por Davi Furtado
(publicado originalmente em Wand'rin' Star)
Todos os filmes de Cassavetes
foram épicos da alma humana
(Martin Scorsese)
Era também na Europa que as obras de John Cassavetes causavam mais impacto: Londres já ficara em delírio com o seu primeiro filme, Shadows, cuja popularidade despoletou o sucesso nos EUA, e Faces seguiu-lhe o exemplo, sendo exibido no Festival de Cinema de Veneza, sem legendas. A imprensa achou, erroneamente, que o modo anti Hollywood como fora realizado, expressava sentimentos antiamericanos. O facto de John ser uma estrela de cinema e ator ajudou à publicidade.
Durante os anos 60, Cassavetes protagonizou alguns filmes europeus para financiar os seus projetos, como Machine Gun McCain, excelente filme de gangsters à italiana. John não fez estes trabalhos apenas pelo dinheiro; relativamente a Doze Indomáveis Patifes, afirmou: “Trabalhar com pessoas como Lee Marvin, Charles Bronson, Telly Savalas… era impossível não nos divertirmos.” Mas as suas preocupações eram outras: Estava concentrado num filme chamado Husbands (Maridos), que recebeu o subtítulo, “uma comédia sobre a vida, a morte e a liberdade”.
Os temas da obra giravam em torno do ego e da responsabilidade, o individualismo e a maturidade, o amor e o casamento – tudo situações que John Cassavetes abordou durante a sua carreira. A morte do irmão mais velho, Nick, que falecera de ataque cardíaco aos 30 anos (em 1957), também influenciou a obra, que começa justamente com um funeral. No início, eram quatro amigos, ‘Gus’, ‘Archie’, ‘Harry’ e ‘Stuart’ (este último apenas surge na fotomontagem inicial e é desempenhado pelo irmão de Gena Rowlands, David). A morte de ‘Stuart’ provoca nos três amigos uma espécie de crise existencial; começam a comportar-se como adolescentes, procurando aproveitar a vida ao máximo, mas depressa são confrontados com outras questões, nesta fuga impetuosa ao desgosto.
Os filmes de Cassavetes são diferentes de quaisquer outros. Há a ideia de que se destinam a cinéfilos e que são maçadores, mas não são. Fazem-nos pensar sobre situações das nossas próprias vidas, o que pode ser desconfortável. Como descreveu Sean Penn, “nos seus filmes, há um relâmpago, de cinco em cinco minutos, que nos traz de volta à realidade”. Outro preconceito é o de que são improvisados. No entanto, Cassavetes encarava o improviso como uma técnica, e as suas obras possuem argumentos cuidadosamente delineados.
John escreveu obsessivamente Husbands durante 1968, acumulando 400 páginas de anotações. Uma sequência foi reescrita 200 vezes. Durante este processo, já pensava nos atores que pretendia. Escolheu Peter Falk e Ben Gazzara. O produtor Al Ruban explica: “John não estava certo sobre o que iria fazer a seguir [a Faces]. Por isso, definimos com quem gostaríamos de trabalhar. Lembro-me de estar sentado na sua cozinha, a falar sobre atores, horas a fio, e concordámos que os tipos mais interessantes eram Falk e Gazzara.”
Cassavetes queria trabalhar com pessoas diferentes, o que explica a escolha de Falk, de ascendência judaica, e Gazzara, com raízes sicilianas. John era descendente de gregos, mas os três eram nova-iorquinos e até tinham nascido bastante perto uns dos outros.
Husbands começa com ‘Archie’ (Peter Falk), ‘Harry’ (Ben Gazzara) e ‘Gus’ (John Cassavetes) a chegarem ao funeral de ‘Stuart’, uma morte prematura que abalou os três amigos. Todos são nova-iorquinos de classe média e com vidas estáveis. Incapazes de exprimir as emoções, ignorando-as até, decidem que a data não poderá ser esquecida. Em memória de ‘Stuart’, fazem uma festa num bar, onde se embebedam e organizam um concurso de canto.
