Sunday, July 19, 2015

O BLOG AMIGO DA SEMANA: AS AVENTURAS MUSICAIS DE ANTONIO CARLOS MIGUEL NO G1





  • por Antônio Carlos Miguel

    Mudança de hábitos sonoros

    A notícia nesta semana de que  Neil Young tirou sua obra de todos os serviços de streaming não interromperá a mudança de hábitos. Novas formas de capturar e reproduzir sons continuarão surgindo e nesse processo a melhora da qualidade dos arquivos que o velho Young volta a pedir é inevitável. Na música em tempos de nuvem, as taxas de compressão de Spotify e Apple Music podem ser piores do que as de CDs, enquanto estes, segundo audiófilos, já perdiam para seus antecessores discos de vinil, mas a verdade é que desde o início da era do som gravado apenas uma ínfima parcela de consumidores de música usufrui plenamente dessas tecnologias. Por melhor que seja o LP de vinil de que adianta se rodado num toca-discos meia-bomba ou precário, agulha detonada, caixas de som idem? No streaming, mesmo que nivelada por baixo, a qualidade mantém um padrão que, como nos formatos anteriores, vai depender do estado de tocadores e, principalmente, de suas caixas ou fones de ouvido.
    É inevitável essa transferência para as plataformas de streaming, até um novo modelo surgir. Aceito mesmo não sendo um usuário frequente. Não me adaptei ao Spotify, mesmo que eventualmente abra links nele ou use-o para procurar determinado disco ou artista – a exemplo do que faço com Deezer, SoundCloud… E, após quase três semanas, também não fui conquistado pela Apple Music, que, pelo andar da carruagem, será detonada de meu iTunes assim que expirar o período gratuito. Entre os efeitos colaterais enfrentados,  ela bagunçou a biblioteca que eu tinha armazenada no celular, quase sempre usada no modo aleatório. Desde que aceitei o período de teste da Apple, parece acontecer um conflito com o aplicativo de corridas. Já revirei todas as configurações possíveis mas as músicas param no meio, às vezes nos primeiros acordes. Sigo correndo sem música, enquanto não encontro a solução.
    Apesar da espécie em extinção que sou, ouvinte por obrigação dos CDs que insistem em sobreviver, convivi bem com a primeira fase de MP3 e até hoje mantenho o iPod clássico de 160 GB – quase lotado e com material de diferentes fontes, CDs ripados de minha  discoteca ou de amigos, downloads, trocas de arquivo pela internet… Por sinal, após três anos sem atualização, a Apple lançou na quarta-feira (15) um iPod touch renovado, com recursos que o aproximam do iPhone e de seu serviço de streaming.
    Tocadores digitais oferecem praticidade e mobilidade que se tornam cada vez mais indispensáveis. Aliás, no diário da turnê dos Dukes of September, Donald Fagen revela usar uma playlist de Stravinsky como trilha para dormir, mesmo que “seja realmente doentio acordar no meio de ‘Sagração da Primavera’, é como se estivesse pegando fogo na cama”. Não sei como ele consegue, se bem que botar um disco ou um artista definido pode não atrapalhar no sono, diferentemente do modo aleatório que normalmente uso e, volta e meia, me faz consultar o tocador para saber que música ou qual intérprete é aquele, em meio às cerca de 20 mil faixas arquivadas, muitas de discos que nunca ouvi por inteiro.
    Streaming ou tocadores digitais à parte, os discos listados no sábado passado e os poucos novos que chegaram nesta semana foram devidamente conferidos. Alguns deles com direito a duas ou três audições, o que me permite fazer a CDVDesovada habitual sem remorsos. 

    A italiana Susanna Stivali, cantora e arranjadora de jazz, passeia em “Caro Chico” pela obra do Buarque de Holanda com a participação do próprio (que canta na faixa de abertura a letra original do que virou “Morena dagli occhi d’acqua”) e ainda de Francis Hime (piano, voz e arranjo em “La fidanzata di tutta la cittá”, ou “A noiva da cidade”), Jaques Morelenbaum (cello em “Lei era lei”, ou “Renata Maria”) e Cícero (voz em “Era tanta saudade”). Gravado entre o Rio (no estúdio da Biscoito Fino, que, na última década tem sido a aldeia na qual se abrigam os últimos caciques da MPB) e a Itália, com músicos brasileiros e italianos, o disco produzido por Susanna teve entre os coprodutores o “radiobrasilianista” italiano Max de Tomassi, que há mais de duas décadas faz a rota Roma-Rio (foi ele um dos responsáveis pelo disco em italiano de Renato Russo) e agora também assina algumas das versões. Portanto, predicados não faltam. Susanna é jazzista, não tenta copiar o homenageado e ousa em muito do tratamento que dá  às canções de Chico e parceiros, mas o resultado nem sempre convence. “La costruzione” (versão de Sergio Bardotti e Enzo Jannacci), por exemplo, com andamento ralentado, perdeu muito de sua lógica interna, aquele ritmo mecânico que ilustrava a narrativa da vida do operário interrompida por sua queda da construção. Se jazzisticamente a faixa se sustenta, incluindo os vocalises fluentes de Susanna, muito do engenhoso encanto da composição de Chico se perdeu. “Beatrice”, esta apenas com a voz de Susanna e a harpa de Cristina Braga, também está distante da beleza suprema da “Beatriz” – meu italiano é abaixo de zero para pensar em analisar a versão de De Tomassi, mas, independentemente das palavras, esse clássico dos clássicos de Edu & Chico já teve intérprete mais adequado, a começar pelo primeiro e ainda imbatível registro de Milton Nascimento, então no auge de sua técnica e seus dotes vocais. Antes de passar para o próximo, “Caro Chico” ainda levanta uma questão: por que será que a obra de Chico Buarque nunca entrou nos países de língua inglesa? Ao contrário de, entre outros, Tom, Lyra, Donato, Valle, Milton, Caetano, Gil, Djavan, Ivan, as canções de Chico não foram descobertas por cantores e instrumentistas anglo-americanos. Pior para eles.

