“SE NÃO FOSSE POR MAURICE, TALVEZ EU NEM CONTINUASSE DESENHANDO”
Um dos maiores
nomes da arte gráfica santista, Argemiro Antunes, o Miro, morreu
no último dia 20 de parada cardíaca, aos 76 anos, em Santos. Ele começou a
carreira em 1967, elaborando cartazes para as sessões do Clube de Cinema e
depois para a Cinemateca de Santos. Durante trinta anos foi o colaborador mais
próximo de Maurice Legeard, diretor de ambas as entidades, até a morte deste,
em maio de 1997.
Na entrevista a seguir, realizada em 27 de dezembro de 2007, Miro relembra
a importância de Maurice, que conseguiu trazer para Santos verdadeiras
obras-primas do cinema mundial, numa época em que o cinema ressurgia com uma
linguagem nova e poderosa, amparado em nomes como Antonioni, Bergman, Buñuel,
Fellini, Godard, Kurosawa e tantos outros.
Do ponto de vista pessoal, Maurice Legeard também
foi fundamental no desenvolvimento artístico de Miro: “Se não fosse por ele,
talvez eu nem continuasse desenhando.”
Leia a seguir os
principais trechos da entrevista:
Márcio
Calafiori — O que sabe sobre a fundação do Clube de Cinema de Santos?
Argemiro
Antunes — O que eu sei é o que o Maurice me contou. Acho que
foi fundado em 1948... [O Clube de Cinema
de Santos foi fundado em 16 de outubro de 1948]. Com Gilberto Mendes,
Nelson Alfinito, Roldão Mendes Rosa. Mas como cada qual tinha as suas
atividades, o Maurice passou a cuidar do clube sozinho, isso já nos anos 50.
Ele trabalhava no Expresso Luxo e assim podia trazer cópias das distribuidoras
de São Paulo. No começo, eram filmes 16 milímetros, exibidos no Cine
Bandeirantes, onde hoje é a Aguiar Pneus, na rua Lucas Fortunato.
Quando
exatamente ouviu falar do Clube de Cinema?
Eu tinha um amigo, o Ronaldo, que era operador de
cinema no Cine Bandeirantes. Ele me dizia às vezes: “Hoje tem sessão do Clube
de Cinema.” E eu ficava pensado: “O que é isso, Clube de Cinema?”. Nem
imaginava que um dia fosse conhecer o Maurice. Só o conheci em 1967. Fui
apresentado a ele pelo pintor Juracy Silveira, meu amigo até hoje.
Você
frequentava o Cine Bandeirantes, mas não sabia que ali havia atividades do
Clube de Cinema? Consegue determinar mais ou menos o ano?
Isso foi em meados dos anos 1950.
O interessante no Clube de Cinema eram as discussões depois dos
filmes. É isso mesmo?
A grande virtude do Maurice, o trabalho
importante dele, foi trazer para Santos o cinema alternativo. Ele trazia filmes
que jamais você iria assistir no circuito comercial. Um que ele trouxe foi Guerra e Humanidade [1961], do Masaki Kobayashi. Tinha nove
horas de duração! Foi exibido em três sessões consecutivas. Nas sessões do
Clube de Cinema no Bandeirantes, sempre ficava um grupo que gostava de debater.
Cheguei a participar de debates, mas em outras sessões, bem mais pra frente, e
não ali no Bandeirantes. Pelo que o Maurice me contou, os debates eram
tranquilos, apesar de se misturar gente com várias tendências políticas. Havia
um respeito muito grande entre os participantes.
Mas como você se aproximou do Clube de Cinema?
Eu trabalhava na Petrobras, no setor de
pessoal. Um dia o Juracy Silveira [pintor] esqueceu de bater o cartão de ponto.
