Saturday, January 10, 2015

SOBREVIVENDO À SEMANA EM QUE O SÉCULO 21 BROCHOU



(por Chico Marques)

Todos esses acontecimentos terríveis envolvendo o massacre na sede do Charlie Hebdo que vitimou quatro grandes chargistas franceses -- entre eles, o octagenário Georges Wolinski --, mais a sensação de impotência decorrente de uma situação surreal como a que a Europa vive hoje, fizeram desse início de ano o início de ano mais brochante do Século 21 até agora...

É natural. Sempre que a barbárie ganha de goleada da razão, a sensação que fica é sempre essa. De certa forma, os atentados em Paris ocorridos esta semana foram piores que o 11 de Setembro em Nova York. Os ataques ao World Trade Center ao menos foram impessoais e malignamente democráticos. Já os dessa semana, não.

Apesar de tantas adversidades, o humor sobrevive. A duras penas, mas sobrevive. O Charlie Hebdo, por exemplo, não vai deixar de circular por conta do que aconteceu, e manda avisar que o tom anárquico praticado pelo semanário vai permanecer intacto.

Tudo isso, somado à crônica magnífica de Sérgio Augusto publicada neste sábado, 10 de Janeiro, no Estadão, contando a história da bomba que alguns militares colocaram na sede de O Pasquim -- e que só não explodiu por absoluta incompetência deles próprios, que não conseguiram armar a bomba direito --, me fizeram lembrar com saudades de uma pessoa vital na minha formação. Tanto a mundana quanto a intelectual.

Estou falando de Ivan Lessa. 

Fico imaginando Ivan agora, nesses dias, recepcionando Wolinski em algum lugar estacionado no tempo -- que pode ser tanto a Copacabana do início dos Anos 50 quanto a Paris dos Anos 60 -- e os dois, gargalhando. tramando uma nova série de "Gip-Gip-Nheco-Nheco".

Mais: Ivan cantando "I Apologize", de Billy Eckstine, para a primeira mulher trajando burca que passasse por eles, enquanto Wolinski começa a imaginar as formas do corpo dela e a desenha nua num guardanapo de papel?

 Para matar um pouco a saudade do senso de humor absolutamente ímpar de Ivan Lessa, corri atrás de velhas crônicas da fase mais anárquica dele, publicadas em O Pasquim, no Folhetim e no Jornal da Tarde nos Anos 70, 80 e 90 -- uma delas batizada, curiosamente, de "Je Suis O Touro!" --, que mantenho guardadas carinhosamente em uma pasta há vários anos..

 Mas só consegui matar a saudade para valer mesmo quando reli algumas entrevistas antigas concedidas por dele, e senti sua ironia implacável bem viva novamente. 

Divido aqui com vocês uma delas delas, obra de algum redator bem fraquinho e sem o menor jogo de cintura, com perguntas bem duras, feitas por escrito na ocasião do lançamento do Segundo Volume da "Antologia do Pasquim", em Julho de 2007.

Sem querer, esse redator acabou servindo de escada para Ivan destilar suas ironias e pequenas provocações -- claro que de forma extremamente cordial, sem jamais ser grosseiro.

E é por essas e outras que gente como Georges Wolinski e Ivan Lessa nos deixam com tantas saudades do Século 20.

Até agora, esse novo Século além de não consguir dizer a que veio, só conseguiu ser brochante e assustador.

Bradar "Je Suis Charlie" acaba sendo, de alguma maneira, a única atitude possível para os que se orgulham de suas almas libertárias e dos valores e ideais do Século XX dando o Norte para o que ainda está por vir.

Alguns sempre irão dizer que isso tudo tem cheiro de Batalha Perdida, mas, de repente, vai que...



 Com vocês: Ivan O Terrível: 



PERGUNTA - A segunda parte da "Antologia" cobre os anos de 72 e 73. Segundo a edição, essa teria sido a fase mais interessante do "Pasquim". E também a sua. Como andava seu ânimo profissional? E político?

IVAN LESSA - Sim, minha participação foi mesmo mais ativa. Mas a explicação é simples. Morava em Londres até 72, quando voltei para o Brasil e passei a trabalhar diariamente no "Pasquim". Meu ânimo profissional ia bem, obrigado. Tive outras ofertas mais tentadoras em termos de salário. Mas, no "Pasquim", na época vendendo pouco e em crise, eu estava entre velhos amigos. Ânimo político? Nunca tive, não tenho.

