Tuesday, August 9, 2016

A SPERANZA É A ÚLTIMA QUE MORRE (por Carlão Bittencourt)



“Não se pode levar a sério um restaurante em que o guardanapo vem cozido e a comida vem crua” (Nizan Guanaes)


Esta história aconteceu com o famoso Gênio Raimardi, grande redator, diretor de criação, dono de agência e um dos mais importantes publicitários da nossa propaganda. O problema é que o cara era um mala sem alça e, ainda por cima, metido a valente. Ou seja, um puta chato de galochas. Ou descalço, e com uma pistola automática na cintura.

O fato é que rolou uma longa apresentação na agência dele para um cliente. O cara era especialmente difícil de aprovar uma campanha. Haja argumentação e criatividade.

Muito bem. A reunião começou às 18 horas. Cinco horas depois, o desalmado cliente aprovou todo o trabalho e foi-se embora. Já não era sem tempo. Às onze da noite os estômagos roncavam em uníssono. Mais um pouco e comeriam os layouts.

Para comemorar, Gênio, o dono da agência, convidou todo mundo para jantar. Pelo horário foram à Cantina Speranza, no Bixiga.

Lugar simples, mas especialíssimo. Ali se produzem alguns dos pontos mais altos da culinária italiana. E seguramente as mais saborosas pizzas de São Paulo. Sublimes.



Chegaram quase na virada da meia-noite. Eram oito esfomeados. Fizeram o pedido: pizza para todo mundo. Ou melhor, quase todos. Afinal, o dono da agência não poderia seguir a maioria. Nunca. O enjoado. Depois de uns quinze minutos, estudando sem pressa o cardápio (e crivando o mâitre de perguntas sobre ervas, molhos e outras bossas,) Gênio decidiu-se por uma massa trivial: fusilli ao sugo.

Pouco depois, os garçons chegaram com as pizzas da patuléia. E o próprio mâitre fez questão de servir a massa para o chato da cabeceira.

Não se ouvia uma palavra no salão. Só os ruídos de facas, garfos e gente comendo. De repente, a voz do chato:

"Garçom!!!"

Safo, o rapaz não foi. Mandou o mâitre que, afinal, estava lá para isso, na obrigação de ser simpático com os fregueses antipáticos. Disse o mâitre:"Pois não cavalheiro?"

Ao que o mala respondeu:"Tem alguma coisa errada com este sugo..."

O mâitre ficou lívido. O sugo da casa era considerado o “estado da arte” dos molhos. A excelência máxima que se pode atingir com os melhores tomates. E reclamar dele seria uma heresia, algo tão absurdo como propor uma última pincelada na Mona Lisa.

Embora o cliente nem sempre tenha razão, o mâitre girou nos calcanhares e sumiu cozinha adentro. O freguês ficou olhando, meio que sem entender.



Um minuto depois, a porta da cozinha deu passagem ao maior italiano do bairro. Primo Carnera, antigo lutador de boxe, seria considerado um chaverinho perto daquele bruto. Era o gigantesco chef do Speranza (mais de dois metros de calabrês), em carne, osso e avental, que avançava, paquidermicamente, até a mesa dos publicitários. E com um agravante: a cara do italiano não era das melhores. Afinal, era ele quem fazia e preparava as famosas massas e molhos da casa. O gigante chegou e argüiu o freguês no seu melhor sotaque:

"Que passa, signore?"

O pentelho, devolveu:

"“Passa” que o sugo não tá bom..."

Sem hesitar, o superlativo italiano patolou o garfo da mão do cliente, enrolou na massa e...comeu! Isso mesmo: comeu com o garfo do freguês. Diante do olhar enojado do próprio.

Depois de muito mastigar, o chef estalou a língua, num sonoro eco de aprovação. Ato contínuo repôs o garfo no prato do publicitário e, sacudindo a manopla, como se fosse dar uma palmada no reclamante, falou:

"Il sugo tá molto buono, paisano. Manggia... e non me chateia. Senão..."

Dito isso, virou-se e, calmamente, voltou para a sua cozinha.

As más línguas (e sempre as há), não só confirmam o episódio, como dizem que Gênio raspou o prato. Mudo de cagaço.


Carlão Bittencourt – 05.08.2016


Carlão Bittencourt
é redator publicitário
e cronista.
É autor de
"Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo
dos salões de bilhar de São Paulo
e escreve todas as quartas
em LEVA UM CASAQUINHO.

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