Ele tinha uma certa dificuldade porque era constantemente deslocado para outros
serviços em que não precisava bater o cartão, depois voltava a bater etc. Tinha
saído uma norma na Petrobras de que se o cara esquecia de bater o cartão uma
vez seria advertido verbalmente. A segunda era por escrito, e a terceira
resultava em suspensão. A pedido do chefe dele, eu vivia quebrando o galho do
Juracy. Nessa época, eu morava no Guarujá e estava indo para a casa da minha
sogra, que mora até hoje no Morro do Marapé. Aí eu vi o Juracy no bar Cais Novo, na esquina da Carvalho de Mendonça com a
Saturnino de Brito. Aí eu falei brincando: “Ô, rapaz, vê se para de esquecer de
bater o ponto.” Começamos a conversar e eu contei a ele que gostava de desenho.
O Juracy sempre me incentivou muito a desenhar e naquela ocasião me convidou
pra ir ao ateliê dele, que era na João Pessoa, antes do alargamento da rua.
Isso foi em meados de 1967. O ateliê era frequentado por um bocado de gente,
inclusive o Maurice. No dia em que estive lá, já estava me preparando pra ir
embora quando o Vasco Oscar Nunes [já
falecido] me disse: “Espera um pouco que vem aí um cara que adora cinema,
tu vai gostar de conhecê-lo, o nome dele é Maurice.” E aí o Maurice chegou
fazendo aquela festa. Depois fomos todos para o Mundial, na esquina da Itororó
com a General Câmara beber cerveja. Foi quando comecei a frequentar mais o
ateliê do Juracy, pois gostei do papo do pessoal. O grupo era formado por
Beatriz Rota-Rossi; Eloy Corrêa de Oliveira Neto, o Capiba [já falecido]; Floreal; João Carlos
Batista; Luis Garcia Jorge; Nilo Rovai [já
falecido]; Reginaldo Cavalcanti [já
falecido]; e Zoé [já falecida]. O
Maurice logo me convidou pra ir ao Clube de Cinema, que era na Ana Costa, 272,
apartamento 15. Fiquei encantado com tudo aquilo.
O que havia no clube?
Existia o arquivo. Para todos os filmes
que eram lançados, o Maurice abria um envelope. Ele recortava isso de jornais.
E ele já tinha formado uma biblioteca que se espalhava pelo corredor do
apartamento. Era ali que o Maurice fazia tudo e até mesmo projetava filmes. Ele
tinha um projetor de 16 milímetros. Aquele projetor fez história: andou por
sindicatos, faculdades etc. O Maurice exibia os filmes que eram difíceis de se
ver no cinema. Ele conseguia o material em São Paulo, com a Polifilmes e outras
distribuidoras, e exibia raridades. Uma vez ele fez uma mostra na Associação
dos Advogados de Santos que foi um negócio impressionante. O Silêncio [1963, Suécia],
do Ingmar Bergman; As Amigas [1955, Itália, direção de Michelangelo
Antonioni]. Do Vittorio De Sica, ele passou um monte de coisa boa. Comecei
a frequentar direto o Clube de Cinema.
Como passou a colaborar com o clube?
Uma vez o Maurice me disse que queria
fazer umas etiquetas. Ele tinha umas caixinhas de papel fotográfico e colocava
muito material ali. Ele separava por diretor, por filme etc. O Maurice tinha
tudo controlado. Fiz não sei quantas etiquetas a pedido dele. Fiz a guache, em
papel-cartão etc. Cada arquivo tinha uma cor e era dividido por diretores,
filmes etc. Depois, ele me convidou para fazer os cartazes para as sessões da
meia-noite, no Cine Roxy. Nessa época, o Clube de Cinema passava filmes no
Roxy. Quem era sócio, não pagava. Quem não era, comprava ingresso, pagava o
ingresso normal do cinema.
É verdade que foi o Maurice quem teve a ideia de fazer as sessões
da meia-noite em Santos?
Sim. O Campos [Francisco Campos, então proprietário da empresa Cinemas de Santos]
duvidou daquilo, disse que não ia dar certo. Mas
tanto deu certo, e foi um sucesso tremendo, que depois o próprio Campos tomou a
sessão do Maurice pra ele. E transferiu as sessões do Clube de Cinema para as
sextas-feiras.
