Wednesday, September 27, 2017

O FILME DA SEMANA É "LADY MACBETH", UMA OBRA EXUBERANTE DE WILLIAM OLDROYD


por Carlos Natálio (de Lisboa) para

 


Quando vamos aí a metade de Lady Macbeth (2016) há duas coisas que não podemos ignorar. A primeira é uma certeza, ela conta ao seu amante ao que vem, qual o seu programa: deixar ir-se na folia psicótica do amor até à(s) morte(s). A partir daí o realizador William Oldroyd encena toda essa tese de que há que remover os obstáculos todos, sem suspense, sem ironia trágica a não ser a solidão de que os terríveis vencedores padecem. Mas felizmente há também uma incerteza, e essa é a segunda coisa que não se pode ignorar. Para onde irá saltar ou pousar a seguir o gato de Lady Macbeth? Em toda a sua dimensão imperscrutável, esse gato ruivo, bastante magro, traços vincados e hirta cauda é, em toda a sua animalidade, a única personagem deste jogo, o único cujos insondáveis mistérios mantém a nossa atenção, nos mantém a suspensão própria do suspense.



Mas mais do que esta inversão recordo um plano em que o dito animal está pousado, salvo erro num sofá, e salta para cima, para o canto superior esquerdo do plano desaparecendo para off. Esse “salto de tigre”, com algo de George Méliès, mostra bem a outra coisa curiosa do filme (que, era suposto acreditarmos, emulava o universo de Alfred Hitchcock). Essa coisa é que, saltar para fora de campo, sair da geometria do enquadramento, da “jaula” cujas barras à esquerda, à direita, em cima e em baixo aprisionam as coisas na certeza da sua visibilidade, é traduzir cinematograficamente a angústia da condição feminina da mulher que havia de cumprir os seus deveres conjugais encerrada numa casa com o seu livro de orações, ou que mais tarde, deveria esperar o seu marido enquanto ele ia ali matar uns quantos vietnamitas. Assim, a grande história que deveria estar a ser contada em Lady Macbeth é a possibilidade de sair para o fora-de-campo, que neste caso, é o campo, o ar fresco dele.



Em alguns momentos, como naquele em que após a ausência do marido e do sogro, MacBeth é deixada só e recebe a visita de um vizinho da região, Oldroyd filma esse gesto: a mulher que sentada se levanta e a câmara não acompanha o movimento, fugindo/saindo ela súbita e bruscamente de campo, ficando cortada, apenas as linhas do torso, sem pescoço. Esse “suicídio” por decepamento voluntário da cabeça e da composição, que dura segundos é certo, acaba por nos mostrar uma rebeldia, uma aragem que tenta sair do “palco” daquela casa vitoriana, enorme e deserta, com suas portas que rangem e tacões que gemem no soalho (estes estarão longe de ser a única coisa que geme por ali), únicos elementos a excitar a solidão e o sono do senhora, da rainha que ali reina.



O problema de Lady Macbeth é que quando começa finalmente a ensaiar essa saída – da exposição inicial mas também da casa, do plano, do género em que é catalogado – acaba por decidir voltar a entrar – na casa, no plano e sobretudo numa tese da mulher enlouquecida que tudo e todos mata por amor. Essa tese devora tudo o resto e acaba por substituir hipóteses de personagem por peões nesse esquema de possibilidade (o que é que aconteceria se uma mulher fizesse…?; em vez de, “o que pensa e como age Lady MacBeth?”), acabando por encerrar-se noutra “jaula”, o filme que procura filmar a tragédia do avesso e que vai imobilizando-se (reduzindo o espaço da sua cela) cedendo ao filme vagamente erótico, vagamente perverso ou vagamente de terror.



Tudo termina quase como começou, com a certeza solitária de uma câmara que filma geométrica e frontalmente a sua personagem. Solidão no plano e solidão psicótica na vida. Esta circularidade, esta rigidez narrativa, são o avesso das chamas que consomem Manderley, no final de Rebecca (1940), de uma casa que também foi habitada por uma loucura confinada pela condição feminina e pelo fantasma da sua repressão. Ao contrário do filme de William Oldroyd, em Hitchcock tudo se move, tudo queima e se decompõe: ainda hoje todo o mistério aguarda resolução, ainda hoje secretamente desejamos ter conhecido (trocado umas palavras que seja) com a Rebecca original. Em Lady Macbeth tudo é estacionário, a chama é substituída pela térmita do tempo, pelo tempo que levará a que a casa e este seu “animado e belo móvel” com ela se decomponha; ou então, que o acaso traga mais um obstáculo que, como lenha para a fogueira, será certamente consumido. Uma e outra vez.


LADY MACBETH
(Lady Macbeth, 2016, 129 minutos)

Direção
William Oldroyd


Roteiro
Nikolai Leskov, Alice Birch

Elenco
Florence Pugh
Cosmo Jarvis
Christopher Fairbank
Paul Hilton
Naemi Akie
Golda Rosheuvel
Anton Palmer
Rebecca Manley

em cartaz no Cinespaço Miramar Shopping




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