Monday, April 2, 2018

JOÃO e JEREMIAS - A PORRA DA HISTÓRIA (um folhetim beat de JR Fidalgo - 9ª de 16 partes)



CAPÍTULO XVI

Sentir aquilo era comum, mas nem por isso menos desconfortável. Imaginou se não seria aquela sensação semelhante à experimentada pelo último dos moicanos. Mas que diabos, ele não sabia nada sobre o último dos moicanos e, portanto, não tinha a mínima ideia de como o último dos moicanos se sentiu.

Mesmo assim, caminhando junto à amurada onde o mar lenta e suavemente batia, ele se sentia como o último dos moicanos, já que, por uma série de motivos e acontecimentos, apenas ele havia restado ali. Todos os outros, de uma maneira ou de outra, tinham sumido. O engraçado é que ele não tinha o mínimo sentimento de nostalgia ou rancor em relação à sua solitária condição de último guerreiro da tribo. Apenas uma necessidade básica: dar algum sentido àquilo tudo. Para quê? Ele não sabia, mas sentia que precisava fazer aquilo urgentemente, antes que…

Antes que…?

Uma onda um pouco mais forte bateu na amurada e respingou água salgada na sua cara.

Percebeu então que um grande cargueiro estava deixando a barra, rumo ao mar aberto. O sol estava forte, o céu estava azul, mas a superfície do mar estava cheia de detritos das mais variadas espécies, que boiavam ao sabor das marolas provocadas pelo cargueiro em movimento.

Antes que…?



A médica japonesa que o atendeu no pronto-socorro explicou que a tontura que sentiu pela manhã devia ser consequência de uma repentina queda de pressão. João, no entanto, embora não descartasse a pressão baixa, achava que aquilo tinha bem mais a ver com o fato de, durante toda a madrugada, ter ficado mexendo nos últimos textos que Jeremias havia lhe enviado.

Jeremias sempre lhe mandara mensagens que continham fragmentos de textos que, por menores que fossem, “fechavam” uma determinada situação, ou seja, era possível extrair dali uma pequena história, com começo, meio e fim, mesmo que, com freqüência, ele fosse obrigado a decidir de que forma e quando isso ocorria.

Agora, porém, Jeremias tinha mandado, ao longo de uma semana, cerca de 50 mensagens com fragmentos de textos anexados, sendo que vários desses fragmentos se referiam a determinados episódios que Jeremias contava, mas caiam em ordem aleatória na caixa postal. Ou seja, como num quebra-cabeça, foi preciso ir encaixando os fragmentos dos textos que chegavam aos contextos das histórias aos quais eles pareciam pertencer.

João não fazia a mínima idéia por que Jeremias havia feito tal coisa e, quando os primeiros e-mails começaram a chegar, chegou a pensar que o sujeito tivesse surtado de vez. No entanto, ao analisar melhor as mensagens, acabou percebendo que alguns fragmentos de textos, apesar da seqüência caótica de sua chegada, tinham relação com outros fragmentos que haviam chegado antes.

Embora tudo aquilo lhe parecesse um grande absurdo, ficou de certa forma enfeitiçado pelo desafio de juntar as peças daquele quebra-cabeça estúpido que Jeremias havia armado. Parou de tentar descobrir o motivo pelo qual Jeremias tinha feito tal coisa – se é que havia algum motivo naquilo – e, depois de um dia inteiro sem que qualquer nova mensagem houvesse chegado, um provável sinal de que a enxurrada havia terminado, João varou aquela madrugada colando pedacinhos de textos em pedacinhos de textos.

Quando deu por si, o dia já estava amanhecendo. Resolveu então fazer um café forte, pois sabia que seria inútil tentar dormir naquele estado de excitação que se seguiu ao fato de, aparentemente, ter conseguido decifrar o enigma antes que a esfinge o devorasse.

Foi quando colocava a segunda colher de pó de café no coador que sua cabeça começou a girar, como se estivesse em alto-mar.

“Não há motivo para preocupação. Isso não deve acontecer de novo”, afirmou a médica japonesa, encerrando a rápida consulta de emergência.