As sessões da meia-noite do Clube de Cinema enchiam?
Algumas sim.
Como eram chamadas essas sessões?
Não entendi.
Não eram chamadas de “sessões malditas”?
Não. Chamavam de “sessão de arte.”
Complementando o que eu estava dizendo, depois da sexta, passaram o Maurice
para a quinta-feira. Aí não deu mais. Mas ele fazia sessões alternativas. Ele
fez muitas matinês com ciclos de cinema fantástico. Fez isso no Indaiá, fez no
Cine Teatro Independência...
Depois que o Maurice parou de exibir filmes no Bandeirantes, ele
passou a exibir onde? No Roxy?
Sim.
Ele continuou no Roxy até quando?
Não lembro direito. Depois do Roxy, ele
passou a exibir no Cinema I, que era o antigo Cine Glória, ali no Boqueirão,
perto da Conselheiro Nébias. Eles transformaram o Glória em Cinema I. Não sei
se foi uma imitação do Rio ou de São Paulo. O Cinema I foi inaugurado com Pele de Asno [1970, França, direção de Jacques Demy]. O Maurice passou a fazer as
sessões da meia-noite no Cinema I, que exibia também o que se chamaria depois
de cinema de arte, que não era para o grande público, que não entendia esse
tipo de filme. Vou te dar um exemplo: quando o Pier Paolo Pasolini dirigiu o Teorema [Itália, 1968], ele fez um
filme sob o ponto de vista de uma discussão europeia, a burguesia estagnada,
aquela coisa repleta de simbolismo. Como o filme ficou famoso, resolveram
passá-lo aqui, no circuito comercial. Eu tinha um colega que trabalhava comigo,
que não era chegado nesse tipo de cinema. O lance dele era filme comercial. Eu
falei tanto do filme do Pasolini, tinha lido tanto a respeito, que eu estava
ansioso demais pra vê-lo. Mas esse colega foi ver o filme antes de mim. Quando
ele chegou à seção, no dia seguinte, na Petrobras, ele abriu a porta, botou a
cara e gritou pra mim: “Eu quero matar o Pasolini!” (risos).
Então o Maurice tinha dificuldade para emplacar o Clube de Cinema?
Lembro quando o Maurice passou no Roxy o
8 ½ [1963,
Itália/França], do Fellini... 8 ½ é
aquele negócio de fluxo da memória... Quando acabou a sessão, um cara
interpelou o Maurice: “Porra, Maurice, que troço mais sem pé nem cabeça. Esse
Fellini é louco?”. A gente ria. O Maurice abria os braços como que dizendo: “O
que você quer que eu faça?”. (risos). Aconteceu a mesma coisa com Terra em Transe [1967]. O pessoal saiu
reclamando, pois esse filme do Glauber é em cima do fluxo de memória do
personagem do Jardel Filho [Paulo Martins].
Pelo que está dizendo, o público do cinema de arte sempre foi
restrito.
O pessoal que era sócio do Clube de
Cinema sabia dessa visão conceitual. Mas havia os curiosos. O cara não tinha o
que fazer, estava sem sono, ia para a sessão da meia-noite. Aí chegava lá...
(risos). Um dia o Maurice exibiu O Grito
[1957, Itália/EUA], do Michelangelo
Antonioni, que para mim é uma obra de arte. Inclusive esse filme tem uma
curiosidade, que é o ator Steve Cochran. A maioria dos filmes que o Cochran
fazia nos Estados Unidos era filme B, de western, gângster etc. Raramente ele
trabalhava num grande filme. Trabalhou em Os
Melhores Anos de Nossas Vidas [1946,
EUA, William Wyler], que é um clássico, mas foi uma das exceções na
carreira dele. Mas em O Grito o Steve
Cochran deu um show de interpretação. Pois os curiosos que compareceram para
ver esse filme só faltaram bater no Maurice. Não entenderam nada. (risos).
O Clube de Cinema tinha poucos sócios?
Tinha um número razoável.
E dava para manter o clube?