    Para prosseguir na praia do jazz, em “Meu samba parece com quê?” (MCK), o pianista Diogo Monzo  mostra suas boas credenciais. Se as versões para “Samba de uma nota só” (Tom Jobim e Newton Mendonça) e o choro “Escorregando” (Ernesto Nazareth) são apenas corretas, em suas composições ele vai além. Monzo assina seis das nove faixas do CD, com destaque para dois temas instrospectivos, “Manhã” e “Branquinha”, com ecos de Bill Evans. Para ouvir mais.
    Outro título que se destaca no lote, “Bené e Iaiá” (Des Arts) é a estreia de Bernardo Diniz e Iara Ferreira, cantores e compositores de, respectivamente, Barra Mansa (RJ) e Itapira (SP) que, radicados no Rio, passaram pela Escola Portátil de Música. Eles são os autores de 12 faixas que andam pelas trilhas da MPB, entre samba, choro, toada e também valsa, fox e bolero. Com produção musical de Jayme Vignoli, do grupo de choro Água de Moringa e um dos professores da Escola, boa parte dos inventivos arranjos são de Bernardo Diniz (também no cavaquinho), que alterna um abrangente leque instrumental, incluindo regional de samba e choro, vibrafone, sopros, cordas e acordeom. A dupla também ganhou o aval de Leila Pinheiro (que canta em “Bolero do Leme”) e Joel Nascimento (bandolim em “Sofredor de carteira”).
    O rock brasileiro dos anos 1980 teve seu momento e seus destaques (Cazuza, Renato Russo, Julio Barroso, Miquinhos Amestrados, Titã iniciais, Lulu idem, etc…), mas não deixou saudades. No século XXI,  tem soado anacrônico, como no disco de estreia do cantor e compositor baiano Cajat (“Noite fria”). Já o da cantora e compositora paraibana Val Donato“Café amargo”, apesar de estacionado em referências similares, ganhou alguns pontos na segunda dose e, mesmo remetendo demais a Cássia Eller, ela se mostra uma compositora acima da média em faixas como “Somente sou” e “Faca amolada”.  
    Ainda nessa praia do rock, o brasiliense Jair Naves, que antes liderou bandas como Okotô e Ludovic, acerta em alguns momentos de “Trovões a me atingir”. É seu segundo disco solo, o canto é algo discursivo e seu timbre lembra o de Bruno do Biquini Cavadão, mas vai ter outra vez. Nova dose que não ajudou muito a Zé Pi em seu "Rizar", que é fluente, competente e só. Já o quarteto Todos Os Caetanos Do Mundo tem nome chamativo, que lhe deve garantir alguma atenção (factóide melhor do que, nesta semana, a foto do Veloso de cuecas no camarim do Festival de Jazz de Montreux ao lado do casal Carla Perez e Xanddy). Reforçado pela boa produção de Chico Neves no disco “Pega a melodia e engole”, o grupo segue, sem grandes saltos, por canções de embalagem MPopB, em trilhas abertas por Marisa Monte, Adriana Calcanhotto ou Arnaldo Antunes (este, participando com sua voz cavernosa na faixa-título). De qualquer, a vertente pop dos "Caetanos" consegue ser mais interessante do que as canções que pisam em clichês do rock dos 1980.
    Dá para piorar bastante, caso do pop-rock contemporâneo da banda Move Over em “Elemento surpresa”(Universal), em repertório na maioria assinado pela cantora Adriane Sant’Ana, que também fez as versões para composições de Eric Silver (americano que já foi gravado por Donna Summer, Cyndi Lauper, Dixie Chicks e, nos últimos anos, por brasileiros como NX Zero, Negra Li, Fiuk, Paula Fernandes, Sérgio Reis...). 
    Pop por pop, melhor ficar com a cantora e compositora paraense Liah Soares que, em “Ao vivo no Theatro da Paz” (Lado Esquerdo), também atira para todos os lados misturando carimbó, balada, Legião Urbana (“Tempo perdido”) e participações de Padre Reginaldo Manzotti, Ivete Sangalo (esta em vídeo no telão), o gaitista Gabriel Grossi e Pinduca. Ecletismo demais, mas ela se garante.
    Para fechar a tampa, dois tributos com intenções e resultados diferentes. O quinteto instrumental mineiro Dibigode faz o que o subtítulo de "Garnizé" promete: lança "Outros olhares sobre a obra de Ataulfo Alves". É quase tudo instrumental, em abordagem distante dos originais do sambista mineiro que, mais de uma década atrás, também ganhou um tributo iconoclasta de Itamar Assumpção. Lançado em vinil (mas disponível para download no site www.dibigode.com), a capa do LP é estilosa. Mais um tributo, em CD e DVD,"Lupicínio Rodrigues por Eduardo Canto e Roberto Menescal" (Canal Brasil) prefere um tratamento fiel a outro sambista e compositor nascido longe da capital do samba urbana. Apenas o ótimo violão de Menesca e a voz idem de Canto. Fiel mas, após as homenagens a Lupe também feitas por nos palcos por Elza Soares e Gal Costa, aguardo curioso a que Adriana Calcanhotto vai lançar em breve. E, por falar em aguardar, na manhã deste domingo, 19 de julho, a pedida para quem está no Rio é o concerto "Trajetórias: Marcos Valle", no Teatro Municipal, com Marcos, banda e orquestra e arranjos sinfônicos do trompetista Jessé Sadoc.

    Créditos imagens: reproduções de capas CDs
  • por Antônio Carlos Miguel

    Raspas viscosas das quase férias

    De volta ao Rio, uma razoável pilha de lançamentos musicais me aguardava, todos listados no fim desse texto, mas (quase) sem comentários por agora. É dever de casa, fica para a semana que entra, mesmo que conhecesse alguns deles. Do clássico“Sticky fingers”, dos Rolling Stones (que em formato físico volta com CD bônus, versões de estúdios alternativas, como a de “Brown sugar” com Eric Clapton, e ao vivo naquele mesmo ano de 1971),  ao novo deJames Taylor“Before this world”, este conferido por streaming. Ou que, nas últimas 24 horas, já tenha me aplicado de outros até então desconhecidos: como a paraibana Val Donato, que, em “Café amargo”, parece Cássia Eller acompanhada pelo Barão Vermelho, o que não é exatamente um elogio, mas ganhará novas doses; pelo menos um bis também garantiu o bragantino Zé Pi com o pop fluente de seu “RIZAR” (sendo que o segundo “R” é grafado invertido e não imagino o que isso quer dizer); assim como“The Chopin Project”, da dupla Ólafur Arnalds & Alice Sara Ott, o primeiro é um músico islandês que começou fazendo heavy metal e agora se juntou à pianista germano-japonesa para tocar e compor a partir do compositor polonês-afrancesado (nascido Fryderyk Franciszek Chopin e que morreu em Paris como Fréderic); por fim, o novo do simpático libanês Mika“No place in heaven”, dificilmente terá lugar em meu lar com seu azeitado e diluído pop.
    Quanto ao clássico dos Stones, além dessa reedição turbinada distribuída no Brasil pela Universal, o grupo lançou especialmente na Apple Music “Sticky fingers Live!", gravado durante o show “secreto” no The Fonda Theater de Los Angeles, em 20 de maio passado. Ou seja, quatro dias antes da abertura oficial de sua “Zip Code Tour” em San Diego, um público de 1.200 felizardos confirmou que os setentões continuam aparentemente com o corpinho musical de sempre. No roteiro de 16 músicas (incluídas as três do encore) estão as dez do “Sticky fingers” de 1971, mas em sequência diferente daquela do disco de estúdio. Disse "aparentemente" pelo fato de nos 40 dias que separam a gravação ao vivo de seu lançamento através da nova jogadora do mercado de streaming podem ter rolado muitos ajustes na pós-produção. Dá vontade de tirar a dúvida ao vivo na turnê que, neste sábado, 11 de julho de 2015, chega à cidade de Buffalo, no estado de Nova York mas colada ao Canadá. 

