilidade de que estivesse ficando louco de vez, mas, na pior das hipóteses, aquilo serviria para matar o tempo pelo menos durante a semana que começava naquela segunda-feira.

Depois, bem depois, ele veria o que podia ser feito, embora estivesse cada vez mais convencido de que, na situação em que se encontrava, não havia muito o que fazer.


CLIQUE ABAIXO PARA ACESSAR OS CAPÍTULOS ANTERIORES






JR Fidalgo: um jornalista
que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco
pra escrever e um compositor
que não sabe tocar.

(mas que, mesmo assim,
já escreveu três romances
e uma quantidade considerável
de canções ao longo
dos últimos 45 anos)


RUMPOLOGIA (por Alvaro Carvalho Jr)



Caro leitor, cara leitora, saibam vocês que suas nádegas são muito mais importantes do que imaginam. Elas definem seu futuro, escondem seu passado e, incrível, não?,  e entre elas tem um buraco negro que ninguém sabe qual o segredo escondido; exatamente como aqueles buracos negros que os astrônomos tanto falam.

Se vocês ainda duvidam do que escrevo, devem procurar uma rumpóloga, isso mesmo, uma rumpóloga, a pessoa especializada em ler bundas: futuro, passado e presente. Loucura? Pois saibam que elas existem e tem a capacidade de, através da bunda, entrar em contato com seus guias e desvendar o passado e aconselhá-los para o futuro. Na verdade, sua bunda funcionará com uma espécie de parabólica, uma antena com  ligações paranormais e capacidade de se conectar com guias, seja lá isso o que for.

No Reino Unido (tudo sempre acontecer lá...), existe apenas uma rumpóloga (esse é o nome da tal profissão...), que se chama Sandra Amos, uma senhora simpática de 58 anos e que nos últimos 18 tem lido várias bundas. Tudo começou aos 7 anos, quando ainda não lia bundas, mas tinha a capacidade de ver pessoas mortas e receber avisos. Aos 22, trabalhando num escritório, avisou um amigo que ele deveria ir ao médico pois alguma coisa estava errada. Não deu outra: esse amigo foi diagnosticado com câncer da próstata e se curou. Passou a ser seu cliente desde então. Como se pode ver., a bunda, de uma maneira ou outra, é sua especialidade.

"Todos levamos o futuro em nossos traseiros. As nádegas são uma espécie de enciclopédia da vida", diz ela com um ar quase filosófico/bundal. Vai além: "as nádegas da esquerda expressam o passado, contam-nos os sofrimentos e problemas já vividos. Uma espécie de arquivo que levamos para todos os lados. Já o futuro está escondido entre os músculos, a carne e as celulites da nádega direita. No centro temos um buraco negro que ninguém sabe bem o que significa".

Bem, na verdade, qualquer médico sabe muito bem para que serve aquele buraco negro. Ela, talvez por elegância, prefere limitar seus estudos e adivinhações nas partes laterais, normalmente belas e bonitas. E ela até as classifica para definir a personalidade das pessoas que a consultam. Basta abaixar as calças -não é necessário tirar a calcinha ou a cueca- e ela já vem com suas primeiras definições: as redondas e bem acabadas pertencem aos extrovertidos, os mais alegres. As planas, ou tábuas como conhecemos por aqui, são das pessoas com personalidade obsessiva, dominadoras. Se a bunda for plena, cheia e caprichada, pertencem às pessoas arrogantes e exigentes. E, finalmente, aquelas em forma de pera definem as pessoas sensíveis, compreensivas e emocionais.

Pois é, não há bunda que não tenha seu significado e defina a personalidade de seu dono. Segundo a jornalista espanhola Antía  Castedo, a consulta chega aos 45 minutos, independente do tamanho da bunda. Trata-se de um procedimento muito "casto", como ela mesmo define, e higiênico. Depois das calças devidamente abaixadas, vira-se de costas para a médium/anal e inicia-se a leitura da bunda. Vez por outra ela apenas toca suavemente nas nádegas e explica alguma coisa que considere interessante. Tudo dependerá de um dos três guias com os quais ela mantém contato: uma indígena norte-americana originária da Dakota do Norte; um velho médico que usa óculos e uma monja que ela não sabe a origem. Dos três, apenas um entra em contato, depende do paciente, do dia e do momento. Os três guias nunca atuam para analisar o passado ou o futuro de apenas uma pessoas. O que não deixa de ser ótimo, pois a sessão poderia se transformar numa assembleia geral...