João decidiu não retornar direto para a casa. Sabia que, se fizesse isso, provavelmente acabaria voltando a mexer novamente nos textos de Jeremias, e não queria se arriscar a ficar tonto mais uma vez. Resolveu então caminhar um pouco.

 Era algo sobre o Airplane, quer dizer, o Jefferson Airplane, aquela banda californiana com base em São Francisco, que alguns consideram como a inventora do acid-rock, talvez porque todos os seus integrantes, ao que consta, tomassem muito ácido.

Mas, afinal, o que mais eles poderiam fazer, vivendo em São Francisco em pleno “verão do amor”? Tomar ácido, naquela época e naquele lugar, devia ser tão comum – e inevitável – quanto tomar um café com pão com manteiga na padaria da esquina, pelo menos, é lógico, para uma considerável parcela da população da São Francisco daqueles dias.

Mas era e não era sobre isso que João estava pensando, enquanto caminhava pela rua ouvindo uma coletânea do Jefferson Airplane no mp3 que carregava grudado ao corpo. Na verdade, ele estava pensando em bem mais coisas do que no fato de muito ácido e outras drogas terem sido consumidos naquele época.

As drogas, em especial as psicodélicas, eram apenas um ingrediente naquele imenso caldeirão. E, afinal, o que havia sobrado daquele caldeirão?

Alguma coisa devia ter sobrado e ele gostaria de saber o quê. Descobrir aquilo parecia ser da máxima importância para a sua sobrevivência.

Mas, de qualquer forma, quem conhecia hoje o Jefferson Airplane naquela cidade? Com certeza, muito pouca gente. E depois, quando ele chegasse em casa, provavelmente já teria esquecido aquele negócio todo e nunca mais conseguiria colocar aquilo no papel, como a princípio pretendia, até para tentar compreender o motivo daquela preocupação toda com coisas que haviam acontecido há décadas num lugar tão distante.

A questão é que o dinheiro estava acabando e ele precisava dar um jeito, qualquer jeito. Aliás, isso se tornou evidente quando ele, afinal, chegou em casa e descobriu que o telefone estava mudo.

“Porra, o telefone, a merda do telefone”,  pensou em voz alta, recolocando o fone no gancho.

Concluiu, contudo, que a situação iria ficar bem pior dali a alguns dias, quando certamente a luz também seria cortada.

Como não havia nada que ele pudesse fazer no momento para mudar esse triste destino, foi para o computador e ligou o aparelho. Era algo que ainda podia se dar ao luxo de fazer, enquanto houvesse energia circulando pelos fios dentro das paredes da casa.

“Ficar solitário, pensou ele, é o tipo de jogo no qual não se pode fingir ou blefar, é preciso ser algo real, tão real que dói.”

Isso estava escrito num livro de David Goodis, Sexta-Feira Negra. Mas, como acontecia com o Jefferson Airplane, muito pouca gente devia conhecer David Goodis naquela cidade. E que importância isso realmente tinha diante do fato de agora ele estar sem telefone e prestes a ficar sem luz?

De qualquer forma, havia escrito aquela frase na tela do computador, –Ficar solitário, pensou ele, é o tipo de jogo no qual não se pode fingir ou blefar, é preciso ser algo real, tão real que dói. -, compreendendo que era exatamente aquilo que precisava fazer naquele momento, isto é, encarar sua própria solidão para que dali, daquele refúgio desolado, pudesse enxergar com um pouco mais de clareza onde estava e qual o rumo a seguir.

A questão é que, como o tal Goodis advertia, não era possível fingir ou blefar. Ou, como o escritor alertava um pouco mais adiante, era “você dando as cartas para você mesmo”. E isso doía, ah como doía. E ele sabia bem disso ali, em frente à tela do computador, agora sem telefone e às vésperas de ficar no escuro.

Então, algo dentro dele, lhe mandou uma espécie de aviso: “Você está tentando, mais uma vez, controlar tudo. E você sabe que isso é uma tremenda besteira.”

Bem, ele até concordava com isso. Estava, mais uma vez, tentando assumir o controle do rumo das coisas, como se isso tivesse dado certo em alguma ocasião antes. Aliás, como se controlar o rumo das coisas fosse de alguma maneira possível em qualquer ocasião.