    Início de julho pode não ser a melhor época para a música em Nova York mas opções culturais não faltam. Rever amigos e lugares, conhecer tantos outros, caminhar a esmo pelas ruas já são bons programas para quem gosta de se embrenhar no cotidiano de cidades e culturas. Nos oito dias que passamos por lá, o verão ameno cooperou, com as temperaturas entre os 25 e 30 graus Celsius e as fortes chuvas anunciadas por aplicativos no celular, páginas de jornais e  apresentadores de TV se transferindo sucessivamente para o dia seguinte, quando muito se resumindo a refrescantes chuviscos. Assim, batemos perna e usamos e abusamos do cartão de uma semana válido em metrôs e ônibus. Livrarias são cada vez mais raras, assim como lojas de discos – quanto tempo passei enfurnado nesses lugares do passado! -, mas sobram galerias e museus. Desta vez, sugestão e passes de acesso do primo George Atty (morador do Village desde os anos 1970), uma das pedidas foi o Whitney Museum of American Art.
    Desde maio passado, ele ocupa um novo prédio (projeto do italiano no Renzo Piano, de cujo terraço fizemos a foto ao lado), agora no renascido Meatpacking District (sem os frigoríferos e o cheiro de carne podre que empesteava o local).  A exposição inaugural, “American is hard to see” (que ficará em cartaz até o fim de setembro) revira o acervo do Whitney, uma ótima coleção da arte produzida nos EUA a partir do início do século XX. Trabalhos emblemáticos de gente como Hopper, Georgia O’Keeffe, Man Ray, Warhol, Pollock, Calder e até o poeta e.e. cummings, cuja obra literária sempre me encantou mas não sabia que também dava suas pinceladas (é dele a tela “Noise number 13”, de 1925, que reproduzi na abertura desse texto).

    Na manhã que antecedeu o voo de volta, por sugestão e convites de mais um amigo, Marcus Ribeiro, outro new yorker de adoção há duas décadas, voltamos ao MoMa, mas com uma missão definida: “Latin America in Construction”. É a exposição sobre arquitetura que atualmente ocupa boa parte do sexto andar do Museu de Arte Moderna, que é  destinado a mostras especiais, sendo que ao lado está outra opção que também compensa a viagem, uma retrospectiva da intrigante obra de Yoko Ono entre 1960 e 1971. Esta faz até o mais bestificado beatlemaníaco perceber que ela é mais do que a viúva de John Lennon ou a mulher que separou o quarteto de Liverpool.
    Com os ponteiros correndo rápidos, a ideia era não "perder tempo" nos andares abaixo, mas, apesar dos extras com Yoko, o bom senso prevaleceu e também ganhamos algum tempo de volta a clássicos, especialmente na sala de Monet com aquelas enormes telas quase abstratas, do velho com a visão detonada viajando pela paisagem do sul da França.
    Mas, voltemos à América Latina em construção entre os anos 1955 e 1982, Brasil no meio e com muito destaque (Niemeyer, Reidy, Lina Bo Bardi, Burle-Marx, Lucio Costa…), que está bem no filme. Nos últimos quatro anos, um time de curadores levantou o trabalho realizado naquele período por arquitetos e urbanistas brasileiros, mexicanos, argentinos, venezuelanos e cubanos. Como diz o texto de apresentação: “A urbanização sem precedentes vivida pela América Latina após a Segunda Guerra se tornou a catalizadora para uma excepcional inovação arquitetônica. (…) Cidades inteiras, de Brasília, a nova capital do maior país da América Latina, à cidade de Guayana, no interior da Venezuela, foram erguidas com velocidade de tirar o fôlego e se tornaram exemplos do design arquitetônico modernista”.
    Sim, politicamente Brasília deu no que deu e pode sintetizar muitas de nossos erros, mas há algo mais e de positivo ali, que ainda deve ser comemorado. Como nos diziam os comentários de um grupo de estudantes e seu professor que faziam o circuito naquela mesma manhã, que cruzaram nossa rota em diversos momentos.  Bons sinais para o início de volta ao cotidiano turbulento brasileiro.

    A lista do que chegou nas duas últimas semanas:
    The Rolling Stones, “Sticky fingers” (Universal)
    “Pete Townshend’s classic ‘Quadrophenia’”, com o próprio líder do Who, mais Alfie Boy, Billy Idol e Phil Daniels, The Royal Philharmonic Orquestra e regência de Robert Ziegler’
    James Taylor, “Before this world” (Universal)
    Mika, “No place in heaven” (Universal)
    Of Monsters and Men, “Beneath the skin” (Universal)
    Move Over, “Elemento surpresa” (Universal)
    Dibigode, “Garnizé (Outros olhares sobre a obra de Ataulfo Alves)” (independente, apoio de Natura Musical)
    Zé Pi, “Rizar” (yb music)
    Diogo Monzo, “Meu sabe parece com quê?” (MCK)
    Val Donato, “Café amargo” (Brasil Deluxe)
    CD/DVD Liah Soares, “Ao vivo no Theatro da Paz” (Lado Esquerdo)
    Susanna Stivali, “Caro Chico” (Biscoito Fino)
    Katya Kazzaz, “Cantares” (MCK)
    Duo Barrenechea, “Brasileiríssimo: encontros (repertório brasileiro para flauta e piano)”  (independente)
    Ólafur Arnalds & Alice Sara Ott, “The Chopin Project” (Universal)
    DVD “Lupicínio Rodrigues por Eduardo Canto e Roberto Menescal” (Canal Brasil)
    DVD “A farra do Circo: Um filme sobre uma geração voadora”, direção de Roberto Berliner e Pedro Bronz (Canal Brasil)
    Crédito fotos: Kati & ACM
  • por Antônio Carlos Miguel