Do jeito que a coisa anda, o mundo deverá virar de cabeça para baixo logo, logo. Leitura de bunda não chega a ser coisa muito antiga, tanto que, dizem as más línguas, a mãe de Silvester Stallone, Jackie Stallone, é uma famosa rumpóloga de Hollywood, onde mantém uma clientela seleta e de famosos. Ela deve ter analisado as bundas mais badaladas do planeta, algumas, quem sabe?, que até já ganharam Oscar.

Acredito que, durante a consulta, algumas regras dever ser seguidas. Antes de mais nada o respeito da profissional que está lendo sua bunda. E, em relação à profissional, o respeito também deve ser mantido. Não vá soltar um pum! no momento da consulta. Além de desrespeitoso, fedido e deselegante, pode desconcentrar a rumpóloga e afetar, seriamente, o seu futuro. Portanto, cuidado com a bunda num momento desses (e em outros também...)...inté.


Álvaro Carvalho Jr. é jornalista aposentado
e trabalhou para vários jornais e revistas
ao longo de 40 anos de carreira.
Colabora com LEVA UM CASAQUINHO
sempre aos sábados,
quando esquece que está aposentado.


EDUARDO CAVALCANTI SAÚDA OS 50 ANOS DE "2001" DE MR. KUBRICK EM PRÓXIMA PARADA





Eduardo Rubi Cavalcanti
é jornalista desde a década de 80.
Trabalhou em A TRIBUNA de Santos
e em várias outras publicações. 
É Mestre em Comunicação Social
pela Universidade Metodista de São Paulo
e leciona Jornalismo na Unisantos,
onde cursou sua graduação.
Publica domingo sim, domingo não,
em A TRIBUNA de Santos,
a página PRÓXIMA PARADA,
que reproduzimos aqui.

PLAY IT AGAIN, SAM! (uma crônica publicitária de Carlão Bittencourt)



“Menos é Mais”
(máxima da propaganda)


Nunca gostei da badalação que cerca a propaganda. Acho exagerada. E sem sentido. Afinal, um sapateiro, solitário em seu ofício, agrega tanto valor para a sociedade quanto um publicitário. Com a vantagem de falar menos e não nos deixar a pé.

Outra coisa que me incomoda na profissão é a falsa intimidade. Você já reparou? Qualquer pessoa que atue na área se refere ao publicitário da moda como se tivesse morado com ele. É vergonhoso.

Por essas e outras, evito sempre que possível os grandes eventos do meio. Mas existem alguns a que você precisa ir. Por alguma razão imperativa. Daí, como não tem remédio, remediado está.

A historinha a seguir aconteceu numa dessas ocasiões, no começo dos anos 90. Intimado a comparecer, abotoei o paletó e encarei. Aliás encaramos, pois o Diretor de Criação da agência, Luiz Christino foi junto comigo. E o convescote em questão era a Semana Internacional de Criação, no Hotel Maksoud Plaza, em São Paulo.

Como sempre, gente saindo pelo ladrão. Depois de muito aperto, conseguimos encontrar dois lugares na terceira fileira, a do gargarejo.

O palestrante era Sam Scally, fundador da Scally, McCabe & Sloves. Sócio de ninguém menos do que Ed McCabe, o mítico redator. Portanto, a noite tinha tudo para ser, no mínimo, interessante. Depois da falação de praxe, o colunista que fazia a vez de mestre de cerimônias, finalmente chamou ao palco o presidente da filial brasileira da agência, para apresentar o gringo.

Não vou citar o nome do cidadão por uma questão de respeito. O mesmo respeito que ele não teve pela inteligência da distinta platéia. Vaidoso, louco para aparecer, o publicitário abriu os trabalhos com o seguinte discurso. Sem tirar nem por.

“Sam Scally.
O que dizer de Sam Scally?
Dizer que, ao se unir a McCabe e Sloves,
Sam criou um novo modelo para as agências
de propaganda em todo o mundo?"

"Sam Scally... Sam Scally…
O que dizer de Sam Scally?
Dizer, por exemplo, que nós
da Scally, McCabe & Sloves do Brasil
estamos honrados com sua presença
nesta Semana Internacional de Criação?”

