por
Ricardo Vieira Lisboa
(de
Lisboa) para
Em
“La Vallée Fantôme” (O Vale Fantasma, 1987), de Alain Tanner, um dos
personagens, que é um realizador de cinema, diz: “O cinema é como um cancro.
Não, é infeccioso, é mais como a sida.” No ensaio sobre as metáforas da sida,
Susan Sontag chama a atenção desta passagem para sublinhar que aqui a
comparação com o síndroma se dá pela sua “latência que permite a utilização
mais específica da metáfora da sida [por comparação à do cancro].” Esta ideia
do cinema como entidade que se instala secreta e progressivamente nos
espectadores (espectadores cinéfilos, muito activos na suas rotinas ópticas) e
dentro deles se desenvolve, ocupando-lhes tudo, é certamente um
“sub-aproveitamento” dos contornos da sida, mas certamente uma metáfora
bastante elucidativa da relação obsessiva com a cultura do cinema.
No
entanto, a imagem da cinéfilia como vírus reflecte, em boa verdade, uma relação
com o cinema que não é dos espectadores casuais. É a daqueles que enformam o
mundo através do cinema, como se a sua percepção das relações, dos sítios, das
conversas, enfim de tudo o que os rodeiam, estivesse turvada pelas imagens que
da tela se instalaram nos seus corpos. A cinefilia coloca-se a jeito destas
metaforizações exactamente do mesmo modo que acontece com outros modos de
“infecção” cultural, em especial aqueles que replicam o viver: a montante o
teatro, a jusante os vídeo-jogos, artes que se emaranham nos jogos de
representação por si criados. Regressando a Sontag, logo em 1987 a ensaísta
percebeu que não era “de surpreender que o mais recente elemento transformador
do mundo moderno, o computador, recorra a metáforas colhidas na nossa doença
transformadora mais recente.” E também não é surpreendente que os modos da
cultura popular se tenham alterado tanto (e de forma tão infecciosa) com a
democratização da web 2.0.
Mas
já lá vamos. Se comecei com Tanner, passo agora para Carax. “Mauvais Sang” (Má
Raça, 1986) é, também, uma parábola sobre a sida, mas antes disso (ou através
disso), é uma parábola sobre a cinefilia. Luís Miguel Oliveira fez essa análise
aquando da reposição dos dois primeiros filmes do senhor Leos, sob o signo da
herança: “a transmissão é um tema central: há um vírus a dizimar a humanidade
(…) e se à época se viu aqui uma metáfora da Sida hoje a relação com a doença
parece meramente instrumental. Também na época se viu no filme uma abordagem do
tema da herança como um fardo (Daney escreveu isso, então, no Libération), como
se Mauvais sang fosse um filme para matar o pai [Godard] ou, então, para se
deixar matar por ele – que é possivelmente a moral da história.” Ready Player
One (Jogador Número 1, 2018) de Steven Spielberg é muito um filme que se deixa
ler nestes dois sentidos, o da herança cinéfila e o do consumo cultural como
fenómeno de massas.
Um
filme sobre o testemunho-infeccioso que se estabelece entre o consumidor-amante
e o objecto de desejo: que mais que uma mera entidade objectal, é, antes de
mais, uma larga entidade cultural, infundida pelos detritos que cada um de nós
(espectadores) nela deposita. A peça, o filme, o vídeo-jogo, como superfícies
infinitamente conspurcáveis, ao ponto de, sobre elas, já não se encontrar nada
senão a própria sujidade. Posto de modo muito erudito (e a pender para o
críptico), por Giorgio Bertellini, segundo o conceito foucaultiano da
genealogia do filme enquanto palimpsesto cultural, este será uma “estrutura de
multi-camadas [que] implica a perda das aurais textualidades ‘originais’, mas
também a expansão horizontal e pluridisciplinar das fontes de evidência
cultural. Assim, a modulação genealógica da obra de arte, isto é, a sua
relevância artística e cultural, resulta não só da sua específica acumulação
crítica, mas também da reunião heterogénea de textualidades restritas.” Estas
textualidades (os ditos detritos) são, num caso particular, a cinefilia, e num
caso muito significativo, a cultura de fãs (fan based culture), em torno dos
filmes, mas, de modo mais lato, em torno de todos os fenómenos da cultura de
massas (música, televisão, cinema, vídeo-jogos, cultura de internet, etc.).