    Querido diário de Miami e Nova York

    Após uma semana entre Miami e Nova York, até o momento, o maior ganho foi uma edição barata, pela Penguin Books, de“Eminent hipsters”, livro que Donald Fagen lançou em 2013. Aficionado que sou pelo grupo Steely Dane por seus discos solo, vinha comendo mosca, ignorando até então a existência desse pequeno, delicioso e amargo volume de crônicas. Entre outros textos, ele rememora sua infância e adolescência num subúrbio de Nova Jersey no início dos anos 1960; revela algumas de suas primeiras paixões musicais (a cantora de jazz Connie Boswell, o compositor de trilhas sonoras Henry Mancini, o músico e “espancador de Tina” Ike Turner);  os livros e os autores de sci-fi que fizeram sua cabeça; e, no que é o ponto máximo, faz um delirante diário da turnê dos Dukes of September (ao lado dos cantores e compositores Michael McDonald e Boz Scaggs) no verão americano de 2012.
    Comprei “Eminente hipsters” no primeiro e único dia livre em Miami, antes de reunião do comitê do Grammy Latino, na única livraria da turística e fútil Lincoln Road, e devorei-o durante as quatro horas e meia de atraso de nosso voo de Miami para Nova York na última quarta-feira (1º de julho). A United Airlines limitava-se a enviar torpedos anunciando o atraso em prestações, de hora em hora, e no balcão da empresa a resposta era de que havia um engarrafamento de pousos e decolagens no MIA. Só que víamos passageiros de outros destinos embarcando no horário, enquanto equipes de seguranças com alguns simpáticos cachorros farejadores faziam uma varredura juntos aos portões de embarque. Sim, perto do 4 de Julho, do Independence Day, a paranoia de ataques terroristas é grande, como também percebemos em estações de trem e metrô de NY, com segurança reforçada e avisos nos alto-falantes pedindo que movimentos suspeitos fossem denunciados.
    Voltando ao livro, o diário de terror na estrada de  “With the Dukes of September” é um roteiro aguardando um diretor. Robert Altman, se estivesse vivo, seria o cara perfeito (como mostrou em seu “Nashville”). Entre os contemporâneos, dariam conta os irmãos Coen ou, melhor ainda, Wes Anderson - durante a turnê, Fagen assistiu a “Moonrise Kingdom” e adorou, sentindo-se como o personagem adolescente deslocado no campo de escoteiros em que se encontra. Em resumo, ele traduz as sensações do que define como Acute Tour Disorder (ATD), algo como Desarranjo Agudo de Turnês: “ATD é caracterizado por um turbilhão de ansiedade e sintomas dissociativos que ocorrem em resposta a eventos traumáticos que ocorrem enquanto uma pessoa está empregada como membro de uma banda de rock na estrada. Os sintomas geralmente aparecem durante o primeiro mês da turnê e continuam até o seu fim, quando então começam os ‘Desarranjos de Pós-Turnê’ (PTD, Post Tour Disorder)”.
    Somemos ao ATD as características de um artista, então aos 64 anos, algo hipocondríaco e paranóico, crítico do mundo contemporâneo e com agudo senso de humor negro e sobram farpas para todos. Fagen não poupa as plateias, às vezes geriátricas (“talvez fosse melhor começar a anunciar os números de bingo no lugar de cantar”); ou então formada pelo que chama de  “TV Babies”, gente que cresceu lobotomizada pela cultura descartável americana e passa os shows pedindo pelos sucessos mais óbvios.  Fagen, McDonald e Scaggs se juntaram no início dos anos 1990 na turnê New York Rock and Soul Revue, para um repertório que misturava hits das respectivas carreiras com clássicos do soul e do rock que fizeram suas cabeças. O trio voltou a se reunir em 2010 e em 2012. O que seria um ganha-pão divertido (“ainda mais pelo fato de eu só cantar em um terço da noite”, comenta ele), vira uma tortura. Fagen também detesta os hotéis e, principalmente, seus hóspedes; muitos dos locais em que tocam (teatros com acústica ruim, clubes decadentes); as longas viagens de ônibus cruzando os EUA; e os caçadores de autógrafos profissionais, como os que o cercam em Boston, em 9 de agosto: “Por alguma razão, é uma cidade sempre cheia deles. A maioria desses caras são traficantes de autógrafos. Eles chegam com capas de álbuns vintage e papéis em branco sofisticados. Frequentemente, eles também querem uma foto para provar a autenticidade. Claro que também se disfarçam de fãs e falam coisas tipo, ‘Ótimo show, Donad’, quando devem ter passado a noite fora do teatro. Normalmente, eu os ignoro ou assino alguma merda. Esta noite, eu queria fulminá-los com um desses canhões de laser e queimá-los na calçada”.
    Apesar da crise de ATD e do clima de desespero descrito por Fagen, essa turnê rendeu um DVD dos Dukes of September (que já tinha visto na Amazon e agora pretendo encontrar em alguma loja de discos, se é que ainda existe alguma em NY). É provável que um segundo livro estradeiro venha por aí, dessa vez com o diário dos shows do Steely Dan (o grupo que ele formou no início dos anos 1970 com Walter Becker) no festival Coachella de 2015, publicado em capítulos na revista “Rolling Stone”.

    A trilha ao fundo é Connie Boswell & The Boswell Sisters, o grupo vocal com suas duas irmãs, que, inspirado pela leitura de “Eminent hipsters”, fui buscar na Apple Music. Sim, assinei o serviço de streaming da Apple assim que entrou no ar, dia 30 de junho, e num primeiro momento não me impressionei muito, nada além do que o Spotify já oferece e não me empolga. Na verdade, o que mais me irrita é ver nas páginas de apresentação só o mainstream, os artistas de sucesso da vez, mas, com alguma sagacidade é possível encontrar de tudo. Fiz mais alguns testes, indo atrás de outros favoritos de Fagen, e encontrei todos: de a “Sagração da primavera” de Stravinsky (que ele punha para tocar antes de dormir) a “Getz meets Mulligan in Hi-Fi”, passando por Zappa, Ennio Morricone… Ou seja, não é difícil apostar que os serviços de streaming vão imperar. E acabar de vez com lojas de disco ou de download.
    Também vão afetar os prêmios de música da forma como existem. Participo destes mas nunca me reconheço nos resultados e sou voto vencido em muitas questões. No Grammy Latino, por exemplo, que me traz anualmente aos EUA desde 1999, discordo da divisão de rock em espanhol e em português. Que artistas brasileiros (e portugueses ou luso-africanos) disputem junto com argentinos, mexicanos, espanhóis, porto-riquenhos, colombianos, etc… Rock é rock seja em inglês, chinês, espanhol, português.  O mesmo deveria valer para categorias exclusivas da língua portuguesa: atualmente, se um mexicano gravar um disco de samba cantando em espanhol não pode entrar na categoria samba/pagode e acaba jogado em algum limbo, provavelmente do saco de gatos que virou o “pop”. Em Buenos Aires, por exemplo, acontece há dez anos um festival de bossa nova, que sempre será bossa nova, mesmo que cantada em espanhol. Aliás, no caso da categoria “Urban”, destinada a rap, reggaeton e similares, essa barreira da língua já foi derrubada, exemplo que deveria ser geral.
    Outro ponto que bato é da categoria de música cristã, restrita a católicos e protestantes (em seus 50 tons e vertentes). Que se abra para todos os credos, algo como “Música com mensagem religiosa”, incluindo também judaísmo, budismo, islamismo, santeria, candomblé, espiritismo e até agnósticos e ateus, desde que com discos temáticos, canções focadas em questões existenciais, de onde viemos, para onde vamos, etc… Afinal, vivemos em países laicos e em momentos de intolerância como os atuais o Grammy Latino daria um bom exemplo ao mundo.

    A manhã de sábado está acabando, é hora de ir botar os pés na rua e acompanhar sem roteiro algum a comemoração do 4 de Julho em Nova York. Ontem, da janela do apartamento onde encontramos Daniel Jobim, a noite era estrelada, como dá para ver na foto que abre esse texto. Hoje, a previsão é de céu nublado, o que talvez atrapalhe o espetáculo dos fogos. Mas, independentemente das condições atmosféricas, do racismo latente, do Tea Party e demais mazelas, americanos têm o que comemorar nessa reta final do segundo mandato de Obama, que conseguiu emplacar seu plano de saúde, está acabando com o anacrônico bloqueio a Cuba. Enquanto isso, as notícias do Brasil não são as melhores, a começar pelo golpe de Cunha na Câmara dos Deputados na questão da maioridade, mas o jogo não acabou. Aliás, parabéns a Marieta Severo por sua fala no último "Domingo do Faustão" (como que também respondendo à minha coluna passada). É por aí, o mundo continua a rodar, como a tinta derramada numa calçada de Manhattan que desenhou essa figura ao lado de meu pé direito.