Para manter o clube era difícil. O Maurice
contava com a sessão da meia-noite porque aí ele pegava uma grana. Mas o
engraçado... engraçado, não, o triste é que o exibidor... exibidor é fogo. O
número de pessoas que ia ver o filme na sessão da meia-noite não era o número
exato que constava no borderô. O Maurice falava: “Porra, só deu isso de gente?
Qual é?”. Aí o Maurice começou a pagar um cara — um chapinha, como ele dizia — pra ficar na porta do cinema com um
conta-giros. Foi então que ele detectou uma baita diferença. Os caras chutavam
ele.
Onde aconteceu isso?
Aconteceu no Roxy. O Maurice passou uma
vez no Roxy, em 1968, numa pré-estreia, a Belle
de Jour [A Bela da Tarde, 1967,
França/Itália, direção de Luis Buñuel]. Deu uma enchida nessa sessão da
meia-noite que eu fiquei besta. O Roxy tinha mais de mil lugares. Duas horas,
duas e pouco da manhã, o Gonzaga estava cheio de gente que tinha saído do Roxy,
que tinha ido ver A Bela da Tarde.
Naquela época, antes de ser lançado, havia a propaganda e a polêmica em torno
do filme. Isso era uma delícia. A pessoa tinha um interesse muito grande em ver
o filme por causa disso também. Em razão da polêmica que cercou o filme do
Buñuel, o Gonzaga estava repleto, pois deu gente pra caramba nesse filme!
Engraçado é que quando a sessão dava mais gente, em vez de conhaque Dreher, o
Maurice bebia uísque.
Márcio Calafiori e Argemiro Antunes — (risadas)...
Argemiro Antunes — Ele
enchia a cara de uísque. Tinha um grupelho que ia para o Ponderosa [na esquina da rua Tolentino Filgueiras com a
avenida Ana Costa] e depois para o Casebrinho [na Ana Costa com a rua Azevedo Sodré]. Lembro quando
passou Viridiana [1961, Espanha, direção de Luis Buñuel].
Ela, a Viridiana, socorria os mendigos, levou-os para uma mansão. Quando chegou
ao Casebrinho, o Maurice já estava de cara cheia. Tinha uma janela que dava pra
fora, e havia uma mesa ali. E a turma toda ficou naquela mesa. Aí o Maurice
aparecia na janela com o copo de uísque na mão e dizia: “Vocês são os mendigos
do Viridiana.”...
Márcio Calafiori e Argemiro Antunes — (risadas)...
Isso em que ano mais ou menos?
1969, por aí. No Ponderosa dava de tudo,
até o Erasmo Dias [coronel do exército,
ex-secretário de segurança pública de São Paulo e depois deputado estadual, já
falecido]. Era um restaurante, na esquina da Tolentino Filgueiras com a Ana
Costa. O nome “Ponderosa” era como se fosse escrito a mão, num tronco cortado
no sentido longitudinal, pendurado em correntes. Isso por causa do “Ponderosa
Ranch”, do Bonanza. O dono era o Demetrio. O Maurice cansou de xingar ele de
botequineiro de merda. O Demetrio era ladino, muito esperto. Às vezes, o pau
quebrava — mas não às vias de fato — do Maurice com o Juracy, e do Maurice com
outros. Uma vez, ele estava brigando com o Juracy: “Põe um conhaque aí,
Demetrio”, o Maurice ordenou. Era uma discussão acalorada, o Juracy e ele
bebendo cowboy, numa golada só. Aí o
Demetrio disse: “O conhaque não é pra ser bebido assim, é pra sentir o
paladar.” “Paladar porra nenhuma. Vou é encher a cara!”, respondeu o Maurice.
Márcio Calafiori e Argemiro Antunes — (risadas)...
Depois do Cinema I as sessões do Clube de Cinema foram
transferidas para onde?
O Maurice passou filmes no Cine Teatro
Independência o ano de 1973 quase inteirinho; exibiu filmes brasileiros no
Bandeirantes, aos sábados à tarde. Exibiu filmes no Sesc também. Ele não podia
ser presidente do Clube de Cinema
porque era francês [nascido em Paris].