Ok, ok, ok, era insanidade dele, a velha insanidade, mas, ao mesmo tempo, não podia simplesmente ficar parado, esperando que as coisas acontecessem.

Nunca tivera a mínima vocação para práticas orientais – nem ocidentais – de meditação, embora, durante considerável período de sua vida, houvesse tentado atingir algum tipo de estado mental transcendental que lhe permitisse suportar um pouco melhor aquela angústia crônica que sentia bem no meio do peito ou, para ser mais exato, entre o final da garganta e o lugar onde imaginava que seu estômago começava.

Ok, ok, ok, soltar as rédeas, deixar as coisas acontecerem, não apressar o rio, afinal eles não dizem que o rio corre sozinho?

Então, relaxar, relaxar, relaxar…

Não se preocupar nem mesmo com o fato da tela do computador ter, de repente, ficado totalmente escura, já que, ao contrário de suas previsões, os caras da companhia de energia haviam decidido cortar a sua luz exatamente naquele momento…
  


CAPÍTULO XVII

Jeremias ainda se sentia bem fraco, mas os tremores e as convulsões, resultado da abstinência, como lhe explicaram, haviam cessado, o que, para ele, era algo meio milagroso, já que tinha certeza de que aquelas crises eram prenúncio certo de sua morte iminente. A situação não era nova. Embora aquele lugar fosse um pouco diferente dos anteriores, já tinha passado por situações como aquelas várias vezes antes.

Aliás, voltar a situações como aquela havia se transformado mesmo numa espécie de rotina nos últimos anos. E era exatamente essa rotina que Jeremias já não suportava mais. Precisava escapar daquilo tudo. Primeiro, escapar daquele lugar, depois escapar de todos os lugares como aquele. Precisava de um plano que não falhasse, como acontecera com todos os planos que havia traçado até ali. Ele pensava nisso, deitado na sua cama, quando o sino tocou, indicando que todos deviam se levantar e, em 20 minutos, se apresentar no refeitório, para tomar o café da manhã.

O problema é que, a cada dia, ficava mais claro para Jeremias que escapar dali não era o problema. Isso seria até bem fácil, devido à sua longa experiência em manipular todos ao redor em locais como aquele. A questão crucial dessa vez é que ele não conseguia imaginar um só lugar para onde pudesse ir, saindo dali. Todas as opções haviam sido irremediavelmente queimadas. Diga-se de passagem, foi exatamente esse quadro sem saída que o levou àquele inusitado lugar, com certeza o mais bizarro de todos os que tinha freqüentado até o momento. Se existisse qualquer outra chance, Jeremias jamais teria aceitado ser enterrado ali.

Foi a constatação dessa triste realidade que fez com que Jeremias decidisse – se é que aquilo podia ser chamado de decisão – deixar que as coisas seguissem seu rumo por algum tempo, enquanto ele simplesmente permaneceria se equilibrando na margem do rio, atento à ocorrência de enxurradas que ameaçassem afogá-lo no mar bravio do qual, momentaneamente, ele estava a salvo.

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Falar de bocetas tinha vários problemas implícitos. O primeiro deles era uma questão de grafia. O correto seria grafar bocetas com O, de acordo com os dicionários. Ocorre que ninguém, quando falava, dizia boceta, mas sim buceta, aliás com o U bem pronunciado. Ele, contudo, optou pela grafia com O, pois achava “ mais elegante”. Lembrou-se então que Henry Miller, em um de seus livros, contava que conheceu uma mulher chamada Geórgia, que, de tão sensual, parecia ser, ela toda, uma boceta – ou buceta, não importa. O que importa é que, sempre que ele via uma mulher muito sensual, pensava: “Olha aí uma Geórgia”.

Lembrou-se também de um marceneiro espanhol, que conhecera através de Júlio, e que, com seus quase 70 anos nas costas, sempre repetia uma declaração poética-filosófica a respeito do assunto: “Uma boceta é uma boceta, é uma boceta, é uma boceta”. Jeremias e Júlio nunca perguntaram ao velho marceneiro, que  volta e meia encontravam tomando cachaça num boteco perto do centro da cidade, o que ele queria exatamente dizer com “uma boceta é uma boceta, é uma boceta, é uma boceta”. Eles simplesmente riam quando o espanhol enunciava a frase, como se soubessem exatamente do que ele estava falando. E como o marceneiro vivia repetindo isso, Jeremias e Júlio viviam dando risada e fingindo que sabiam o significado do que o velho queria dizer com aquilo.