    Crédito fotos: Reprodução livro de Donald Fagen; ACM & Kati nas imagens de NY e Miami (a vitrine brega e patriota)
  • por Antônio Carlos Miguel

    Arco-íris e outras cores

    A decisão desta sexta da Suprema Corte dos Estados Unidos aprovando o casamento gay em todo o país reforça algo que vinha matutando há algum tempo. Cada vez que leio ou ouço entrevistas de formadores de opinião (recentemente, tanto Ney Matogrosso quanto Marieta Severo) reclamando de um maior conservadorismo no mundo contemporâneo, penso que essa é uma visão distorcida. Não se trata de otimismo versus pessimismo e sim de uma constatação realista e pragmática. Mesmo que não faltem motivos para o horror cotidiano - violência urbana, fanatismo religioso, preconceitos de todos os teores, consumismo exacerbado, esgotamento dos recursos naturais, corrupção generalizada e tanto mais e não necessariamente nessa ordem -, há avanços notáveis em muitas áreas. 
    Avanços que podem gerar reações furiosas ou violentas de gente que até então integrava a chamada maioria silenciosa. Hoje, já não tão grande assim, talvez não mais maioria, daí essa sensação de polarização, ânimos mais exaltados de ambos os lados e de seus 50 tons de vertentes, ainda mais nesses novos tempos de redes sociais, o mundo inteiro conectado, cada um podendo protestar em tempo real. Mas, o debate mais acirrado, o discurso mais reacionário assumido de um lado por tantos e a prática violenta de outro bocado (como os atentados de ontem, 26/6, na praia tunisiana e o de 17 de junho na igreja em Charleston) não são sinais de retrocesso, e sim também consequências  de mudanças, que raramente são fáceis ou pacíficas. 
    Na caso brasileiro (PS: cuja nossa constituição, desde 2013, já assegura o direito agora estendido aos 50 estados dos EUA), se depender de nossa classe política (até prova contrária, eleita pelo povo), com as bancadas conservadoras fazendo muito barulho e, aparentemente, melhor articuladas, a situação pode parecer mais preocupante. Mas o jogo é mais amplo do que o da "politicalhanice".  Podemos, a partir de cada um e conectados.
    A conquista de brothers & sisters do Norte é exemplar - e poderá ajudar a melhorar o nível do debate sobre o tema no Brasil. Até pouco tempo, homossexualismo era crime e/ou tratado como doença em boa parte dos EUA e de mundo afora; agora, casais formados por pessoas do mesmo sexo têm os mesmos direitos, podem usufruir dos benefícios que a Constituição garante aos casados. Se religiões, igrejas, seitas não os aceitam, pior para elas, que só perderão fiéis. Felizmente para os crentes, há diferentes vertentes em cada credo, disputas intestinas, tendências mais ou menos conservadoras. Independentemente disso, num estado laico, uma enorme parcela da população que era descriminada passa a ter direitos iguais.
    Sem religião e hetero de alma gay que sou, comemoro a boa nova. Aliás, K e eu vivemos juntos há décadas, com dois filhos pra lá dos 25, sem cerimônia religiosa ou civil desde que passamos a dividir teto e cama e mesa... Tem funcionado assim, "união estável" (sujeita a instabilidades, como qualquer outra) é o nome, mas podemos chamar de casamento.
    O mesmo vale para a questão das drogas. É cada vez mais aceita a ideia de que a proibição mais prejudica do que ajuda, assegurando os lucros do tráfico e a corrupção. Nos países onde o paradigma foi quebrado, pesquisas têm confirmado que esse é o caminho certo. Há décadas que cientistas e médicos também já garantem que a maconha é menos prejudicial à saúde do que tanto o álcool quanto o cigarro. Daí a "droga" que era a "porta de entrada no caminho sem volta" estar sendo a primeira a se beneficiar da nova visão. Na América, mais de uma década após alguns países europeus, o uso recreativo da cannabis já é legal em nosso vizinho Uruguai e em alguns estados dos EUA  (onde muitos estados permitem o uso medicinal). Tendência que vai se espalhar. Quanto ao exemplo caseiro, nossos fihos, por exemplo, não usam.
    Avanços também nas questões ambientais, mesmo que atropeladas por interesses econômicos de todos os matizes políticos, pela "força da grana que ergue e destrói coisas belas" , como cantou Caetano em Sampa. Enfim, há muito para ser criticado, melhorar, consertar, e não é entregando os pontos que ajudaremos.

    Voltando ao tema principal dessa coluna-delírio-sentimusical, numa semana atípica, sem disco físico algum batendo em minha porta, o  novo de Lira teve muitas chances. Mas, dever de casa feito, "O labirinto e o desmantelo" (Eletrônica Viva) não decolou. Foram seis audições desde o último sábado, entremeadas com trechos de seus trabalhos no Cordel de Fogo Encantado (o grupo no qual lançou três CDs, entre 2001 e 2006). E, mais de uma década depois, Lira continua preso à sua poesia musicada e dramatizada. Mesmo que com embalagem instrumental mais diversificada, a palavra ainda é soberana em composições de pouco fôlego melódico. 
    Para quem me acompanha, o parágrafo acima é uma constatação que joga contra o CD, gravado em São Paulo com produção de Pupillo (o baterista da Nação Zumbi) e participação de, entre outros, Céu. A cantora paulistana também é parceria em algumas das composições, dentre elas, a mais redonda das 11, "Filtre-me", assobiável e leve e divertida em sua letra, crônica de tempos visuais e digitais: "Filtre-me / com lentes digitais / daquelas mais banais / Para um dia fora de foco / todo filtro / todo filtro é santo". Pode ser um caminho no labirinto de Lira.

    Na semana sem CDs - como que dando um trégua antes dos dois dias com centenas de títulos que aguardam, em Miami, na reunião do comitê de revisão do 16º Grammy Latino -, continuam ecoando na mente o belo e musical encontro de Carminho & António Zambujo. Há uma semana, em encontro até inédito e ainda único na Cidade das Artes: a dupla de cantores e seus músicos conterrâneos portugueses (contrabaixo, violões, viola portuguesa, clarinete e trompete) passeando por fado e alguma canção brasileira (Chico Buarque brilhando nas vozes dos dois com suas "Sem fantasia" e, esta em parceria com Tom, "Sabiá"). É como eles que me despeço agora.