Só podia ser coordenador. O presidente tinha de ser brasileiro. Quando saiu o
AI-5, em 13 de dezembro de 1968, nós tínhamos sido convidados pelo Campos para
assistir a um filme chamado De Punhos
Cerrados [1965, Itália, direção de
Marco Bellocchio], na sessão da meia-noite, no Indaiá. Quando saímos do
cinema, estava um zumzumzum no Ponderosa, às duas da manhã: “Alguma coisa está
acontecendo em Brasília”. No dia seguinte veio a notícia do AI-5.
Mesmo assim o Maurice continuou com o Clube de Cinema?
Continuou, claro! Mas aí ele tinha de
rebolar para passar os filmes, era uma briga. Todos os filmes tinham
certificado de censura. Tanto é que na Polícia Federal perguntavam pra ele:
“Por que você só passa esse tipo de filme?”... “Que tipo de filme? Eu só passo
filmes que têm certificados de censura”, ele dizia.
Ele tinha de pegar autorização na Polícia Federal para passar os
filmes?
Não, ele tinha de apresentar à Polícia
Federal o filme que estava programado.
E os caras encrencavam?
Encrencavam, chamavam ele lá.
Sabe de algum filme que foi proibido?
Nessa época, não. Mas havia filmes que
ele nem trazia. Os que foram considerados subversivos, como Queimada [1969, Itália/França, direção de Gillo Pontecorvo] e A Classe Operária Vai ao Paraíso [1971, Itália, direção de Elio Petri],
nem vieram para o Brasil, nem foram distribuídos. Às vezes, em algumas sessões,
o Maurice não tinha o certificado pra exibir o filme, mas ele sempre dava um
jeito. Uma vez fomos para a casa de um amigo nosso. O Maurice levou uma cópia
em 16 milímetros de Barravento [1961, Brasil, direção de Glauber Rocha]
e projetou na parede. A turma foi toda. Essa casa ficava na rua Manoel
Tourinho. Era do jornalista Chico Hugo.
Como se deu a saída do Maurice do Clube de
Cinema?
No fim dos anos 70, o Maurice começou a
ter mais dificuldades financeiras. Naquela época, o Clube de Cinema ficava na
rua Luiz de Camões. Aí se mudou para o Super Centro da Vila Mathias. Nessa
altura, o Maurice pediu para o grupo formar uma diretoria, porque ele não
estava dando conta sozinho, estava oneroso. Formaram uma nova diretoria e em
seguida o Maurice teve muitos problemas. Depois, o Clube de Cinema foi para a
Cadeia Velha. Aí fizeram uma eleição pra decidir se o Maurice deveria continuar
ou não no Clube de Cinema. Como eu já disse, ele não podia ser presidente, pois
era francês. Até teve um membro dessa nova diretoria — não vou citar o nome —
que votou para afastá-lo. Foi uma época difícil. Na época do Clube de Cinema, o
acusavam de dormir na Cadeia Velha, de não fazer nada, de estar numa boa. Foi
um negócio nojento. O Maurice chegou a ser chamado ao 1º Distrito. Uma vez ele
foi a São Paulo e, ao entrar num sebo, encontrou ali uns livros que ele tinha
comprado para o Clube de Cinema. Ele identificou isso pelo carimbo. Aí ele
comprou os livros de novo.
E o que aconteceu com o Maurice durante essa crise?
Ele passou para outra cela da Cadeia
Velha, pois tinha cela sobrando. Fundou então a Cinemateca, isso no fim de
1980. [Maurice continuou como coordenador
cultural do Clube de Cinema de Santos até novembro de 1980. A primeira exibição da Cinemateca de Santos
ocorreu no dia 7 de março de 1981, às 16 horas, no Cine Teatro Independência,
com o filme A Última Ceia, de Tomás Gutierrez Alea]. É importante dizer que
o Maurice tinha muitas coisas que estavam no Clube de Cinema, coisas que ele
comprou. Ele tinha um salário também, mas era irregular. Na época do Clube de
Cinema, ele chegou a ser despejado. Andou de um lado para o outro. Foi parar no
Centro de Cultura Patrícia Galvão. Depois, foi espirrado de lá. Foi parar no
Senac da Conselheiro Nébias. O Senac lhe pagava um salário. Ali, o Maurice
passava filmes em 16 milímetros, regularmente. Mas num belo dia o Senac também
encerrou o negócio.
