por Bruno Carmelo
para ADORO CINEMA
No filme A Idade do Ouro (1930), um homem passeia pela cidade e, sem razão aparente, agride um morador de rua. O diretor Luis Buñuel confessou, mais tarde, que sempre foi perturbado pela presença de mendigos, porque eles o faziam sentir culpado por ter uma boa condição de vida. Este incômodo, de certo modo, constitui o tema de Fome, produção de Cristiano Burlan que analisa a inserção de um morador de rua (Jean-Claude Bernardet) na cidade de São Paulo.
Burlan constrói sua tensão pelo combate de opostos: os longos planos acompanhando o personagem indicam um registro realista, mas a fotografia em preto e branco impecável remete à ficção. Por um lado, moradores de rua reais prestam depoimento à câmera, em tom documental, mas os registros são feitos a uma pesquisadora fictícia (Ana Carolina Marinho) coletando dados para uma tese. Por um lado, transeuntes reais do centro de São Paulo encaram a câmera, revelando o dispositivo, por outro lado, personagens fictícios encontram o protagonista na rua por acaso, e revela-se que ambos já se conheciam no passado – um recurso narrativo altamente artificial.
O real está constantemente brigando com o artifício, e a ficção com o documentário. Esta não é uma fusão de ambos, como se tem visto com frequência no cinema independente brasileiro, e sim uma contraposição conflituosa. Burlan busca colher frutos deste atrito sistemático entre diferentes estéticas e diferentes ferramentas narrativas. Assim, cria cenas de brigas que melhor explicitem a sua mensagem: um casal burguês acorda o protagonista para oferecer restos de comida, mas é rechaçado enquanto revela seu preconceito, de modo um tanto caricato e maniqueísta. Depois, o cineasta transforma o personagem numa versão fictícia do próprio Jean-Claude: o mendigo, batizado de Malbou, também fez estudos acadêmicos em história do cinema. Ora, de que adianta estabelecer ecos reais com a vida dos atores?
A estrutura de Fome é um tanto heterogênea, assim como seu discurso. A presença de um mendigo no papel principal, desprovido de julgamentos moralizantes, poderia indicar um olhar militante, mas o filme pulveriza diversas ideias políticas sem colocá-las em debate. Uma personagem fala sobre a culpa que sente ao ajudar mendigos (porque obtém prazer neste ato), outro discorre sobre o interesse decorrente da “inutilidade” social dos moradores de rua, e um terceiro sugere que mendigos não poderiam ter orgulho de suas posições sociais. São ideias complexas e polêmicas, que necessitariam um olhar dialético para se tornarem relevantes neste contexto.
De certo modo, o confronto entre real e artificial prejudica o andamento de Fome. Os três depoimentos de moradores de rua reais são excelentes, de modo que sabotam a própria ficção: nenhuma cena com o talentoso Jean-Claude Bernardet atinge a mesma força dos trechos documentais. A colagem de linguagens permite ao público comparar e, neste aspecto, a construção fictícia não se sustenta diante da realidade. Mesmo assim, em termos de poesia, Burlan apresenta cenas comoventes, como a dança de Bernardet com seu xale, ou a música com um colega cantada no Minhocão. Por fim, o filme se destaca por sua liberdade de construção e pelo lirismo das imagens, apesar de nunca elevar a representação social ao patamar de sua poesia.
UM FILME INUSITADO E SURPREENDENTE
por João Marcos Flores
para Cinema de Buteco
UM FILME INUSITADO E SURPREENDENTE
por João Marcos Flores
para Cinema de Buteco
Nos primeiros minutos de Fome, acompanhamos o mendigo vivido (com extrema delicadeza e inteligência) por Jean-Claude Bernardet enquanto este caminha lentamente pelas ruas do centro de São Paulo. Nenhum evento particularmente notável ocorre durante um bom tempo, e o que o filme faz é simplesmente obrigar-nos a olhar para um personagem do qual costumamos virar o rosto em nosso dia-a-dia – e o caráter experimental do projeto continuará se revelando ao longo de toda a projeção.
Escrito e dirigido por Cristiano Burlan, o longa mistura as cenas ficcionais do cotidiano desse personagem e entrevistas com verdadeiros moradores de rua que, feitas pela estudante (ficcional) interpretada por Ana Carolina Marinho, tentam investigar, em primeiro lugar, as razões que levam aquelas pessoas àquela situação, mas também os medos, esperanças (se é que ainda resta alguma) e inquietações desses seres humanos vistos por muitos como parasitas dos grandes centros urbanos – uma constatação que o filme faz tanto através de seus atores quanto de um taxista absurdamente preconceituoso que pode ou não (acredito que não) ter tido seu repugnante discurso de ódio flagrado por uma câmera escondida estrategicamente posicionada no banco de trás.
Bem intencionado, mas trilhando uma linha fina que separa o engajamento e a hipocrisia, Fome merece aplausos por reconhecer que, no final das contas, um filme será somente um filme – e que falar sobre o assunto, tentar conscientizar as pessoas ou mesmo oferecer dinheiro ou comida para moradores de rua não mudará em nada a realidade em que eles vivem (e é decepcionante que, em outro momento, o próprio filme seja “pego em flagrante” ao transformar o convite da Marinho a Bernardet de jantar em sua casa como atestado de autenticidade de seu discurso).
Chega a ser curioso, aliás, que o longa só funcione plenamente em momentos em que a arrogância da burguesia branca é flagrada quase que involuntariamente: é óbvio que o propósito do diretor de levar Bernardet para pedir dinheiro no farol é filmar o corredor de janelas fechadas que o espremem em uma espécie de corredor da morte a céu aberto, mas as implicações de colocar um europeu, de classe econômica elevada e representante da elite culta na “pele” de um representante da “escória” – e vê-lo receber desprezo por não estar, naquele momento, trajando vestes condizentes à sua posição social – são múltiplas e aterrorizantes por revelarem o pior de nossa natureza como espécie.
Esforçando-se, no meio do caminho, para refletir também acerca da arte de pensar representada pela pesquisa acadêmica e até dos caminhos da crítica cinematográfica contemporânea (uma decisão que enfraquece a força do projeto, apesar da tentação natural de usar metalinguisticamente a persona de Bernardet em um híbrido entre documentário e ficção como este), Fome merece destaque pelas observações precisas que faz sobre nossa relação com os menos favorecidos – e nesse sentido, minha cena favorita é aquela, ficcional, em que um casal oferece a sobra de sua janta e, ao ter sua oferta rejeitada, desembucha todo o lamaçal de ódio e preconceito que moram escondidos sob suas entranhas.
Se essas reflexões tem algum poder transformador ou não, aí é outra história – nem o próprio filme parece acreditar muito nessa possibilidade.
FOME
(2015, 90 minutos)
Direção e Roteiro
Cristiano Burlan
Elenco
Jean-Claude Bernardet
Ana Carolina Marinho
Henrique Zanoni
Gustavo Canovas
em cartaz no Cinespaço Miramar Shopping
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