O que tem o casamento mais instável é ‘Harry’. Ao chegar a casa, a mulher diz-lhe que já não o ama, o que despoleta a agressividade do marido. Este tenta atacar a esposa e a sogra (!) com uma faca, sendo acalmado pela intervenção de ‘Gus’ e ‘Archie’. Cá fora, estendem-se no jardim e decidem partir para Londres, onde se dedicam ao jogo e ao engate, e confrontam finalmente os sentimentos que o luto lhes provocou.
Este argumento poderia ser realizado por Woody Allen, e, quanto a mim, Allen inspirou-se claramente no cinema de Cassavetes, se bem que tenha adicionado uma quantidade excessiva de neuroses e complexos que fariam a sua imagem de marca. Não acho sequer importante compará-los, pois são contemporâneos e cada um é inconfundível no seu estilo.
A primeira vez que Ben Gazzara ouviu falar de Husbands foi num estúdio em Hollywood. Conhecia Cassavetes de vista, frequentavam os mesmos círculos sociais e cumprimentavam-se. Tinha sido convidado para um visionamento de Faces, o qual adorara. Desta vez, cruzou-se com John, que seguia de automóvel e buzinou: “Ben, já telefonaste ao Marty? [O agente de ambos.] Vamos fazer um filme juntos. Liga-lhe!” Gazzara não prestou grande atenção, mas, um mês depois, John convidou-o para almoçar no Hollywood Strip, e foi a primeira vez que conversaram a sério.
O encontro com Peter Falk, que já aqui relatei, teve lugar num jogo de basquetebol. Ambos eram estrelas com carreiras estáveis e prometedoras, mas partilhavam uma desilusão com o negócio. Sentiam-se ansiosos por trabalhar num projeto em que acreditassem. Falk ficou impressionado com Cassavetes: “Foi o homem mais fervoroso que alguma vez conheci.” Concordaram em colaborar em troco de uma percentagem dos lucros.
Quando Ben Gazzara rodava o filme de guerra The Bridge at Remagen, em Praga, recebeu um telefonema de John: “Ben, não deixes que te matem! Arranjei o dinheiro! Vamos fazer o Husbands.” Um conde italiano, Bino de Cirogna, investira um milhão de dólares no filme. Quando Gazzara e restante equipa se mudaram para Roma, Cassavetes filmava lá Machine Gun McCain com Peter Falk e Gena Rowlands; pelo que o trio se reuniu para discutir o guião.
“Num quarto de hotel, em Roma, ele contou-me a história de Husbands”, recapitula Peter Falk. “Nada estava escrito, simplesmente falou. Passava de generalizações grandiosas a cenas específicas. Algumas cenas eram muito engraçadas. Ri-me a valer. Outras partes eram ambíguas… não as consegui encaixar no todo. Nessa noite, fomos com um grupo de amigos a um restaurante. John voltou a contar a história de Husbands. Deixou de fora algumas das melhores cenas, as que me tinham feito rir. Acrescentou outras, algumas boas, outras, nem por isso. Do hotel para o restaurante, o argumento modificou-se. Talvez, na essência, fosse o mesmo filme. Não percebi. Mas uma coisa ficou clara: A incrível fecundidade de John.”
Na opinião de Cassavetes, os três temiam que a conversa se tornasse aborrecida, pondo fim à amizade que os unia. O realizador sugeriu que cada um escolhesse o nome do seu personagem. Ficaram ainda mais amigos, e esta união foi imprescindível na concretização de Husbands.
Em janeiro de 1969, Falk, Gazzara e Cassavetes estavam em Nova Iorque, quando Tristram Powell realizou um documentário para a BBC, intitulado The Making of Husbands, capturando os três atores em plena troca de ideias. Passando o argumento em revista, cena a cena, não queriam apenas clarificar a motivação dos personagens, mas também entender as ambiguidades de cada momento. No documentário, podemos ver o enérgico Cassavetes explicando as suas ideias, perante o sorriso de Gazzara, e Falk, que o observa com ar algo desconfiado…
O editor contratado por John, Peter Tanner, testemunhou esta fase de gestação: “John, Peter, Ben e uma secretária, reuniam-se numa sala e improvisavam. Nós tínhamos um script, mas manteria poucas semelhanças com o filme. A secretária anotava tudo. Trabalhavam o dia inteiro, fazendo apenas uma pausa para o almoço e, no dia seguinte, a secretária já tinha tudo datilografado. Eles liam e alteravam tudo.”