    Crédito fotos: Reprodução CD Lira e Kati Pinto (arco-íris em Copacabana e Carminho & Zambujo & banda)
  • por Antônio Carlos Miguel

    Escolhas e confirmações

    Em semana cheia nos palcos cariocas, na quarta-feira (17/6), o dilema era entre o pernambucano Zé Manoel (no Solar de Botafogo) e a jovem fadista Cuca Roseta (na Miranda). Optamos pelo primeiro e, enquanto a previsível seleção de Dunga e Neymar perdia para a Colômbia (e o craque perdia a cabeça), o pianista e compositor provava que chegou para ficar. Era o lançamento de “Canção e silêncio”, e, ao vivo,  no pequeno e aconchegante teatro em Botafogo, suas músicas se mostraram tão ricas quanto no estúdio. No show, dirigido por seu conterrâneo João Falcão,Zé Manoel (piano e voz) foi acompanhado por um trio de luxo – o  produtor de base do CD, Kassin (baixo), ao lado de Domenico Lancellotti (bateria) e Pedro Sá (guitarra) –, e contou com a participação da cantora Isadora Melo em duas músicas, “Volta pra casa” e  “Cinema nacional” (esta de seu primeiro disco, lançado em 2012). Aos 34 anos, com bastante estrada e formação sólida – estudos de piano clássico em sua Petrolina natal, participações em diferentes grupos, graduação em música em Recife, trabalhos como músico da noite e em cruzeiros, apresentações na Europa –, ele está pronto para muito mais. É um compositor original, bem acima da média e com repertório abrangente (confirmado também nas músicas do álbum de estreia incluídas no roteiro); cantor de voz grave e segura; e pianista fluente, tanto em suas baladas melancólicas quanto em seus sambas tortos, abertos a improvisos jazzísticos.

    Outro lançamento, no igualmente pequeno e aconchegante teatro do Oi Futuro Ipanema, dentro da séria Levada, também confirmou as impressões deixadas pela cantora Duda Brack em seu disco de estreia, “É”. A formação e a atitude são de uma banda de rock, inventiva e vigorosa, com destaque para o guitarrista Gabriel Ventura, acompanhado por Yuri Pimentel (baixo) e Barbosa (bateria), enquanto Duda solta a voz como uma Gal na fase “Fa-tal”, abusando da impostação enfática quando poderia dosar melhor seus recursos. Em princípio, ela acerta ao enveredar por repertório inédito (na maioria de compositores novos e contemporâneos), mas a seleção é irregular e algumas letras jogam contra. Para ficar num só exemplo, “… nossa bossa nova virou rock’n’roll / e não há Nelson Motta nem Pasquale / que possa dar jeito” (“Lata de tinta”, de Paulo Monarco e Elio Canelle). Terminada a noite – que na sexta teve participação de Ana Cañas, enquanto neste sábado o convidado será o cantor e compositor Caio Prado, outra boa surpresa de 2015 – fica a ideia de que Duda ainda não é mas tem talento para ser.

    Esta também foi semana com razoável lote de discos físicos, os 12 reunidos na foto ao lado e mais três que encontrei ao voltar pra casa no fim da noite de ontem. Todos 15 devidamente conferidos, até os que ficaram de fora da imagem. E, para o bem e para o mal, aproveitando o mote dos dois shows, foram mais confirmações.
    O recente e  irregular “Estratosférica”(Sony Music), de Gal Costa, por exemplo, agora degustado no velho formato físico, com (bela) capa, encarte e suas letras e ficha técnica, continua irregular no repertório e nos arranjos. Nada que justifique o coral de louvação crítica que o cercou, abaixo do que o título sugere ou do que Gal já fez em sua carreira.
    Enquanto isso, com três anos de atraso, ainda rodou bem “Zé Manoel”(independente), CD de estreia do compositor e pianista que fui ouvir por streaming somente duas semanas atrás, após ter sido sequestrado pelo recente “Canção e silêncio”. Mesmo que não seja tão bem resolvido como disco já apresentava o compositor arrebatador, passeando em suas 14 faixas por um rico leque de gêneros. Toadas, sambas, choros, valsas, baladas atemporais, tudo tratado com liberdade e invenção e tendo como liga o piano insinuante e a voz grave de Zé Manoel. Como deixei esse álbum editado em 2012 passar em branco? Será que esteve entre as centenas de títulos que confiro no Prêmio da Música Brasileira (por streaming) e no Grammy Latino e não me toquei? Na verdade, como lembrei ao resenhar “Canção e silêncio”, há uns cinco anos, Zé Manoel participou de um show de Dulce Quental no Rio e fez bonito. O que só aumenta a minha falha como pretenso farejador de música.

    Bons sinais que não param, como “Continuidade dos parques” (Sony Music), do Dônica, com sua música progressiva brasileira. Sim, confirmando a boa estreia no fim do ano passado num EP digital, a “banda do filho mais novo de Caetano e Paula Lavigne” tem como referências  tanto o rock progressivo quanto os sons sem fronteiras do Clube da Esquina. Reforçando o elo, Milton Nascimento dá seu aval na canção “Pintor” (Zé Ibarra e Tom Veloso). É uma das novas, mas no repertório as melhores continuam sendo as quatro lançadas em 2014, “Casa 180”, “Bicho burro”, “Macaco no caiaque” e “Praga”. Para chegar às 11 faixas eles apelam para vinhetas (“É oficial”, “Retorno para Cotegipe”) e um tema instrumental (“Inverno”) que pouco avançam, sem prejudicar. Com suas melodias sinuosas, algum groove, solos econômicos de orgão  e guitarra, o  grupo avança além dos padrões da MPB e do rock contemporâneos. Os shows de lançamento no Rio acontecem neste fim de semana, no Solar de Botafogo, mas minha agenda está cheia e o programa de hoje, sábado, é conferir o encontro dos portugueses Carminho e António Zambujo (na Cidade das Artes). O domingo também está comprometido, mas, não é difícil cravar que não faltarão oportunidades para conferir Dônica ao vivo.
    Originalidade que, por exemplo, a banda brasiliense Scalene, não exibe em seu competente segundo disco,“Éter” (índependente). É rock contemporâneo, bem produzido mas sem identidade.
    Com mais pretensões, “Abrigação” (independente, abrigacao.com.br), estreia do cantor, compositor, multi-instrumentista e ator paulistano Angelo Mundy, propõe um encontro de música e artes plásticas. Cada uma das 11 faixas ganhou uma interpretação visual (entre pintura, fotografia, desenho, bordado, escultura) reproduzida em folhetos que formam o encarte do disco. Segundo o texto de divulgação, o projeto vai prosseguir em “11 vídeo-canções inspiradas nas obras visuais; e um show entremeado por estímulos cênico-visuais”, previsto para o dia 1º de agosto numa galeria de São Paulo (Olido). Talvez o pacote completo e ao vivo funcione, mas no CD o repertório não se sustenta. É uma MPB quase sempre genérica, ou então muito marcada pelas influências de Mundy. Em três canções (“Talvez seja mesmo tristeza”, “Eu mal te conheço” e “Engasgado”, esta com mais três parceiros) ele envereda pelo beco do canto-fala de Luiz Tatit. Em “Amor nômade” (parceria com Wem) tema e levada remetem a André Abujamra; enquanto o reggae “Bob fala, ouvido ouve” já entrega a mesmice no título.