A essa altura você pode imaginar a reação da platéia. Ninguém no imenso salão de convenções do Maksoud Plaza estava acreditando nas pataquaras e baboseiras que ouvia. Mas, como os idiotas não têm tédio, o retardado narcisista continuou:

“Sam Scally... Sam Scally…
O que dizer de Sam Scally?
Dizer que Sam é meu ídolo?
Meu exemplo de profissional?
Não! Isso seria dizer muito pouco."

"Sam Scally... Sam Scally…
O que dizer de Sam Scally?
Faltam-me palavras que possam definir
a imensa importância de Sam Scally
na propaganda moderna."

"Sam Scally... Sam Scally… Sam Scally…
O que mais dizer de Sam Scally?
Senhoras e senhores,
com vocês o homem, a lenda, o mito...
Palmas para Sam Scally!!!”

O silêncio era gritante, constrangedor. Durante alguns segundos, não houve aplauso. Só um silencio profundo. As pessoas estavam chapadas.

De repente, meu amigo Christino não agüentou mais tanta bobagem e, em alto e bom som, resumiu o que todos estavam pensando:

"Vai apresentar mal assim na puta que o pariu!!!"

A platéia veio abaixo.

Carlão Bittencourt é redator publicitário
e cronista. É autor de
"Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo dos salões de bilhar
de São Paulo e escreve às segundas
em LEVA UM CASAQUINHO.

Thursday, April 19, 2018

6 VEZES GILBERTO (3 textos de Flávio Viegas Amoreira, 3 fotos de Marcos Piffer)


GILBERTO MENDES, UM ANO DE SAUDADE


Que ano esse que abriu-se de espanto com tua partida mestre! E que outro conceito dar a esses tempos que não perplexidade, meu amigo sempre tão presente! Tuas obras seguem brilhando em todos continentes: em todo canto onde Cultura não tenha sido ceifada em nome da crise econômica: e quanto nós artistas paulistas temos padecido, Gilberto! Imagine que a tão querida Cadeia Velha voltou ser de novo fechada! Teu Festival Música Nova encantou a todos em Ribeirão Preto tão bem cuidado pela USP: e tua última peça foi merecidamente ovacionada:  aquela linda canção a partir de meu poema “Saudade”, recorda?  Pierre Boulez, seu amigo e maior compositor europeu partiu na mesma semana que tu: combinaram encontro com Stockhausen e nosso Villa Lobos?  Assisti pensando tanto em ti o mais novo Woody Allen: era todo ele sobre anos de ouro de Hollywood: e imagina que Olivia de Havilland e Kirk Douglas estão aqui ainda centenários entre nós nesse mundo doido onde a Grã Bretanha saiu da União Européia, Trump vergonhosamente foi eleito para suceder nosso estimado Obama e o Ocidente parece cada vez mais aquele dos idos da Guerra da Criméia! Sigo esboçando tua biografia e espero contar com depoimentos dos teus amigos Augusto de Campos, Wisnick e Caetano Veloso que tanto sentiram tua partida: Ruy Castro abriu janeiro com uma crônica preciosa sobre tua importância para a brasilidade....quando releio o Eça e Borges teus autores preferidos converso mentalmente da mesma forma que imagino tua euforia com cem anos da Revolução Russa que se aproxima e tão presente em tuas memórias entre Moscou, São Petersburgo e Praga. Agora mesmo leio delicioso livro sobre o Hotel Ritz na tua Plaza Vendôme discorrendo sobre a Resistência Francesa! Com tua amada Eliane reflito melhores caminhos para teu romance ainda inédito “Adeus Partidão” com sua trajetória de militante entre Neruda e Mário Gruber. Já surgiram dois belos filmes a partir do seu legado: um do artista multimídia Márcio Barreto e outro documentário de Cris Sidoti, além do longa metragem de Fernanda Almeida Prado em que você mesmo estrelou! Com quem conversar sobre jazz, São Paulo antiga, fitas de espionagem e as telas de Paul Klee? Gilberto Mendes, nós que aqui estamos de ti nunca esquecemos!

[texto escrito no primeiro ano da partida do mestre Gilberto Mendes]


GILBERTO MENDES, O GIGANTE DESCONHECIDO


Hermético, ininteligível, experimental- elitista: quantos adjetivos aqueles que conhecem “santisticamente” Gilberto Mendes atribuíram a um dos mais importantes compositores e agitadores musicais latino-americanos! Atonalismo, dodecafonia, música concreta, peças performáticas! admirável carinho que conterrâneos de mar do maestro prestam mesmo desconhecendo ou torcendo o nariz para sua mundialmente reconhecida obra.