De acordo com Falk, “John insistia que o script devia ser uma colaboração. Mas a história era dele, a estrutura era dele, as cenas eram dele. Dentro dessas limitações, Benny e eu improvisávamos, e parte disso surge no ecrã”.
O criativo Cassavetes integrou aspetos da personalidade dos atores nos personagens. Falk tornou-se o mais filosófico e introvertido, Gazzara é o mais conflituoso. Como sempre, John ambicionava capturar a realidade e complexidade da vida das pessoas, e foi por isso que Husbands seria quase totalmente reescrito durante estes ensaios, nos quais também participaram as atrizes inglesas que surgem nas sequências londrinas.
Uma delas foi Jenny Runacre, inexperiente e acabada de sair de uma escola de representação. A certa altura, Cassavetes, apercebendo-se da rigidez com que lia as suas falas, disse-lhe para rir durante 30 segundos antes de retomar a leitura. Runacre estava pouco habituada a tais direções:
“Foi um processo terrivelmente intenso”, recorda. “Acho que, nesse dia, fumei 500 cigarros. Pensei que estavam todos doidos. Era o meu primeiro filme, a minha primeira experiência, e foi demasiado. John, Peter e Ben comportavam-se como machos e estavam muito unidos. No set, durante as filmagens, comportavam-se exatamente como no filme, jogavam, riam-se, até rebolavam no chão a rir-se. Tinham piadas entre eles. Fiquei extremamente paranoica. Estou certa de que era isso que John queria que eu sentisse. Ele queria que fosse tudo tão real de modo a que não conseguíssemos representar.”
Em grande medida, as cenas entre Jenny Runacre e Cassavetes foram improvisadas. “A cena do café, quando eu o esbofeteio, foi totalmente instintiva”, revela a atriz. “Saiu do nada, nem sequer fora ensaiada. John ficou completamente retraído. Mas manteve a cena. E a luta na cama também foi improvisada.”
E parece que John se está realmente a atirar a Runacre. A atriz desmente: “A sua grande qualidade era a manipulação. Nessa sequência da luta, acho que ele também não fazia ideia de como colocar o casal na cama. Mas o seu brilhantismo residia na perceção; via como as pessoas trabalhavam e media as reações, manipulava a situação para que funcionasse. Havia um certo antagonismo entre nós, e ele usou isso.”
A cena considerada a mais “infame” de Husbands é a do bar. Gazzara elogiou-a: “Há coisas que os figurantes fazem e, de repente, o John está a trabalhar com eles, e eles dão-nos performances que nos espantam. Melhor do que qualquer ator conseguiria, com todo o planeamento envolvido.”
Cerca de 20 minutos depois do início, ‘Gus’, ‘Archie’ e ‘Harry’ estão num bar, desafiando os presentes a cantar canções, de modo rude e fazendo troça. Tendo em conta que não eram atores profissionais, chega a parecer que a provocação é verdadeira. ‘Leola’ (Leola Harlow), em especial, é o bombo da festa e, na verdade, não sabia quais eram as intenções do realizador nem dos atores. O seu espanto é verídico. A crítica de cinema Pauline Kael não gostou: “As pessoas à mesa não estariam lá com aqueles palhaços a fazerem troça delas, se não fossem pagas para isso.”
Os takes são longos; John Cassavetes usou duas câmaras e deixou-as filmar. A cena parece improvisada. A certa altura, John está-se a rir, agarrado à barriga, noutra altura, Peter Falk, para obrigar ‘Leola’ a cantar melhor, diz que se vai despir e começa a fazê-lo! Já de tronco nu, o hilariante Falk não aparenta inibições e é puxado por Cassavetes para debaixo da mesa, no instante fulcral em que começa a tirar as calças! Falk recorda, com humor, que John o puxou na altura certa, já que estava a adorar aquele momento doidivanas, mas sabia o que não podia mostrar num filme.