Se
a empresa de revolução cultural que Spielberg constrói, onde tudo se equivale,
é uma metáfora sobre a liberdade da Internet (ameaçada pelos interesses corporativos
das grandes tech companies), é, paradoxalmente, um reflexo desses mesmos
interesses corporativos da indústria cinematográfica que descobriu, nos últimos
anos o poder da mercantilização da nostalgia. Há ainda a juntar um outro filão
dos grandes estúdios de Hollywood, os universos que se cruzam de filme em filme
onde a ideia de serialização se cristalizou completamente. Neste sentido, “Jogador
Número 1” não traz nada que, por exemplo, “Wreck-It Ralph” (Força Ralph, 2012)
já não contivesse em potência (e em ingenuidade), e é sintoma de um paradigma
de produção que parece cada vez mais fechado em si mesmo.
Em
termos de estrutura narrativa o filme deixa muito a desejar. O final é, aliás,
quase caricatural no modo como os lugares comuns e os arquétipos da fábula
spielberguiana se amontoam (os vilões presos no carro e a discutir, o velho
sábio que acolhe as crianças, os planos de grua que põem nas alturas, a harpa a
lamber as feridas superficiais, os gags descompressores…). No entanto, aquilo
que realmente fica é o momento da herança (lá está!), em que o próprio
Spielberg homenageia um dos seus mestres, Stanley Kubrick, transformando O
Iluminado (The Shining, 1980) num vídeo-jogo de terror (como só mesmo Spielberg
seria capaz) e, consequentemente, ter um vilão chamado Nolan Sorrento(ino).
Isso, e também uma ideia de mise en scène que descreve em continuidade o
universo digital (sinuosos planos sequência que mimetizam a torrente contínua
de informação), por oposição a uma montagem muito mais sincopada de campo/contra-campo
no “mundo real”.
“Jogador
Número 1” é, depois de tudo (ou antes de mais), um filme sobre essa
por-vezes-não-tão-fina-assim camada que se sobrepõe a toda a produção cultural
(de forma mais significativa a partir dos anos 70 – em resultado, também, do
próprio trabalho de Spielberg enquanto construtor e promotor dessa relação
obsessiva com os universos dos filmes). É um filme que propõe (ou melhor,
apresenta) uma substituição do real pelo OASIS (uma plataforma de realidade
virtual feita rede social hiper-complexa, criada por um fan boy nerd). Assim, o
romance primeiro, e o filme depois, enchem-se de infinitas referências da
cultura pop que ora são acessíveis ao mais comum dos mortais, ora são apenas
acessíveis por um nicho de conhecedores da não-tão-pop-assim história. Aliás, o
filme apresenta, como personagens, um conjunto de especialistas (de bata branca
e em ambiente de laboratório) que esmiúçam e teorizam a natureza dessas
textualidades que se sobrepõem no OASIS. A chave (literalmente) só será conquistada
por aqueles que se deixem mergulhar (bem fundo) nessa superfície (superfície
que se sobrepõe a duas outras: a superfície das imagens fílmicas e a superfície
da tela).
Em
conclusão, o filme procura uma fusão entre realidades, onde uma e outra se iluminam.
O OASIS enriquece-se com a realidade, e a realidade com o conhecimento virtual
(o amor origina pelas identidades esfumadas do online e as disfuncionalidades
sociais resolvem-se através do universo binário). Uma realidade híbrida (como a
nossa?) onde o concreto e o imaterial das relações humanas servem uma mesma
função: os encontros (e encontrões) entre cada um de nós.
JOGADOR
NÚMERO 1
(Ready
Player One, 2018, minutos)
Produção
e Direção
Steven
Spielberg
Elenco
Mark
Rylance
Olivia
Cooke
Hannah
John-Kamen
Simon
Pegg
Tye
Sheridan
Bem
Mendelsohn
Cotação
Em
cartaz nas Redes ROXY e CINEMARK
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