Tuesday, July 14, 2015

A BOLACHA DO RUY CASTRO E A SAUDADE DE WAGNER PARRA (por José Luiz Tahan)

Muitas são as histórias que vivo na companhia de escritores quando das suas vindas à minha cidade, Santos. Essas passagens acabam gerando alguma intimidade, ou em alguns casos um estranhamento.

 Um autor de quem sou fã, leio cada palavra de seus textos boquiaberto, sempre observando seu jeito e pensando “queria escrever assim”, é o Ruy Castro. Sempre que estou com ele, afasto este pensamento de que ele é um craque, na tentativa de não me tornar um tiéte, que é um tanto desagradável, ainda mais sendo seu anfitrião.

Numa oportunidade recebi o casal Ruy Castro e Heloisa Seixas para uma palestra, um encontro com os seus leitores santistas. Heloisa é também escritora das boas, seus romances têm um estilo próprio, sombrio e real, suas tramas nos guiam por entre os labirintos da nossa própria intimidade, causa um desconforto e um prazer ao longo da leitura.

Já devo ter falado por aqui sobre o dia com os escritores -- uma maratona com direito a entrevistas em vários veículos diferentes, TV, jornal e rádios. Em meio aos compromissos, claro que achamos uma brecha para algo mais divertido, uma gazeteada.

No meio da tarde já tínhamos resolvido boa parte dos trabalhos e propus ao casal um descanso no hotel até o começo da noite, quando partiríamos para o local do papo, o SESC. A Heloisa topou. Já o Ruy veio com uma ideia, a de procurar um bom sebo da região. Uma de suas paixões é a de pesquisar e colecionar imagens, discos e livros. Como importante biógrafo (Nelson Rodrigues, Carmen Miranda, Garrincha...) parte das suas descobertas acontecem nestes ambientes surpreendentes, um caos quase ordenado que os ratos de sebo adoram.
Sugeri o sebo de um amigo, o Wagner Parra, falecido recentemente. A Disqueria é bem peculiar, e está sobrevivendo a ele sob o comando de sua mulher, Cláudia. O Wagner era um DJ figuraça, e nas paredes da loja se vê de tudo, até uma foto do Parra ao lado de Fidel, ambos charutando na companhia do ator Paulo Betti. Vi que Ruy estava em casa, seus dedos treinados dedilhavam as bordas dos discos de vinil e ele evoluía por entre as salas da loja como um cliente antigo, logo percebendo que nada chamava muito sua atenção.

Mas eis que no segundo seguinte, pregado numa das paredes descascadas, ele acha um pequeno tesouro. Para ele, é claro. Eu só via um disco colado na parede, um tanto diferente, pois tinha uma imagem de uma mulher de maiô e ao fundo uma edificação portentosa, com ares art-decô. 

Ruy olhava firmemente para o Picture -- é esse o nome desses discos de vinil que recebiam uma película com uma imagem, tirando o visual clássico, de fundo preto. Perguntou ao Parra: “Quanto você quer naquele Picture?“  O DJ fez que não viu e rebateu, meio sem vontade, “Qual?”. O Ruy apontou para a parede, e o outro disse que aquele não estava à venda. Ruy riu, e arrematou: “Diga quanto você quer nele.”

A partir daí começava um embate entre os dois, coisa que para um livreiro de livros novos soa estranho, porque é diferente a levada. Nos sebos as negociações de preço são parte da graça, de cada lado as partes se defendem e atacam, em busca do melhor negócio, mas o que eu presenciava naquele momento beirava o surreal. Parra estava impassível ao lado da foto do Fidel, dizia que não ia vender, alegando que ia encontar outro exemplar em casa e que me entregaria na livraria. Ruy, de saco cheio, explicava: “Meu amigo, não venho sempre por aqui, vamos lá, seja razoável!”, e eu procurava um buraco pra me enfiar, que papelão!

Saímos batendo a porta, tentei explicar o inexplicável: como o distinto não vende o que está a venda? Naquela noite o papo com os leitores fluiu muito bem, o casal é ótimo contando suas produções, além de falar sobre as rotinas de uma dupla de escritores na vida familiar. Foram embora na manhã seguinte. Depois de nos despedirmos, o sentimento ainda era mal resolvido. Estava contrariado com o meu chapa Wagner Parra. Que situação que passamos na Disqueria!

Bom, o tempo passou, e uns 3 anos depois visitei o sebo com outro amigo, o Chico Marques. A minha memória estalou, não aguentei e soltei: “Wagner, lembra daquele picture que o Ruy Castro queria? Aquele vermelho, que tinha uma imagem assim, assado?” Ele: “Acho que ainda tenho lá em casa... te levo hoje à noite, no Lanches Praia.”

Expliquei que me lembrei do episódio porque iria ao encontro do Ruy num papo que ele faria com livreiros de São Paulo, numa promoção da Alfaguara num hotel. Fechei perguntando o valor para mim, lembro que naquele dia Ruy já bradava valores inimagináveis pela relíquia, Parra disse: “Te falo na entrega.”
Agora uma janela para explicar o que continha aquele vinil, e o motivo do interesse por parte do Ruy. 

Além de sua busca constante de colecionador – e estar em outra cidade é sempre uma oportunidade de se deparar com alguma peça diferente – existia para Ruy uma missão maior: a reunião de material iconográfico com o tema Rio de Janeiro. 

Discos, fotos, livros e peças que juntas formariam um tesouro da cultura carioca na história, que se tornaria uma grande exposição, com direito a livro e tudo mais. 

Aquele vinil que piscava na parede do sebo era sobre o concurso de Miss Brasil dos idos de 1950 que acontecia no Hotel Cassino Quitandinha, em Petrópolis, o qual se via ao fundo, em tons vermelhos. 

À frente via-se a bela moça, de maiô e salto, desfilando no vinil e na parede da Disqueria. 

Se colocássemos para tocar o vinil o que ouviríamos?

 Exatamente os sons da noite em que seria eleita uma miss, aplausos, música ambiente e o narrador, com voz solene e anasalada.
Voltemos ao Lanches Praia, um boteco simpático, com uma empadinha de camarão de se comer de joelhos. O temperamental Wagner Parra caminhava em minha direção, com um plástico leitoso branco debaixo do braço. No seu interior, o tesouro. Perguntei o valor, ele disse: "Depois me dá um livro de presente, você escolhe, tá?"

Duas cervejas e quatro empadinhas depois nos despedimos. Figuraça esse Parra. Faz uma falta dos diabos.

E lá fui eu para o hotel, em São Paulo, com o sovaco ilustrado. Ao final da apresentação, cujo tema era um romance histórico ambientado no Brasil Império, “Era no tempo do Rei”, me aproximei do palco, onde Ruy conversava com uma roda de livreiros e o pessoal da editora Alfaguara. Não disse nada, estiquei o braço, e ele, distraído, disse: “E Santos, tudo bem por lá?” No segundo seguinte ele me olhou firme: “Não me diga que é aquilo...” Que memória meus amigos!

José Luiz Tahan, 41, é livreiro e editor.
 Dono da Realejo Livros e Edições em Santos, SP,
 gosta de ser chamado de "livreiro",
 pois acha mais específico do que
 "empresário" ou "comerciante",
 ainda mais porque gosta de pensar o livro
 ao mesmo tempo como obra de arte e produto.
 Nas horas vagas, transforma-se
 no blues-shouter Big Joe Tahan.

(a ilustração acima é do Seri)

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