Aliás, “uma boceta é uma boceta, é uma boceta, é uma boceta” foi o que Jeremias disse quando Carlos lhe mostrou um quadro que havia acabado de pintar: uma grande boceta ocupando a tela de lado a lado. O quadro, segundo Carlos, seria batizado de “Geórgia”, obviamente uma homenagem a Henry Miller, do qual andavam lendo vários livros na época. O problema foi quando Carlos perguntou a Jeremias:

“O que você quer dizer com ‘uma boceta é uma boceta, é uma boceta, é uma boceta’? É claro que eu sei que é uma boceta, eu pintei uma boceta, então é uma boceta, tanto que dei o nome de ‘Geórgia’, nome das bocetas que Henry Miller comeu. Aí você olha pra porra do quadro e diz: ‘uma boceta é uma boceta, é uma boceta, é uma boceta’. Que porra é essa?”

“Você conhece o Espanhol?”

“Que Espanhol?”

“Ah, eu não sei o nome dele. É um marceneiro, já coroa, que tá sempre bebendo cachaça com o Júlio lá naquele boteco onde a gente de vez em quando vai.”

“Não faço a mínima ideia.”

“Bom, não importa. É ele que diz.”

“Que diz o quê?”

“Que ‘uma boceta é uma boceta, é uma boceta, é uma boceta’.”

“E o que quer dizer isso?”

“Sei lá, acho que quer dizer isso, que ‘uma boceta é uma boceta, é uma boceta, é uma boceta’.”

“Mas o que isso tem a ver com o meu quadro?”

“Porra, você não pintou uma boceta?”

“Pintei.”

“Então, quando eu vi o quadro eu me lembrei do Espanhol.”

“Mas afinal você gostou ou não da merda do quadro?”

“É lógico que eu gostei, tanto que eu lembrei do Espanhol. O Espanhol deve continuar adorando bocetas, apesar da idade dele.”

“Valeu então.”

“Valeu.”


Jeremias também adorava bocetas, mas não entendia por que, ultimamente, as mulheres tinham entrado numas de raspar os pelos das respectivas bocetas. Quando elas não apareciam totalmente carecas, como na grande maioria dos sites e filmes pornôs atuais, sobrava apenas uma tirinha ridícula de pelos. Às vezes Jeremias achava que aquela moda tinha a ver com os reduzidos biquínis que as mulheres começaram a usar nas praias. Bem, ele até concordava que uma mulher, caminhando na praia, com os pentelhos aparecendo pelos lados do biquíni ia deixar todo mundo tarado na areia. Mas aí é que estava o ponto. Jeremias achava que os pelos circundando uma boceta eram um das coisas mais bonitas e excitantes do mundo.

Ao mesmo tempo, alguém havia comentado, em algum lugar, que a mania atual das mulheres rasparem totalmente as bocetas tinha a ver com pedofilia. Segundo a tal teoria, os homens passaram a gostar de ver as mulheres de bocetas carecas porque parecia que elas tinha bocetinhas de menininhas imberbes, e isso, teoricamente, dava mais tesão. Já um cara que mexia com cinema de propaganda, era viciado em filmes pornográficos e, sabe-se lá por que todo mundo chamava de Lagarto, disse um dia para Jeremias que as bocetas carecas tinham a ver apenas com “estética cinematográfica”. Nos pornôs, conforme o Lagarto, os diretores dos filmes exigiam que as atrizes e os atores raspassem todos os pelos, para “não atrapalhar os closes da câmera”.

Seja como for, Jeremias continuava preferindo bocetas peludas.





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JR Fidalgo: um jornalista
que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco
pra escrever e um compositor
que não sabe tocar.

(mas que, mesmo assim,
já escreveu três romances
e uma quantidade considerável
de canções ao longo
dos últimos 45 anos)

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