Nesse mundo cansativo, onde tudo anda a esmo, quando não se sabe o destino certo, qualquer caminho vira caminho.
Num universo esquisitaço pacas, onde a ordem é desautorizar os desafetos, desconstruí-los e desidratá-los, o destino final não se torna tão evidente assim, fazendo qualquer itinerário mais um rostinho bonito na multidão.
Zero de funcionalidade, mas com a fina casca de gelo sob os pés, ficar parado pode virar um banho, no mínimo, congelante.
No sentido de se evitar algum tipo de ‘bateção’-de-cabeça pelos mesmos caminhos que nos levam do nada a lugar nenhum, essa lida Mercearia tomou o corrente ano que, caindo pelas tabelas, acabou por se tornar ‘shabático’, e desavergonhadamente se perdeu em releituras.
Das grandes contribuições do pensamento literário italiano contemporâneo, vamos de Ítalo Calvino: segundo o romancista e pensador nascido em 1923, curiosamente na cidade de Santiago de Las Vegas, Cuba, um clássico é um clássico porque ele nunca termina o que ele tem a dizer.
Mudamos de idade, de época, de momento, e logo um clássico falará diferente em nosso íntimo. Os clássicos possuem a característica de abordar certos assuntos que são ‘trans-históricos’ (com o perdão do neologismo tremendamente preguiçoso quanto à consulta das novas regras ortográficas).
Portanto, enquanto nossa querida economia não se põe de pé novamente, essa Mercearia aguardará, laconicamente, por dias melhores ao passar seu precioso tempo na releitura dos clássicos.
A obra dessa quinta, apesar da morte de seu autor (1985), ainda levará algum tempo para se tornar ‘um clássico’. “Lezioni americane – sei proposte per il prossimo millennio” (editado no Brasil como “Seis propostas para o próximo milênio”) reúne seis conferências que o italiano faria em seu ano letivo de 1985-86 na Universidade de Harvard. Ele foi o segundo de seu país a fazer o ciclo das Paletras de Poesia da Charles Eliot Norton, 24 anos depois do engenheiro Pier Luigi Nervi (1961-1962). Esse tradicional ciclo já contou com a presença de nomes como T.S. Eliot, Igor Stravinsky, Jorge Luís Borges, Northrop Frye e Octavio Paz.
São seis, mas, pelo menos na edição brasileira, foram publicadas cinco: Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade e Multiplicidade. A sexta, segundo nota de Esther Calvino, seria finalizada quando em Harvard e havia sido batizada de Consistência. O romancista e ensaísta italiano tinha anotações para oito palestras.
‘Consistência’ se endereçaria a “Bartleby”, de Herman Melville. Essa é a graça de ‘Seis propostas...’: os tópicos de cada palestra se apossam do que há de mais relevante (ou fino) em termos de ‘alta literatura’.
As obras citadas ao longo de cada tema são aqueles livros que deveríamos ler antes da instalação do defeito final: clássicos, ou o que o próprio conferencista considerava infinito no que tinham a dizer.
Os italianos, detentores da portentosa contribuição de seu patrimônio literário renascentista para a literatura universal, são capazes, pela extensão de sua análise, botar no chinelo ingleses, franceses e alemães. Sem desmerecer gregos, espanhóis, portugueses e irlandeses (da República, como Shaw, Beckett, Wilde e Joyce), nomes como o de Humberto Eco e do próprio Calvino são elaborações para lá de consistentes dos sabores que suas abordagens trazem à teoria literária.
Contribuição tão saborosa quanto, quem sabe um dia, essa Mercearia encontrará...
Nessa segunda leitura, por ousadia, aporrinhação e tremenda vontade de fazer muchocho, a direção da casa decidiu começar de trás para frente. Não é uma má experiência ler um conjunto de ensaios a partir do último: só não é recomendável. Dependendo da obra em questão, perde-se muito.