Então ele não tinha sossego para passar filmes de arte?
Em retrospectiva, ele foi sendo chutado
de um lado para o outro. Depois que saiu da Ana Costa, 272, abriu o Clube de
Cinema na rua Pará, 98. Era uma casa, com quintal. Ali, ele fez uma sala de
projeção, passava filmes para a molecada, fazia matinês. Passou inclusive A General [1927, EUA, direção de Buster Keaton]. Depois da rua Pará, ele foi
para um depósito perto do Armazém 1, no cais. Algumas coisas do Clube de Cinema
depois se perderam naquele depósito, como por exemplo umas cadeiras antigas de
cinema. Foi assim que o Maurice acabou indo para a Luiz de Camões; da Luiz de
Camões foi parar no Super Centro da Vila Mathias e depois na Cadeia Velha, onde
criou a Cinemateca como firma.
Depois da saída do Maurice do Clube de Cinema a entidade perdeu
importância, não?
Acho que perdeu. Quem tomava conta dos
restos mortais do Clube de Cinema era o José Roberto Alfinito [já falecido]. Até que as coisas que
sobraram acabaram voltando para as mãos do Maurice. Muita coisa o cupim comeu
lá na Cadeia Velha. E muita coisa foi levada embora por alguém, mas não sei por
quem. Mas o que sobrou daquilo acabou voltando para o Maurice. E está na
Cinemateca até hoje, com a Patrícia [Patrícia
Legeard, filha de Maurice]. Aí começou a onda do vídeo. Na Cinemateca, o
Maurice fez um grande acervo de fitas VHS. Só que a Cadeia Velha era um lugar
muito ingrato, úmido. Não tinha banheiro na cela e a cela não fechava. No
inverno aquilo lá era um horror. E ainda tiveram a coragem de dizer que o
Maurice não fazia nada, que vivia numa boa, como se ele vivesse no conforto de um
hotel cinco estrelas?
Ele morava na Cadeira Velha?
Morava lá, morava... Ele chegava de fogo
e tinha de subir na grade para abrir o cadeado. Como nessa época eu trabalhava
no porto, levei uma ferramenta de grampear mercadoria, um ferro com
parafuso e uma trava. Fiquei o dia inteiro com um ponteiro e uma marretinha
furando e chumbei para o Maurice não ter de subir na grade. Mas ele sabia
improvisar, tinha uma organização muito legal. Quando pegou a cela da frente,
ele mesmo pintou e encheu as paredes de cartazes, pintou umas faixas em
diagonal. Eu fiz uma exposição lá que ficou na história: “Dois Anos Sem
Glauber”.
E essa fase do Maurice na Cinemateca como foi?
Ele montou um grande acervo de vídeo.
Era interessante porque ele comprava nas locadoras. A gente andava por aí,
bisbilhotando as locadoras que vendiam os filmes que não saiam. Esses eram os
filmes que interessavam para o Maurice, filmes que não saíam mesmo, que os
clientes não alugavam.
O que ele fazia com essas fitas? Ele alugava?
Na Cinemateca, ele alugava para os
sócios. Ele punha as fitas numas caixas com folhetos falando dos filmes etc.
Mas tudo mofava muito na Cadeia Velha...
Além de entrar nessa de fitas VHS, ele continuou exibindo filmes?
Ele exibia na Cadeia Velha e em outros
locais. Em parte dos anos 80, chegou a exibir no Iporanga 3. Mas aí tudo ficou
mais difícil. Os exibidores não lhe davam mais espaço.