Gilberto Mendes ao lado de Vicente de Carvalho e Plínio Marcos forma o trio de ouro dos mais influentes artistas nascidos nesse mítico cais de Santos e agora nonagenário sei por que sua maior satisfação seria ter seus CDs ouvidos por uma nova geração mais atenta e ter de volta ao litoral o mais antigo Festival de Vanguarda do Brasil: o Musica Nova. Gilberto comunista, de coragem estética pungente e contestação ‘a  caretice burguesa não combina com babaquice elogiosa de quem carece de argumentação por ignorância de seu legado inquietante. O que caracteriza o criador de “Santos Football Music”, “Beba Coca-Cola” e “Último Tango em Vila Parisi” é essa quebra de paradigmas: é um amigo de rara generosidade e afável na superfície, mas implacável com o pensamento médio e a estupidez reinante. Cresci espreitando Gilberto através de suas galáxias sinestésicas: compondo ao lado dos poetas concretistas, a partir de poemas de Drummond e Hilda Hilst sem supor que um dia seria seu parceiro em tantas canções para coral e “atmosferas sinfônicas”. Imaginar que substituiria Cecília Meireles em “Cavalo Azul” ou teria inserido meu “Chuva no Mar” em “Alegres Trópicos” interpretado pela Osesp! são prova de ousadia ao empenhar confiança num escritor iconoclasta e sua paciência com o aviltamento cultural de nossos tempos de macdonaldização de cérebros. Enfatizo ser comédia de erros tratar como astro pop uma catedral profunda de oceânico cromatismo e sonoridades quântico-cósmicas : seu “Rimsky” é para ser ouvido para quem no mínimo conhece Frank Zappa, sem falar em Pierre Boulez. Gilberto Mendes é um raro lobo da estepe só para os loucos com excesso de sensibilidade. “Escrevo porque esta atividade me proporciona um grande prazer estético. Se o meu trabalho agrada a uma minoria, sinto-me gratificado. Se isso não acontece, não sofro. Quanto ‘a multidão, não desejo ser um romancista popular. Seria fácil demais.” Esse aforismo de Wilde diz tudo: os que estimam o compositor por carinho não são exatamente aqueles poucos que conhecem seu ideal de música. Parece fácil fazer o que ele compôs, mas é abissal a capacidade de entender seus propósitos melódicos e interações de significados.

[Texto escrito para os 90 anos do mestre Gilberto Mendes]

GILBERTO MENDES, ABRIL 2018


Fico imaginar meu amigo nesse mundo de Trump e Temer! Quando já em 2015 de tua partida dizia ver pouca esperança para o Brasil pontificando: “Desagradável, assim chamava nosso tempo, desagradável....” E quanto desagradável esse politicamente correto de tanta dicotomia e ortodoxia burra.... Gilberto que tinha visto maio de 68 em Praga e lá atrás os ecos da revolução tenentista de 1924 com bombardeio dos Campos Elísios paulistas!  Tanto pensei em Gilberto quando assisti “Trumbo” e agora mesmo quando vejo esse lindo filme húngaro “1945”; eu que releio Philip Roth com universo tão próximo do seu vivido na Universidade de Wisconsin ou nos dias de festivais de vanguarda em New York....Mendes que tanto admirava Milos Forman e os irmãos Tavianni e acharia interessante o retorno da atmosfera de Guerra Fria entre Putin e um Ocidente acuado, sem falar no charme de Macron e a inamovível matrona Merckel , - meu amigo que era fã da beleza de Scarlett  Johansson e Naomi Watts o que diria dessas beldades amadurecendo em público!?  Nessa quinta–feira dia 19 a lembrança de Gilberto começa ser resgatada oficialmente por Santos sua terra natal e onde viu brilharem Cacilda Becker, Plínio Marcos e Sergio Mamberti seu amigos.... um centro cultural com seu nome é começo desse movimento de convergência por seu legado. Salve salve Gilberto “Mundos” como diria Décio Pignatari!

visite marcospiffer.com.br


Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Vem sendo estudado como uma das vozes
da pós-modernidade literária brasileira
em universidades americanas e européias.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).