por Cléber Eduardo para Cinética
O que nos resta constatar nos dias de hoje sobre "Uma Mulher Sob Influência"? Se chegamos às suas imagens já conotados, apenas por sabermos quem é o diretor e em qual ano foi realizado (1972/1973), estamos com várias suposições em mente. Naquele momento, o cinema moderno e a noção de autor já viravam fetiche, se desgastavam e contaminavam as convenções – o que, para um cineasta surgido paralelamente a nouvelle vague, não deixava de ser uma questão. John Cassavetes faz aqui um filme, nos híbridos anos 70, com uma levada experimental, mais radical que as convenções, tanto dramáticas quanto narrativas, então em modernização.
Cassavetes, cuja definição de almanaque, recebida em primeira mão por muitos cinéfilos, é a de um “autor do improviso”. Precisamos de um único plano, com atores interagindo um com outro, para confirmarmos, na imagem, o efeito de improviso – expressão que talvez seja mais apropriada empregar porque, para saber se cada momento ali é ou não improvisado, teríamos de saber o processo de cada plano. E, como escreveu Thierre Jousse, em sua análise do universo fílmico e dos procedimentos do cineasta, não importa se os atores improvisaram, ou se ensaiaram muito esse improviso, e sim a conseqüência na tela.
Quando vemos em um primeiro momento Peter Falk conversando na caminhonete com um colega, em diálogo no qual seremos informados sobre a instabilidade psíquica e emocional de sua esposa Mabel (Gena Rowlands), já se percebe uma liberdade quase desgovernada no andamento da cena. Há um aparente descontrole na relação direção/atores – efeito de descontrole, que fique claro, porque Cassavetes, pelo que se sabe, detinha algum controle. E isso leva essa e outras situações a tomar uma certa falta de direção e funcionalidade dramática – porque essa é a intenção. Onde se percebe esse processo? Na extensão quase maneirista de algumas cenas (ou atos, porque a estrutura é teatral, origem do argumento), menos por conta do tempo dos planos e mais por responsabilidade dos atores, que partem com uma meta no início da seqüência, mas, conforme ela avança, vão se dissolvendo até se tornarem imagens constrangedoras, sem jamais estarem constrangidos. Não se pode esquecer, de qualquer forma, que, antes mesmo do filme visto, já era esperado esse tom intenso, atuações à flor dos nervos, personagens em colapso, a sensação de um mundo prestes a ruir.
Esse constrangimento é menos gerado pelos personagens e mais pela própria atitude dos atores, que, se falam e agem em nome de terceiros (de suas incoporações), conduzem as falas e ações sem deixar de escancarar a própria atuação, até se sobreporem a seus personagens e mostrarem os esqueletos de suas construções. É como se uma câmera tivesse entrado em um ensaio com o elenco, com os atores sem textos definidos, sem marcação estipulada, sem o tempo exato de cada cena e dos limites de sua expressividade facial, ainda à procura de seus personagens – e não seria um despropósito pensarmos em Jean Rouch. Vemos ali o registro da criação (do processo de criar, não do trabalho criado).
Há uma sensação de “pode tudo”, de filme-esboço, de filme-laboratório, que busca sua autenticidade no que há de autêntico na própria filmagem, na dissolução do efeito ilusionista da interpretação, em uma suposta verdade encontrada na cena e não necessariamente antes dela (uma busca compartilhada, recentemente, por "O Quadrado de Joana", de Tiago Mata Machado). Não deixa de ser paradoxal que, embora esse efeito de movimento desgovernado se dê com os atores, a organização das seqüências seja “planejada”, com a câmera mudando de ângulo e distância em relação aos intérpretes, revelando, nessa troca de planos dentro da unidade de espaço, uma evidência de programação.
A operação laboratorial com a matéria-prima humana (os atores mais que os personagens), pelo que se percebe no quadro, é menos pautada por esquemas e metas, no sentido de se cumprir um objetivo do autor (como se dá nos laboratórios de Lars Von Trier), e mais provocada pela noção de obra coletiva, feita com os intérpretes e não apenas por intermédio deles. Esse compartilhamento da autoria com quem está diante da câmera acaba amplificando a subjetividade e o estilo de cada interpretação, sobretudo as de Gena Rowlands e Peter Falk, até o ponto em que eles tomam a cena para si mesmos, para a assinarem, não para trabalhá-la por dentro dos personagens.
O dramático em "Uma Mulher Sob Influência", a rigor, surge dessa exposição dos atores, não necessariamente do problema vivido pelos personagens – caso das estratégias naturalistas. E o naturalismo, se aqui fosse tomado como referência, nos traria problemas (pelo caráter de obra em construção, conforme a hipótese aqui esboçada). Nas interações entre pais e filhos, por exemplo, existem alguns curtos-circuitos, com momentos nos quais as crianças não estão no espírito da cena, trazendo certo grau de reflexividade, pensada ou não. Portanto, a melhor maneira de aceitar o filme exatamente como ele se apresenta, é vê-lo como projeto, mais que como obra, com tudo que há de arestas em projetos.
O que não significa que essas arestas, tão saudáveis no cinema moderno, sejam necessariamente arejadas. No caso, são asfixiantes. E pode dar a impressão, como de fato ocorreu, de se testemunhar uma performance de atores empenhados em serem mais expressivos como atores que como personagens. Essa entrega à própria performance, mais que à interpretação, carrega um tanto de exibicionismo, de vaidade, de orgulho de se ter chegado aonde se chegou, de se ter sido submetido a um constrangimento auto-imposto. Está nessa operação de desmascaramento dos atores a força, e o limite, de "Uma Mulher Sob Influência".
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