PERGUNTA - Como você selecionava as cartas a serem respondidas? Quantas você inventava? Depois que os leitores entraram no espírito da seção, ficou mais difícil?

LESSA - Eu pedia para a dona Nelma [secretária do jornal] a vasta pasta com as cartas. Tirava um punhado. Selecionava as que pareciam mais interessantes. Ou mais idiotas, se você preferir. E inventava apenas as obviamente inventadas. E a proporção é bem menor do que pensam. Ou dizem. Depois de um certo tempo, os leitores mais vivos entraram no espírito da coisa. Aí, é claro, ficou mais difícil. Dependia muito também de como andava minha paisagem interior. Sim, eu tenho uma paisagem interior, que anda, marcha, pula, isso tudo.

PERGUNTA - Entre os gêneros que você criou no jornal, as cartas inventadas, as falsas notícias comentadas e o horóscopo, de quais gostava mais?

LESSA - O que eu mais gostava de fazer mesmo era o "Pasquim Novela". O resto do que você menciona era ou muito triste ou muito chato. Não me lembro de falsas notícias. Toda notícia é, por definição, falsa. Ou farsa. Por aí.

PERGUNTA - E as que tinham subtexto contra a ditadura (sobre Papa Doc, a Inquisição ou Perón)? 

LESSA - Era para poder falar de nós falando dos outros. É a única vantagem da censura: obrigar o cidadão a exercer as disciplinas das entrelinhas, das alegorias, das insinuações.

PERGUNTA - Como funcionava a relação com os chargistas na seção "Gip, Gip, Nheco, Nheco"? 

LESSA - Eu escrevia os "gips" e eles "nhecavam". Em muitos eu tinha uma idéia ou sugestão para a ilustração. Mas muitas das frases davam para se agüentar em seus próprios pés. Acho.

PERGUNTA - Acredita que as pessoas vejam o "Pasquim" hoje com demasiada nostalgia?

LESSA - O "Pasquim" acabou. Para o bem ou para o mal.

PERGUNTA - Em entrevista à Folha, Jaguar disse que o jornal viveu mais do que deveria. Você concorda?

LESSA - Concordo. O "Pasquim" deveria ter acabado logo depois que começaram a botar azeitonas adoidadas em empadas alopradas.

PERGUNTA - Você acha que o "Pasquim" de fato revolucionou o jornalismo brasileiro?

LESSA - É, o jornaleco tirou as aspas da língua brasileira. Na medida do possível. Os outros méritos estão com todos os que escreveram ou desenharam ou tentaram uma contabilidade honesta com a publicação -chato ficar repetindo "Pasquim" ou "jornaleco", passemos então para os chavões. 

PERGUNTA - Você lê jornais brasileiros? Acha que estão melhores ou piores do que na época da ditadura?

LESSA - Passo os olhos eletrônicos neles. Continuam ruins como sempre. Loas para tudo que contribua para desencorajar um brasileiro, ou brasileira, a praticar o (risos) jornalismo.

PERGUNTA - As pessoas ficam intrigadas com o fato de você ter partido para Londres e praticamente nunca mais ter voltado. Você sentiu necessidade de romper com o Brasil?

LESSA - Não senti necessidade. Apenas uma baita de uma vontade de me mandar e só voltar em caso de muita, mas muita emergência mesmo.

PERGUNTA - Você se diverte com os jornais sensacionalistas?

LESSA - Acompanhar os tablóides chega a ser engraçado. Mas há muita coisa para ler, para ver na TV, muito pato para se alimentar no laguinho dos parques. Eu confesso que só vejo a primeira página nas bancas, que é o quanto basta. Ninguém os leva a sério. Principalmente os que fazem os tablóides. Aí até que dá para fazer uma ponte com o "Pasquim".

PERGUNTA - Num dos artigos você diz que o mundo se divide entre as pessoas que dizem "ôba" e as que dizem "êpa". Onde você se enquadra nessa classificação. LESSA - Êpa! O passar dos anos, a passagem dos ôbas...

 LESSA - Sei que não teve uma pergunta treze. Mas sou supersticioso e aqui está a prova.



O arquivo de crônicas de Ivan Lessa para a BBC-Brasil continua disponível. 
Quem quiser ler ou reler suas deliciosas crônicas, é só seguir por aqui:
 http://www.bbc.co.uk/portuguese/cultura/2009/09/090904_arquivo_2009_ivanlessa





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