Mas ele conseguia exibir filmes na Cadeia Velha?
Em 16 milímetros. Por exemplo, em 1988
ele fez a mostra do cinema francês. Para essa mostra eu fiz os cartazes. Ele
conseguiu os filmes com a Aliança Francesa. E clássicos, verdadeiros clássicos.
Os Visitantes Da Noite, do Marcel Carné [1942]; Esta Noite É Minha
[1952, França/Itália, direção de René
Clair] e outros. Ele fez uma dobradinha com o José Roberto Alfinito, que
tinha uma outra entidade cultural em homenagem ao pai dele, o Nelson Alfinito,
que se chamava Gana (Grupo de Arte Nelson
Alfinito). Aí ele passou um ciclo de cinema alemão através do Instituto
Goethe. O Maurice e o José Roberto Alfinito conseguiram todos aqueles filmes
alemães.
Tinha acomodação para o público na Cinemateca?
O Maurice comprou cadeiras de plásticos
preta e brancas, cadeiras confortáveis, daquelas que envolvem bem as costas. O
pessoal não reclamava, mas ia pouca gente. Às vezes, não aparecia ninguém. Aí
ele falava: “Pô, não veio ninguém, chapinha... Então vamos nós assistir o
filme.”. Era um negócio muito ingrato.
O Maurice chegou a ser presidente da Cinemateca?
A Cinemateca foi uma firma, uma
iniciativa própria, que ele abriu em seu nome e no da Patrícia, filha dele. Ela
permanece com a firma até hoje. Quando o Maurice estava no Clube de Cinema,
muita gente o xingava de ditador. Acontece que ninguém assumia nada. Teve uma
passagem no Clube de Cinema em que o Maurice conseguiu formar uma diretoria: o
presidente foi o Lélio Marcus Kolhy, o Chico Hugo fez parte da diretoria etc.
Eles respeitavam o Maurice. Embora eu não fizesse parte da diretoria, uma vez
fomos para São Paulo nós três [Argemiro
Antunes, Chico Hugo e Lélio Marcus
Kolhy]. Fomos fazer contato com o Sindicato dos Jornalistas Profissionais
do Estado de São Paulo, na rua Rego Freitas. Quando voltamos, chegamos em
Santos, encontramos o Maurice num boteco. Ele, bêbado, começou a nos xingar.
Disse que queríamos tomar o Clube de Cinema dele. Aí os caras se encheram e
deixaram ele sozinho de novo. Foi assim que ele levou essa pecha de ditador.
O Clube de Cinema tinha apoio do poder público?
Não. O único apoio que o Clube de Cinema
teve foi do Campos, que deixava passar filme à meia-noite. Durante o período em
que o Maurice ficou no Senac, ele teve um salário. Mas depois que o Senac deu um
chega pra lá, ele voltou a ter de se virar para conseguir se sustentar com o
Clube de Cinema. A Cinemateca teve um incentivo no final, quando um pessoal
quis tirar ele da Cadeia Velha. Aí ofereceram um espaço para o Maurice na rua
Paulo Gonçalves e um subsídio. Aí ele passou a receber...
Mas quando ele estava na Cadeia Velha estava num próprio público.
Estava, não pagava aluguel nem nada.
Então nesse aspecto ele teve apoio.
Teve apoio dos delegados de cultura, do
Carlos Pinto.
E a fase final da Cinemateca como foi?
O Maurice continuou recebendo uma
graninha da Prefeitura, até falecer. Mas aí na Paulo Gonçalves ficou mais
difícil. Os cinemas restringiram o espaço mais ainda. Depois da fase do
Iporanga 3, ele exibiu no Sindipetro, fez ciclos de cinema lá, várias vezes. O
Sindipetro foi a saída dele. No Sindicato dos Metalúrgicos, ele deve ter
exibido alguma coisa, mas o Sindipetro foi o forte dele. Em 1985, inclusive, a
máquina dava problema. Depois, ele arrumou outro operador e a inauguração foi
com Os Companheiros [1963, Itália, direção de Mario Monicelli].