    Gancho para enfiar dois dos três discos que não entraram na foto mas, na manhã do sábado, tiveram vez no velho tocador de CDs. Ambos corretos dentro do que se propõem mas sem cara.   “Um jeito diferente”(Som Livre), do cantor e compositor Gabriel Guerra, é pop fluente, igual a tantos outros, contradizendo seu título-piada-pronta-para-krípticos. Já “Handmade” (independente / andregimaranz.com), do cantor, compositor e guitarrista Andre Gimaranz, traz competente rock em inglês. Autor de sete (uma delas em parceria com Rodrigo Santos) das dez faixas, Gimaranz segue a linha das canções que completam o repertório. "Murder by numbers", parceria de Sting e Summers, lançada em 1983 pelo Police como o lado B do single de "Every breath you tale", e que depois virou faixa-bônus nas versões em CD e K7 do álbum "Synchronicity"; "I can't stand the rain", sucesso mundial a partir de 1984 na voz de Tina Turner, mas lançada uma década antes pela cantora soul Ann Peebles; e "The gift", esta, de um cantor e compositor irlandês contemporâneo, Glen Hansard, mas que parece beber das mesmas fontes de Gimaranz. O elo com o rock dos anos 1980 é reforçado pela banda que formou no estúdio: Rodrigo Santos (baixo), Kadu Menezes (bateria) e Glauton Campello (teclados), com participação numa faixa do guitarrista Fernando Magalhães.

    Trocando o disco e o gênero, na MPB, “Olívia Hime e amigos” (Biscoito Fino) é coletânea na qual a cantora selecionou duetos em discos que fez e lançou entre 1985 e 2007. Na ação entre amigos estão Chico Buarque, Edu Lobo, Dori Caymmi, Francis Hime, Djavan, Milton Nascimento e Sérgio Santos. Repertório do melhor e nada óbvio, instrumental e arranjos de primeira e uma cantora correta.
    Também sem erro é "Rosil do Brasil" (Zeca Pagodiscos / Universal), do cantor de forró e cordelista paraibano Chico Salles, que reuniu composições do pernambucano Rosil Cavalcanti. Entre elas, a mais conhecida é “Sebastiana” (lançada por Jackson do Pandeiro e regravada com sucesso por Gal Costa), que Salles canta em dueto com Chico César. Outro convidado, Silvério Pessoa divide a interpretação de “Forró de Zé Lagoa” (este, o nome artístico que Rosil usava nas rádios nordestinas).

    O que esperar de um disco de samba aberto por “Ô sorte”? Outros clichês do gênero, que estão presentes em “Mosquito” (Sony Music), estreia do cantor e compositor de mesmo apelido. Além de (em parceria com Tinho Brito e Márcio) se apropriar do bordão de Wilson das Neves, ele ganha o aval de Zeca Pagodinho (voz em “Atalho”) e Xande de Pilares (voz e coautoria, com Gilson Bernini, em “O amor mandou dizer”). No repertório cansado, quase todo de Mosquito (e eventuais parceiros), uma exceção e boa surpresa é “Não enche”, lançada por Caetano no álbum “Livro” (em 1997).

    Para fechar a CDesovada reservei a fila da direita (sem conotação política) ao instrumental brasileiro. Nicho que tem seguidores no mundo todo. Universal e jazzístico como “Fronteiras imaginárias: Colômbia Brasil”(Núcleo Contemporâneo), encontro de Benjamim Taubkin (piano), João Taubkin (contrabaixo) e Sérgio Reze (bateria) com o saxofonista colombiano Antonio Arnedo. Este, com uma sonoridade que pode remeter a Wayne Shorter, também assina quatro dos viajantes seis temas do álbum ("Benjamim", "Antonia", "Hanna" e "Mariana"), em repertório que é completado à altura por duas composições de Benjamim (“Festa” e “Mantendo a fé”).
    Do mesmo selo Núcleo Contemporâneo (em parceria com a gravadora americana Adventure Music), “O piano e a casa” traz nove registros de pianistas que passaram pelo centro cultural Casa do Núcleo, em São Paulo: Tiago Costa, Amilton Godoy, Karin Fernandes, Herculos Gomes, Benjamim Taubkin, Júlia Tygel, Zé Godoy, Fabio Torres e Heloisa Fernandes. Para celebrar mesmo os 18 anos de atividade da gravadora e produtora.
    Outro ótimo pianista, Antonio Adolfo - e um supergrupo, com Marcelo Martins (sax e flauta), Leo Amuedo (guitarra), Claudio Spiewak (violão), Jorge Helder (contrabaixo), Rafael Barata (bateria) e Armando Marçal (percussão) - recria em “Tema” (independente/ AAM Music) dez de suas composições.
    Por fim, terra dos violonistas, o Brasil ganha mais um, o também compositor Daniel Murray. Ele estreia com “Autoral: violão solo” (Maximus), produzido por outro especialista no instrumento, Paulo Bellinati.

    PS: o 15º CD físico da semana, "O labirinto e o desmantelo" (Independente / Eletrônica viva), solo do cantor e compositor Lira (ex-Lirinha, Ex-Cordel do Fogo Encantado), terá novas chances durante a semana que começa.

    Crédito fotos: ACM
  • por Antônio Carlos Miguel

    O adeus a Fernando Brant e os CDesovados da semana

    Ele estreou como nada menos do que “Travessia”, a parceria que, em 1967, também revelou ao mundo Milton Nascimento. Desde então, ao lado de Ronaldo Bastos e Márcio Borges, esteve entre os principais letristas do chamado Clube da Esquina., compondo também com Beto Guedes, Lô Borges, Toninho Horta, Tavinho Moura… A lista de clássicos assinados por Fernando Brant e seus diferentes parceiros é imensa, incluindo entre outros, “Ponta de areia”, “Para Lennon & McCartney”, “Maria, Maria”, “Saudade dos aviões da Panair”, “Canção da América”, “Feira moderna”, “Nos bares da vida”, “Outubro”, “Beco do Mota”, “San Vicente”, “Paisagem da janela”, “Milagre dos peixes”, “Roupa nova”, “Encontros e despedidas”… Além da atividade artística, Brant se envolveu com paixão e lucidez na defesa do direito autoral e era o atual diretor-presidente da UBC (União Brasileira dos Compositores). Nos últimos anos, esteve na linha de frente das discussões sobre o cada vez mais complexo tema nessa era da internet. E se perdeu algumas batalhas, nunca desistiu da luta. Mesmo que Fernando continue para sempre entre nós com suas eternas canções vai fazer muita falta. Essa travessia não tem volta, é só despedida.

