Wednesday, August 10, 2016

O DÉCIMO ROMANCE DA CARIOCA ELVIRA VIGNA, COMENTADO EM CANTO DE PÁGINA



A literatura urbana brasileira escrita por mulheres pode perfeitamente ser dividida em Antes e Depois de Elvira Vigna.

Elvira é, sem dúvida, a primeira romancista brasileira desde Hilda Hilst a não demonstrar o menor interesse em fazer média com leitores do público feminino, escapando com galhardia desta praga que, graças aos esforços de certos lobbistas literários, assola a maioria esmagadora da literatura produzida por mulheres neste país

É uma escritora aparelhadíssima, capaz de virtuosismos narrativos impressionantes, que foge feito o diabo da cruz das armadilhas do "tom confessional" que sabota com frequência esforços literários bem intecionados.

Sua prosa é árida e cortante. Seu universo temático, cáustico e desencantado. Mesmo quando narra suas histórias em primeira pessoa, é difícil perceber em sua "voz" indícios de feminidade.

Seus personagens são desprovidos de glamour. São seres urbanos com vidas devastadas tanto em termos afetivos quanto em termos emocionais e pessoais, irremediavelmente presos a hábitos que são daninhos a eles próprios, mas sem os quais suas vidas não conseguem fazer sentido.


Aos 69 anos de idade, com 10 romances publicados, Elvira Vigna está de volta com Como Se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas, um lançamento Companhia das Letras, que passeia pelo universo da prostituição em Copacabana como pretexto para um mergulho profundo nas vicissitudes da vida urbana.

A narradora é uma designer desempregada que relembra uma série de conversas com João, um editor amigo seu, que se relacionava frequentemente com garotas de programa.

O acaso une os dois protagonistas na sala de um webchat, e as reminiscências narradas nesses encontros, somadas às carências pessoais de cada um deles, revela um painel aterrador da solidão urbana nos dias de hoje.

A técnica narrativa utilizada por Elvira é notável. Faz uso de repetições ritmadas entre frases, parágrafos e segmentos como um artifício para que as palavras ecoem no vazio onde habitam estes personagens, e através deste artifício recompõe tanto a história do casamento de João e quanto a trajetória da narradora. 

Fala-se muito de prostituição em Como Se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas, mas pouco sobre a natureza da prostituição -- até porque essa jamais foi a intenção da autora.

Estamos aqui diante de um romance que aborda, antes de mais nada, a solidão e o desalento, e que não cai em momento algum em julgamentos morais ou psicologices.

Ao contrário de escritoras como Maria Valéria Rezende, cujos personagens vivem fugindo do pesadelo da alma humana buscando refúgio em um humanismo frágil e em sociologismos duvidosos, Elvira Vigna não tem medo de olhar nos olhos de Lilith.

E espera que seus leitores também não tenham.


Como Se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas carrega o leitor de forma meio oblíqua em direção a um emaranhado de insinuações e traições cotidianas que acabam formando um jogo literário denso e intrincado, e nada linear.

Mas, por outro lado, talvez seja o romance menos pesado em termos narrativos escrito por Elvira Vigna até agora.

E essa busca pela leveza na forma, enquanto flerta com temáticas tão carregadas, só serve para tornar este romance ainda mais original e fascinante.


COMO SE ESTIVÉSSEMOS EM PALIMPSESTO DE PUTAS
Autora: Elvira Vigna
Editora: Companhia das Letras
(216 páginas - R$ 44,90)


AMOSTRA GRÁTIS: 

O que fica na minha cabeça não é João nem Lola.

É a garota do Fredimio.

Acho que a garota continua a fazer o que faz com João (levar o cara para um apartamento vazio onde trepa porque trepa, sem cobrar) ainda por muitos anos. Não sempre. Não com todos. Mas de vez em quando.

Volta de um trabalho mal pago, toma um banho demorado, põe uma roupinha que ela acha legal e vai, os saltos altos mal equilibrados nos buracos do calçamento da Prado Júnior. Pega um cara. Vai para o hotel puteiro que tem ao lado, na Princesa Isabel. Recebe o dinheiro.

E, de vez em quando, leva o cara para o apartamento dela no Fredimio. Faz isso sempre que o cara parece ser daqueles que ficam embaixo de orelhões, encostados em muros, sentados em cantos de sarjeta, esperando raios luminosos que passam em direção a um mundo melhor. Faz isso por vários anos.

Às vezes treina sozinha, no espelho.

“Tou com um amigo aqui.”

Fala alto, o que ela mesma acha estranho, a voz dela, ali, no apartamento em que não se escuta a voz de ninguém ao vivo. Ninguém que não esteja na TV.

Repete, dessa vez em tom menor:

“Tou com um amigo aqui.”

Tem medo de que, com a repetição a cada cara que entra, a frase saia com a entonação errada e o cara perceba que é mentira. Que ela é só uma boba que diz isso assim, para o ar, quando entra no apartamento, porque tem um pouco de medo, tantas histórias. Que a frase é só para que ele, o cara, não faça nada de muito estúpido porque tem gente logo ali depois do armário, gente para protegê-la.

Um tio. Uma amiga. Um dobermann muito feroz viciado em televisão.

“Isca!”

E ele mata qualquer um.

Nunca acontece nada de muito ruim com a garota.

Com o tempo, traz cada vez menos caras para o apartamento. Encontra cada vez menos caras parecendo ser do jeito certo, com o olhar perdido que é o certo. Às vezes fica na dúvida, ainda sentada na mesa da boate, hesitando, e resolve que não.

Aí, quando volta já de madrugada para o apartamento vazio, a TV inútil ligada com o mesmo som igual, sempre igual, sempre, ela toma outro banho, come uma coisa, escova os dentes e vai deitar. E fica olhando a luz preto e branco se mexendo, presa na tela, e que é a única luz. Aí, aos poucos, o mundo surge. Esse mundo, esse daqui, o que não é bom. O colorido. O da janela.

E ela se levanta.


 

Chico Marques devora livros
desde que se conhece por gente.
Estudou Literatura Inglesa
na Universidade de Brasília
e leu com muito prazer
uma quantidade considerável
de volumes da espetacular
Biblioteca da UnB.
Vive em Santos SP, onde,
entre outros afazeres,
edita a revista cultural
LEVA UM CASAQUINHO




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