“Não te estamos a criticar”, diz um agressivo ‘Gus’ a ‘Leola’, “simplesmente não nos estás a transmitir nada!” ‘Leola’ canta novamente, com inocência, “it was just a little love affair… I didn’t know you’d grow to care” E todos pedem mais sentimento. A cena, com mais de 10 minutos, tem tanto de hilariante como de perturbador – Leola Harlow confessaria mais tarde que se sentiu humilhada com tais atitudes. No fim desta sombria sequência, podemos vê-la a chorar, e não é “filme”.
Quando decidi escrever esta sequência de trabalhos sobre John Cassavetes, não foi devido a um impulso momentâneo. Nunca vira filmes que, no meio do entretenimento, nos fazem pensar durante dias, não são o escapismo vulgar que leva os espectadores às salas. Refletimos realmente, durante meia hora ou dias, nas nossas vidas, ambições; no que pode estar errado nas nossas atitudes e nas dos outros. Daí que seja um “cinema de confronto”, pois, embora Cassavetes não retrate protótipos, nós conhecemos as pessoas que ele nos mostra, revemo-nos, para bem e para o mal, no que nos sugere.
Não considero o cinema um mero entretém, mas, no caso de John Cassavetes, ficamos a meditar sobre a questão levantada por Andy Warhol, que chamou “atividade inútil” à arte. Os filmes de John Cassavetes são úteis a quem tiver abertura de espírito. Uma das ideias que esteve na base de Husbands, e que John propôs aos seus colaboradores, foi: “O que aconteceu ao sentimento, no mundo de hoje?” Atual, não?
Aos filmes de Cassavetes aplica-se um estranho adjetivo, quando falamos de arte: “Útil”. Compreendo que Warhol tivesse apelidado a arte de inútil, que Woody Allen tenha feito das suas obras uma espécie de consultório de psicanalista, tal como Lou Reed fez, a certo ponto, na música. Cassavetes é diferente, está demasiado envolvido e interessa-se realmente pelos seres humanos. Pode não saber as respostas, mas faz todas as perguntas incómodas. Sentimo-nos totalmente distanciados das parvoíces de Hollywood, dos happy endings de tralha e do constante bombardeamento publicitário. Parece que Cassavetes fez o filme para nós e que a sua principal preocupação é fazer-nos reagir, ainda que não gostemos.
“Quando as coisas são originais, obviamente são um pouco mais difíceis, é por isso que os espectadores ficam tão zangados. Quando eles estão zangados, eu não fico zangado, até gosto. Nunca é fácil. Acho que só nos filmes é que é fácil. Acho que as pessoas não querem que as suas vidas sejam fáceis. Acho que é uma doença dos Estados Unidos. Acaba por se tornar mais difícil. Gosto que as coisas sejam difíceis para que a minha vida seja mais fácil.”
A controversa cena do bar não teria fácil aceitação por parte do público, e John foi pressionado no sentido de a excluir. O produtor Al Ruban desentendeu-se com o realizador: “Achei que se deviam meter menos com a mulher, mas ele não me deixou tocar na cena.”
Peter Falk e Ben Gazzara mostraram-se preocupados com a duração de Husbands. John:
“A Columbia [Pictures] telefonava-me a dizer que 52 pessoas tinham saído, iradas, do cinema num só dia. Mas eu argumentava que o nosso acordo se baseava em pureza e não em sucesso. Husbands é um filme bastante divertido, em certos pontos. Como a vida, também lento e deprimente, noutras alturas. O importante é que não se trata de um filme abreviado. Se dependesse de mim, tinha o dobro da duração e toda a gente poderia sair a meio, se quisesse.”