    Vida que segue, começo a CDesovada com o prometido no último sábado “O homem bruxa” (independente, diversos apoiadores), de André Abujamra. Cinco doses do CD através da semana não me fizeram mudar de ideia: ele continua sendo um personagem mais interessante do que seus discos. No quinto solo, no qual também comemora a entrada nos 50 anos, o ex-Mulher Negra prossegue em sua world music, que é quase sempre espirituosa, mas também previsível. Mistura de eletrônica, pop, africanismos, arabismos, sons dos Bálcãs (e até mais acima ou ao extremo oriente) embalando letras que alternam pequenas crônicas do mundo contemporâneo, aforismos, tiradas filosóficas. Fórmula que, duas décadas atrás, Abujamra sintetizou em canções lançadas pelo Karnak,  “Alma não tem cor” (regravada no mesmo ano de 1995 por Chico César) e  “O mundo” (esta, regravada em 2004 por Ney Matogrosso & Pedro Luís e A Parede). O novo álbum traz mais exemplos no gênero, incluindo a faixa-título, “Espelho do tempo” (esta com locução do pai, o ator Antonio Abujamra, que morreu em abril passado) e “Magia do vento”. Com exceção de um naipe de cordas em quatro faixas e eventuais participações, ele gravou tudo sozinho, esbanjando a habitual “musica-habilidade” em teclados, baixo, bateria, guitarra, trompete, percussão, sax, cordas… E, ator e performático que também é, no anúncio para o show de lançamento (em maio passado, no Auditório Ibirapuera), Abujamra prometia levitar. Não estive lá nem encontrei comentários sobre o feito, mas trucagens e efeitos especiais estão cada vez mais eficientes e acessíveis.

    Foi semana de poucos títulos físicos, sem grandes voos, apesar de alguns chegarem incensados por formadores de opinião. É o que temos em “É” (independente / dudabrack.com), disco de estreia da cantora Duda Brack. A gaúcha de 21 anos radicada no Rio há quatro (onde cursa faculdade de música) é saudada com trombetas no texto do DJ Zé Pedro: “é artista predestinada ao universo dos grandes”. Em outro momento pitonisa o DJ decreta: “Nada mais será impactante em 2015 em termos de cantora e de disco”. Duas doses seguidas na sexta-feira (12/6) não me convenceram de tanto. Tem alguns méritos, entre eles, uma bela capa e o fato de não se alongar demais, com apenas oito faixas. É uma MPB meio pesada, feita por um grupo com formação de rock: Duda (voz), guitarra (marcante, nas mãos de Gabriel Ventura), baixo (Yuri Pimentel) e bateria (Barbosa), mais o coringa Bruno Giorgi (eventuais vocais, guitarra e baixo). Ela tem algo de Maria Gadú, influência assumida na longa lista de agradecimentos, que inclui outra cantora de perfil similar, Ana Cañas, mas, no quesito intérprete, fica atrás tanto do timbre marcante da primeira quanto da técnica mais apurada da segunda. Diferentemente de ambas, não se arrisca como compositora, e acerta ao investir em repertório contemporâneo, na maioria de artistas também novos como Caio Prado, César Lacerda, Dani Black, Paulo Novaes, Posada, Taís Feijão, Paulo Monarco & Celso Viáfora (este, um dos veteranos da turma) & Elio Canele. “É” não me convenceu, mas, dando mais um crédito ao DJ e dependendo do que acontecer até lá, pretendo conferir o show de lançamento em Ipanema, no próximo fim de semana.  

    Também exagerada é a apresentação de Tony Bellotto (usada no encarte do CD e também no press-release) para“Tá na moda” (Sony Music), estreia do trio carioca La Raleh. O texto é algo bombástico (referências a ícones de rock, punk, reggae e samba) e contraditório. “Se o Sex Pistols afirmava que não havia futuro na Londres sombria de 1977, a Le Raleh garante que ele também não existe no Rio ensolarado de 2013”. Como a ficha técnica também conta, o álbum (gravado e mixado entre julho de 2012 e março de 2013) ficou na geladeira por mais de dois anos. Podia continuar por lá. Qual o futuro para o velho sambalanço-pop entregue pelo trio Le Raleh em seu disco de estreia? São nove canções autorais e uma versão para “Jorge Maravilha” (Chico Buarque) apenas corretas, prosseguindo na trilha aberta por Jorge BenJor. De qualquer forma, contradizendo a previsão de sem futuro, em suas letras, o principal compositor (o cantor João Felipe) abusa do otimismo: “O clima tá no ar, o universo a favor / Está conspirando pro nosso progresso / Sucesso na busca da paz, a harmonia lava a alma / Num banho de luz a inspiração mantém a calma”.

    Cantora do renascido circuito do samba carioca na Lapa,Simone Lial lança seu segundo disco, “E toda dor que sofri será canção” (independente / Alujá). As 12 canções são da dupla Maurício Maturo e Leo Maturo, sendo que uma, “A paixão de um aprendiz”, tem a própria como parceira, e outra, “Um amor tão delicado”, vem com ajuda do produtor do CD, o violonista Fernando Brandão. Esteticamente, segue a linha do chamado de samba de raiz. Ou a “elegância do antigo samba suburbano”, como prefere o autor do bem mais ponderado texto de apresentação, João Cavalcanti, outro representante dessa cena da Lapa carioca no grupo Casuarina. Simone é boa cantora; o instrumental regional (violões, banjo, cavaquinho, percussão, acordeom), correto; mas jogam contra o repertório e as suas letras saudosistas.

    Graças ao seu disco de estreia, “O tempo sou eu” (independente / incentivo da prefeitura de Belo Horizonte), a mineira Carla Gomes foi indicada (junto a Fernanda Takai e a vencedora Roberta Miranda) a melhor cantora na categoria Canção Popular no recente Prêmio da Música Brasileira. As 11 faixas, produzidas e gravadas pelo experiente Liminha, confirmam que Carla é boa e segura cantora, mas limitada a um pop sem identidade. Ela também é autora de cinco canções, duas em parceria com Liminha (“Sabe melhor quem é você” e “Tenho você”), que revelam domínio desse gasto idioma de fronteira entre MPB, pop, reggae. Receita que prossegue no restante do repertório, com destaques para novas de Vinícius Cantuária (“Só eu e mais ninguém”) e do trio de samba-pop Pretinho da Serrinha, Rogê e Gabriel Moura (“Dengo, cafuné e chamego”). Que venha o segundo disco.

    Para fechar a tampa, o selo Kuarup aproveita os 70 anos que Ivan Lins completa no dia 16 de junho para reeditar dois títulos lançados originalmente pela RCA. “Modo livre”(1974) foi seu quarto álbum, com pelo menos dois clássicos  na sua extensa obra, “Tens (Calmaria)”  (com letra de Ronaldo Monteiro) e “Abre alas” (esta, com Vitor Martins, que se tornaria o seu principal letrista nos anos seguintes). Destaque ainda para os arranjos e regências de Arthur Verocai, que, também na guitarra e no violão, liderou um grupo com a base do então Som Imaginário: Wagner Tiso (órgão), Robertinho Silva (bateria) e Luiz Alves (baixo). No ano seguinte, “Chama acesa” marcava a entrada em cena de outro importante parceiro, o tecladista Gilson Peranzzetta, e apresentava mais canções que ficaram, incluindo “Corpos”, “Joana dos Barcos” (ambas com Vitor Martins) e “Palhaços e reis” (com Ronaldo Monteiro). Fãs de Ivan podem festejar.
    Créditos imagens: reproduções




1 comment:

  1. Os links que falam sobre cavaquinho estão com problemas?

    Quando arrumarem, me avisem por favor

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