Tudo é
comportamento?
O que levaria
alguém a fazer o que faz?
Qual o sentido
por trás de certos gestos e atitudes?
O cinema
francês, seja pela herança do Existencialismo de Sartre ou pelo esmiuçamento de
seus grandes pensadores como Proust, Foucault, Blanchot, Derrida e Deleuze, até
hoje se mostra revelador na crítica social (em especial, a dos costumes).
Uma coisa é
quase certa: em parte dos trabalhos produzidos pelos nomes supracitados, forte
influencia igualmente do pensamento psicanalítico, como o de Jacques Lacan.
Nessa miscelânea
que tudo abarca, a pergunta-chave que abrange essa escola francesa do
Existencialismo: “Mas que caralhos isso significa?!”.
O engano muito
comum entre os tupiniquins em relação a essa ‘escola filosófica’ é achar que
Existencialismo é ‘só sobre a existência’, “... o que nos faz existir...”, “...
por que existimos desse jeito...”, “... por que desse jeito e não daquele...”,
“... o que nos impede de atingirmos a felicidade...”, e por aí vai. O ‘trem’
vai bem mais além: boas quantidades de frutíferas indagações costumam
determinar um objeto de contemplação a ponto de tirá-lo de sua mais básica (e,
às vezes, grotesca!) abstração.
Ou seja, o
Existencialismo não seria somente sobre “o existir”, mas quais os significados
de tudo aquilo que nos cerca e/ou acontece em nossas vidas, o que a
“Existência” pode intuir & conceber em termos de significado, além de
atribuir significado sobre tudo e sobre si mesma.
“Qual o sentido
dessa josta?!” é a pergunta corriqueira de um(a) existencialista pela alta
madrugada com um copo na mão à mesa de algum bar-da-vida que se dignificou em
permanecer aberto até esse horário.
Pode também ser
de pé no Cinza. Sem problemas...
O
Existencialismo pode com certa segurança se tornar uma abordagem suficiente
quando os valores ao redor de alguns significados são revisitados. Isso
implicaria que eles são o ‘coração’ de tal pensamento, e as investigações sobre
seus eventuais desdobramentos são o núcleo de boa parte das contestações sociais,
dos costumes e da ordem das coisas.
Qualquer semelhança entre isso e o movimento do cinema francês a partir de 1958 conhecido como “Nouvelle Vague” pode não ser, assim, tão mera coincidência.
Qualquer semelhança entre isso e o movimento do cinema francês a partir de 1958 conhecido como “Nouvelle Vague” pode não ser, assim, tão mera coincidência.
O espírito
crítico a partir da figura do diretor nas reclamações de como o mundo se
arregimentava na época tornou essa escola do cinema francês influência para o
mundo inteiro. Amores, mulheres, a infância no ‘entre-guerras’, o espírito
humano em rebeldia contra as formas consagradas & carcomidas de interação
social, sexualidade, desejo, entre tantos outros temas, povoaram vários filmes
desse período.
Exceto pela
gritante falha de terem deixado Louis Malle do lado de fora da tertúlia, a
“Nouvelle Vague” é, até hoje, um dínamo combatente contra a perda das
sutilezas. Nesses dias ásperos onde um estilo musical como o Sertanejo pode ser
‘universitário’, mas caminha a passos largos para sua redução em ‘sertanejo
ensino médio’, “madureza”, ‘supletivo’ ou até mesmo ‘sertanejo telecurso’, esse
antídoto das mensagens frias costuma fazer um belo estrago. Se esses cineastas
ainda estivessem vivos, o pau estaria cantando em cima de todas essas ‘estrelas
da baixa fidelidade’ lindamente.
Dos vários nomes
da “Nouvelle Vague”, o de François Truffaut foi o que apresentou belo devir
entre 1958 até 1984, ano de sua passagem. Truffaut saiu da mera crítica ‘dos
costumes’ e se aprofundou nas sutilezas & sobressaltos do comportamento
humano. Nada mais atual.
Reza a lenda que
seu derradeiro foi o filme “Vivement Dimanche!” (“De Repente, num Domingo”), de
1983. Dois anos antes, o resultado de suas análises, vivências e constatações
de como um cérebro (órgão do corpo humano, físico) em mau funcionamento pode
terminar em tragédia foi catalisado em sua grande obra “La Femme d’à Côté” (“A
Mulher ao Lado”), de 1981.
É óbvio que o
filme pode sofrer, como tem sofrido, diversas análises a partir da diversidade
de abordagens que essa obra permite. Contudo, além de uma cinematografia
perfeita pela qualidade do registro da luz e pelas opções de visualizar a
quebra da dignidade através de portas e janelas, o enquadramento de Truffaut
está estreitamente relacionado aos níveis de psicose que um ser humano pode
atingir.