A natureza episódica e fragmentada do filme – embora haja uma linha narrativa coerente – confundiu Peter Bogdanovich, que não entendeu os propósitos de Cassavetes, na altura da estreia. Só 10 anos depois, assistiria de novo a Husbands, e percebeu aonde o cineasta queria chegar. Faltou-lhe experiência de vida, conforme admitiu:
“A crítica comum era a de que os filmes não eram estruturados, que pareciam soltos, repetitivos, pareciam deambular, e que tinham grandes coisas, mas eram demasiado longos na duração de certas cenas. E faltava um enredo. Achei que havia mérito nessa crítica quando vi Husbands. Mas quando o voltei a ver, 10 ou 12 anos depois… pareceu-me que estava errado. Eu tinha crescido e compreendido o filme.”
Segundo Ray Carney, que escreveu vários livros sobre o cineasta, “Cassavetes faz filmes para adultos com a subtileza, complexidade e polivalência das emoções dos adultos, filmes sobre pessoas e relacionamentos que não poderão ser reduzidos à imaturidade juvenil, às simplicidades adolescentes dos filmes de Hollywood”.
Ao contrário do seu antecessor, Faces, Husbands foi filmado a cores, em 35mm, em locais reconhecíveis, com atores conhecidos e um requinte técnico distante da crueza de outras obras. John Cassavetes trabalhou com uma equipa profissional e dispôs de um milhão de dólares de orçamento. O profissionalismo da equipa não o deixou à-vontade: “Eles aproveitam-se de nós. Há demasiados técnicos.” O documentário de Powell mostra John a enfurecer-se com a equipa, quando esta se esqueceu de filmar um take; Cassavetes grita que quem não quiser estar ali, pode ir para casa, que quer todos atentos e empenhados como ele, uma diatribe que é ouvida em silêncio.
A célebre e reputada publicação Cahiers du Cinéma, como já vinha sendo hábito, elogiou a maestria de Cassavetes, apontando o seu “expressionismo natural”, numa análise da autoria de Sylvie Pierre e Jean Narboni: “Há dúvidas, hesitações, iluminações, expressões contraditórias e fugazes, lassitude, irritação, momentos parados e explosões de energia que se sucedem umas às outras, tal como na vida.” Considero a Cahiers du Cinéma algo elitista, por vezes, mas, aqui, acertou em cheio.
“John não tinha medo de torturar o seu público”, comenta Al Ruban. “Se quisesse que eles sentissem dor, tornava as coisas dolorosas. Não receava isso.” E sentimos a dor de ‘Archie’ (Peter Falk) quando este confessa a ‘Gus’, de forma pouco desembaraçada: “Quero dizer-te o que sinto realmente. O que está realmente mal comigo. Uma carência tremenda. Uma ansiedade. É uma… é o que acontece. Esqueço-me do que é. O que será? Tem de ser importante, não achas?” Esta dificuldade de expressão, tão bem retratada por Falk, chega a ser cómica, mas é realista; quem não ouviu um discurso semelhante proveniente de alguém angustiado? Contudo, Peter Falk contrapõe: “John não estava interessado no realismo, mas sim, na emoção espontânea.”
Husbands é um filme sobre homens afastados das esposas, homens que não sabem lidar com o desgosto que a perda súbita de um amigo provocou e com a sua vida maquinal. Em Londres, ‘Harry’, o único que vincou bem a barreira intransponível que o separa da mulher, decide ficar. ‘Archie’ e ‘Gus’ regressam a Nova Iorque, para junto das respetivas famílias. Cabisbaixos, parecem achar que a família é a base de tudo e que é altura de assumirem novamente as suas responsabilidades enquanto maridos. O filme termina com a chegada de ‘Gus’ (Cassavetes) a casa – o filho mais velho diz-lhe que vai ouvir um sermão. Há um corte abrupto. Como se tivéssemos assistido a um pedaço de vida e não haja mais nada a dizer, sem musiquetas melodramáticas nem letras a passar no ecrã. Finito.
John Cassavetes explicou à Life, em maio de 1969:
“O trabalho que tem de ser realizado aqui é mostrar três homens que se investigam a si próprios, de modo honesto e sem repressões. Na altura em que assentamos e dizemos, ‘é isto, fechei a loja, sei quem sou’, demonstramos que somos homens e deixamos de ser homens/crianças. E será melhor sermos homens/crianças do que homens? Não sei.”
