Thursday, September 1, 2016

OS RÉGULOS E SUAS MIGALHAS (uma crônica de Marcelo Rayel Correggiari)



Respeitável público...

... até onde se tem notícia, Mercearia é uma coisa, teatro é outra. Contudo, em grata surpresa, o humilde estabelecimento comercial, depois de breve incursão no Procópio Ferreira, acabou caindo outra vez à boca da caixa-cênica: dessa vez, tendo o Ronaldo Ciambroni no cangote.

Apesar de todo o complexo onde esta inserido o referido teatro já necessitar de uma suave reforma (ou pequenos ajustes, como queiram), a felicidade foi retumbante. O equipamento em si, mesmo com todas as limitações orçamentárias dos tempos atuais, é bem porreta.


Foi com extrema alegria rever o querido Vera Cruz, ali, beirando a cidade vizinha, jovem, revisto, revigorado, habitado e movido por almas de um filme ‘noir’ que dão certo ‘baile’ nos passos obtusos frequentemente encontrados na principal cidade da região.

Como é bom estar diante de gente que não claudica.

Experiências edificantes que todo autor deveria fazer: a profilaxia de se estar diante de uma plateia para ouvir o que ela tem a dizer.

O público, eterno, e bem heterogêneo. A ‘turma do fundão’ composta de professoras de escolas de ensino fundamental locais, leitores de diferente matizes e crenças, escritores(as). Certo clima de festa com a proximidade do ‘finde’, ou as duas últimas aulas de sexta. ‘Thank god... it’s Friday!’.


Entretanto, no último giro do relógio, o papo ficou meio ‘brabo’. Nisso que dá Mercearia vender Lygia Bojunga Nunes...

‘Brabo’ no sentido da seriedade do tema abordado inusitadamente, o rumo que a conversa tomou. Tranquilizem-se: no “jogo de ideias”, os colóquios podem ser profundos, mas sem o menor traço de desavença.

Afinal, numa realidade de ‘sala-de-aula’, tudo o que é produzido fora dela, nela se apresenta, tão forte e intenso como os jogos que pessoas ‘abestadas’ jogam.

Acreditar piamente que um jovem de nove, dez anos, vai justificar ‘de peito aberto’ o que ele colocou na Bolsa Amarela é crer igualmente que os néscios soprando sessenta velinhas sobre qualquer bolo fazem o mesmo mundo afora. “Chupa, ‘fessora’!“.

Brilhante, criançada! Se o que vale para um, vale para todos, ou os adultos andam na linha e dão o exemplo, ou isso aqui vai ficar pior do que festa de debutante do Nero.


O ponto suscitado tem a ver com o mal do século XXI: a Era dos Ressentidos. Segundo o (Luís Felipe) Pondé, um direito custa tão caro quanto uma bolsa Prada. Um esforço e dispêndio de energia descomunais. Garantir os tais ‘direitos’ e não ter dinheiro para pagar por eles é que são elas.

O século atual é empertigado pelo fascinante ‘direito a ter direitos’. Mas “... dar um dia ‘pra’ nação...”, ninguém dá. O direito, ‘eu conheço bem’. “Deveres?! Ah... dever é opressão”.

O que não se avisou à choldra é que os deveres são essencialmente os geradores de créditos que, quando acumulados, pagam os direitos cujo valor elevado é o mesmo, ou até mais, de uma bolsa Prada.

Direito custa caro, e sua conta é paga pelos deveres. Sem dever, não há direito. As interações humanas, nesse momento de nossa história, estão sendo minadas por um cultivo alucinado do gozo do direito, mas sem nenhuma execução de deveres.

‘Id est’, passando de cavalo para burro a passos largos. E qualquer confronto na cobrança de deveres relega o reclamante à condição pária num piscar de olhos.


Se o ensaio é tornar orgânico o movimento do artista, logo, isso não é um dever: é a condição do fazer artístico. E ainda que fosse ‘um dever’, ele garantiria o direito da plateia, considerando valores razoavelmente ‘salgados’ na aquisição dos ingressos, à decência do espetáculo.

Nas interações humanas, tanto de amizade quanto ‘os amorosos’, o direito come solto, mas o dever da prática de um certo amparo, apoio, acolhimento e parceria, seja nos bons e nos maus momentos, é visto como ‘opressão’.

Só dever e nenhum direito, de fato, é opressão. O problema é que só direito e nenhum dever é lupanar, ‘casa-da-mãe-joana’ e afins. Querer gozar de ‘cumplicidade’, “você é meu amigão”, curtir a casa como se dela fizesse parte há, por baixo, três décadas têm o mesmo custo e esforço de um projeto espacial que enviaria o homem a Urano. “Mas... aí...”.

Aí entra toda sorte de defeitos e imperfeições que o(a) coitado(a) possa levar. Um “50-50” na jogada,?! Nem fodendo... É passar a bronca para um lado só e ‘tá’ tudo certo.

Certo?! Qual amor filial, fraternal e carnal resiste a um trem desse?! “Tem de ser do meu jeito” e a sua urgência pouco importa. Ah, tá! Será uma jornada pontilhada de lúgubres desdobramentos.

Não há mais a paciência para a exposição, dedicar tempo e atenção especiais ao outro para que o exercício do convívio traga paz para a alma e júbilo para a vida.

São só migalhas. Migalhas e mais migalhas: restos de tempo, paciência, atenção. Um açodamento dos infernos. “É isso aí, nenem... é muito ruim, é uma merda, mas é o que tem ‘pra’ hoje. Ah, vai... deixa de ser chorão(ona)! Você não tinha nada... ‘tá’ ótimo e é bom lamber os beiços”.

E, assim, muita coisa boa vai se perdendo. O tombo é iminente: as novas gerações não hesitarão (gra-ças-a-De-us!) em limar quem se refestelar exclusivamente no gozo pessoal e intransferível de seus próprios direitos.

Não hesitarão em matar o rei, em sacramentar sua deposição.


Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO




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