Sem querer fazer
qualquer ‘spoiler’ do filme, “La Femme d’à Côté” narra o reencontro de dois
amantes após oito anos. Mathilde Bouchard (intepretada pela monumental Fanny
Ardant) vai morar com o marido Philippe Bouchard (Henri Garcin) ao lado da
residência do antigo “affair” Bernard Coudray (interpretado pelo, então, jovem
e promissor Gérard Depardieu) e sua mulher Arlette Coudray (Michèle
Baumgartner). Esse segundo casal tem um filho de cinco anos, Thomas Coudray
(Olivier Becquaert).
Os casais se
tornam bons vizinhos e grandes amigos. Aos poucos, uma ginástica extraterrestre
de Mathilde e Bernard para esconder de seus cônjuges o romance psiquiátrico que
ambos tiveram.
No início,
aquele discursinho do “... deixa disso...”, “... ele(a) arruinou oito anos da
minha vida...”, “... não tem nada a ver...” e assim por diante. Com a sucessão
de encontros amorosos entre os antigos amantes, a coisa começa a ficar
esquisita: ‘forçação’ de barra, dedo na cara, gritaria, “bas fond”, pancadaria
num churrasco, ciúme sem nexo, invasão de privacidade... um troço!
A riqueza de
Truffaut em “A Mulher do Lado” é que ele nega (em sua crítica) essa historieta
de “paixão avassaladora” que muito habitou o romantismo latino dos franceses: o
que se vê é como um avançado estado de desordem psiquiátrica, geralmente vista
como “normal”, pode botar abaixo o que seria um bem sucedido ‘feliz acidente’
de um gostoso encontro amoroso.
O cineasta
francês, infelizmente, não tinha em 1981 a nomenclatura absolutamente desenvolta
que a psiquiatria e a neurologia apresentam 37 anos depois: grande depressão,
distimia, ciclotimia, bipolaridade (tipos 1 & 2), triciclotimia,
esquizofrenia, “borderline”, Síndrome de Burnout, entre várias.
É visível, nesse
filme, a cabeça ‘batendo no teto’ quando Mathilde, depois de saber que Bernard
superou a má-fase e está de ‘vento-em-popa’ com a esposa, dá um tremendo “crash”
através de uma incontrolável crise nervosa e vai parar numa clínica
psiquiátrica. Durante a internação, seu marido, Philippe, apenas resume o
tamanho do paquiderme como uma singela ‘depressão emocional’.
Fica para lá de
evidente que Truffaut estava brilhantemente no caminho certo, mas com as
ferramentas disponíveis naquele ano. Evidente, no filme, que muito desses
amores mal resolvidos, romances que embocam no que há de mais baixo em
agressividade e violência, são nada mais do que manifestações de uma interação
nociva provocada por um órgão do corpo humano que não anda funcionando bem: o
cérebro.
Na tese de
Truffaut em “A Mulher do Lado”, Mathilde e Bernard são acossados por uma
possessividade e virulência que já não se trata do batido ‘gostar demais’: não
há sexualidade, nem tampouco os ‘caminhos do desejo’. O que há é um avanço de
soberania sobre o(a) outro(a) como posse e colonização: não há uma justaposição
de itinerários, onde um enriquece o outro, mas uma estranha vontade de controle
de quaisquer aspectos que tenham formado as características do(a) parceiro(a).
A falência do
cérebro (como órgão do corpo humano!). Simplesmente.
A perturbação
que toma o(a) espectador(a) da metade para o fim do filme denota bem o tipo de
interferência absurdamente negativa que um belíssimo distúrbio psiquiátrico
causa na vida de quem a gente sequer imagina. Afeta muito, em grau, extensão e
número que é de dar medo.
Um troço nada
agradável. Para terminar do jeito que termina. Mas, aí, começa o ‘spoiler’: é
melhor o(a) querido(a) freguês(a) assistir ao filme.
De qualquer
forma, a denúncia de Truffaut é digna: ele, em 1981, já indicava: “... isso aí
será insuportável num futuro próximo. E bem endêmico... não haverá qualquer lar
nos próximos 30 anos que escapará desse tipo de sinergia macabra”.
Dito e feito! É
o que mais a gente encontra por aí, nas ruas, nas nossas próprias casas, nos
encontros, diluído até em letras de algum ‘sertanejo madureza’ singrando as
ondas do rádio. Ficou normal ser agressivo(a), escancaradamente agressivo(a). É
o mal sem sua mecânica, em estado-bruto. Um ambiente já cantado, literalmente, também pelo genial Morrissey em
seu “Heaven Knows I’m Miserable Now”: “(...) what she asked me/At the end of
the day/ Caligula would have blushed (...)”.
E viva Truffaut!!!
Puxa, que beleza de análise. Deixou-me muito curioso pra assistir a fita. Vou fazer isso.
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