Apesar de lidar com estes temas mais pesados, há bastante divertimento em Husbands; as corridas de marcha pelas ruas de Nova Iorque, que John adorava, houve instantes de pura espontaneidade e companheirismo, em que os atores se esqueceram da presença da câmara. Aliás, o entusiasmado Cassavetes, deliciado com a atuação dos atores, filmava frequentemente takes até ficar sem película na câmara, o que originou uma quantidade enorme de material, quatro ou cinco vezes mais do que o habitual. Queria capturar a mesma cena sob ângulos e ritmos diferentes. Uma das versões finais de Husbands tinha quase quatro horas!
“Quando terminámos o filme, perguntei a John qual era o tema”, confessou Peter Falk, sentindo-se baralhado. “Os críticos viam três homens que, pela primeira vez na vida, enfrentam a sua mortalidade e partem subitamente para Londres numa derradeira tentativa de se agarrarem à juventude. Coisas assim.”
John disse-lhe: “Pensa neste termos: Quando fores velho, podes contar aos netos sobre aquela altura em que, agindo por impulso, tu e os teus amigos apanharam um avião para Londres e passaram três dias a beber, a jogar e a engatar mulheres, e depois regressaram até junto das esposas e dos filhos.”
“Foi o que ele me descreveu”, conta Falk, “mas a verdade é que os dois tipos com bons casamentos regressam, o terceiro não volta. Fica num limbo. Por isso, para mim, Husbands é sobre a importância da família, julgo ter sido essa a intenção de John, mas não o juraria a pés juntos”.
Por algo que se perde, há algo que se ganha, parece dizer o filme; e ‘Archie’ e ‘Gus’ acabam por perder mais um amigo, mas não serão mais “passageiros” nas suas vidas. Acabaram por valorizar a sua família e questionar-se. Só por isso, valeu a pena a viagem, e nós também nos questionamos, sejamos casados ou solteiros.
“Fiz uma sugestão, no final, quando John e eu finalmente chegamos a casa e saímos do táxi, em que temos dois grandes sacos de presentes e temos de separar os que são para a família dele e os que são para a minha. ‘O pato cantor com o guarda-chuva é meu, o palhaço é teu.’ Foi o meu grandioso contributo”, graceja Falk.
O filme teve várias “versões finais”. Cassavetes decidiu dar todo o protagonismo a Ben Gazzara e até se disse que o ator venceria um Óscar. Depois, reeditou o filme, dando todo o destaque a Peter Falk. Seymour Cassel ficou confundido: “Da primeira vez, era sobre Ben, depois sobre Peter, e eu perguntei-lhe, ‘não era suposto ser sobre três amigos?’ ‘Sim, mas não achas a atuação do Peter fantástica?’”, foi a resposta do fascinado Cassavetes.
Por falar em Peter Falk, o ator ficou tão irritado com John, por este não lhe dar indicações precisas durante a rodagem, que lhe disse: “Nunca mais trabalho contigo se fores tu a realizar!” E perguntava a Ben Gazzara, “o que quer este tipo? Diz-me para entrar, para ir até à janela, diz que estou com fome, e que talvez possa ir até ali…” Gazzara respondeu, divertido, “Peter, ele quer que te sentes na cadeira.” “Então não pode dizer simplesmente para eu me sentar no raio da cadeira?!”
Imprevisível, espontâneo e sem artifícios, Husbands não envelheceu um ano sequer: A sua montanha-russa de autodescoberta mantém a intensidade, tanto para os personagens como para os espectadores. Para o bem e para o mal.
OS MARIDOS
(Husbands – 1970 - 154 minutos)
Roteiro e Direção
John Cassavettes
Elenco
Ben Gazzara
Peter Falk
John Cassavettes
Jenny Runacre
Jenny Lee-Wright
Noelle Kao
Peter Falk
John Cassavettes
Jenny Runacre
Jenny Lee-Wright
Noelle Kao
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