Não é qualquer obra cuja estrutura permite o(a) leitor(a) abordá-la de forma oriental. Encadeamentos também são garantias de boa entrega narrativa.
Contudo, parece que não é o caso de “Lezioni americane - ...”. É possível tomar cada palestra como única porque a amarração entre elas inexiste pelo prisma de questionamentos universais. Claro que há uma intenção de Calvino por trás da sequência das palestras, mas as discussões advindas de cada tópico podem ser perfeitamente congraçadas e ao mesmo tempo isoladas sem maiores danos ou prejuízos à qualidade do que eventualmente venha a ser discutido.
Talvez (e vale aqui nossa pessoal “orelhada”), “Seis propostas...” não constitui um ‘mosaico’, mas um ‘móbile’: os fios que tencionam a ‘penduração’ dos temas foram cuidadosamente buscados na experiência de Calvino como leitor, na seleção precisa das grandes obras por ele testemunhadas.
A velha história: por trás de um grande romancista, um espetacular leitor. O(A) leitor(a) sempre chega primeiro...
Ítalo Calvino não construiu as observações presentes nas palestras que compõem “Seis propostas...” tendo o éter como alicerce: há citações extensas de obras literárias, o que permitiu seu trabalho não se registrar como elucubração gaiata, mas sobre coisa referendada de uma elaboração ativa que somente a literatura de ‘alto giro’ é capaz de proporcionar.
Além de uma sugestão de leitura, “Seis propostas para o próximo milênio” (que já chegou!) induziu a direção dessa teimosa Mercearia a dois devaneios...
O primeiro é em relação ao ‘fazer artístico’: que não seria uma exclusividade ‘do(a) artista’, pensamento expressado por nomes de relevância como o de Tunga que, infelizmente, nos deixou na última segunda-feira. O ponto: se a inovação pertinente à criação é ultrapassar o que se é, qual veículo os ‘artistas modernos e contemporâneos’ dirigem para tal ultrapassagem?
Parafraseando o ‘Dicas Dollynho’, saber qual o carro utilizado na ultrapassagem: “(...) importa, ‘çim’, amiguinho! (...)”. Uma coisa é ultrapassar o que se é (ou que está aí) dentro de um Fórmula 1, outra é tentar a mesma manobra numa “brasília amarela”.
Qual o grau de domínio das formas, técnicas, linguagens, tons, intenções, o devido conhecimento até mesmo do manuseio, para uma ‘ultrapassagem’ a contento? O(A) artista quer ser artista por isso, ou por uma perpetuação da espécie na forma de perenidade da peça artística?
Para a perpetuação de si próprio(a), os rebentos podem ser a opção mais adequada (ainda que tal enunciado seja deselegantemente darwinista). Arte não é vaidade: ela é somente arte. E não garante nada de ninguém. Ela é o que é. Seus tentáculos entre emissor e receptor não deveriam depender de bula, nem garantir lembranças eternas ‘a posteriori’.
O segundo vem de uma aflição patriótica: n’algum dia, veríamos um(a) brasileiro(a) nas “Charles Eliot Norton Poetry Lectures”?! Tivemos Hélio Oiticica, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Glauber Rocha, Almeida Prado, Lygia Clark, Mário de Andrade, Toninho Horta, Sérgio Buarque de Hollanda, Antônio Candido, Autran Dourado, Lúcio Costa, Manoel de Barros, entre tantos e desde que as palestras começaram, em 1926, nenhum brasileiro foi convidado.
Ou somos tão ensimesmados a ponto de nos tornarmos uma espécie de ‘cortina de ferro’ para lá de fechada, resultado de um sistema educacional claudicante e bem ‘pobrinho’, ou a percepção que Harvard tem do país deve ser a pior possível.
Talvez, quem sabe, fruto de uma nação que tirou da escola seu melhor destino e coloca em seu lugar uma desejada possível destreza nas mãos de Ilan Goldfajn.
Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
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