Aí ele fez um longo ciclo de cinema no Sindipetro. Ficou lá até 90 e poucos. A
última fase dele foi no Indaiá. Ele fez um ciclo no Indaiá, em 1997. Nesse
ciclo, o Larmarca [1994, direção de Sérgio Rezende] não
passou porque a Secretaria de Cultura resolveu fazer uma enquete com o público
a fim de verificar se interessava continuar com as sessões ou não... Olha,
prefiro não falar disso, pois vou acabar me aborrecendo.
Mas o Larmarca não passou?
Não!
O Maurice vivia de cinema. É isso?
Ele tinha a mania de dizer que ganharia
mais dinheiro vendendo alfafa. Divulgar o bom cinema naquela época já era
difícil. A única diferença é que naquela época havia muito mais gente ligada
nas coisas, gente mais politizada e interessada. A máquina de fazer imbecil não
era tão grande que nem hoje.
Voltando para o Maurice, ele sempre viveu com dificuldade?
Sempre, sempre...
Por que era difícil conviver com ele?
Quando ele bebia, ele agredia; às vezes,
até de graça. Muitas vezes, ele questionava as pessoas pela alienação, pela
falta de interesse. E ele não economizava. Usava muito vira-bosta, debiloide,
essas coisas... (risos).
Ele chegou a ser perseguido na ditadura militar?
Não chegou a ser perseguido como os
caras que gritavam “sou esquerda mesmo”. Mas que ficaram de olho nele, ficaram.
Nunca foi preso. Só era chamado de vez em quando à Polícia Federal por causa
dos filmes. O interessante é que na época do AI-5 eu não sabia nem quem era o
presidente do Clube de Cinema. O AI-5 veio pra ferrar com todo mundo: 1968, o
ano que não terminou. Está certo o Zuenir Ventura, genial. Em 1968, apareceu no
Clube de Cinema o presidente. Era o Peres, o José Demar Peres. Um cara muito
legal, o Peres. O Maurice me disse: “Miro, este aqui é o presidente do clube”.
O Peres chegou meio assustado lá...
Agora estou vendo o Maurice na minha frente... Quando ele bebia, ficava
de cara cheia, ele passava a mão na língua, dava uma lambida [imita Maurice]. O Juracy até hoje se
diverte com isso. A língua dele era de uma velocidade terrível. Se você fosse
fotografar (risadas). Mas ele cobrava muito.
Cobrava como?
Ele cobrava as pessoas para fazer alguma
atividade útil, intelectual, alguma coisa contra o Estado, contra o sistema.
Tanto é que ele defendia muito que o cara que lida com arte tem que ser uma
testemunha do seu tempo, mostrar a realidade.
O pessoal se afastava do Maurice?
Não tinham paciência com ele. O Maurice
era intolerante e aí batia com a intolerância dos outros. Eu sempre brigava com
ele.
O Maurice enfrentou bem o câncer? Como foi?
Enfrentou, enfrentou... Ele brincava
até... Eu chegava lá na Cinemateca com a minha barriga grande e ele dizia:
“Olha aí, chapinha. A melhor coisa pra perder a barriga é câncer.” Ele estava
pele e osso. Uma outra passagem foi quando a Santa Casa mandou ele fazer exames
porque iam operar a garganta dele. Ele fez os exames. Como não tinha recursos,
quando ele pegou o resultado e voltou ao médico para marcar de novo a cirurgia,
os exames não valiam mais.
Ele não tinha de plano de saúde?
Não tinha. Aí o médico falou pra ele: “O
senhor vai ter de fazer tudo de novo, porque os exames já estão perdendo a
validade”. Ele respondeu para o médico: “Então deixa pra lá”. E não fez mais
nada. E a quimioterapia? Eu ia com ele à Santa Casa. A gente voltava a pé. A
quimioterapia deixa a pessoa prostrada, é dose pra leão. Mas o Maurice
resistia, rapaz. Incrível! A gente ainda passava no Padeirão [casa que vende produtos de confeitaria e
padaria], na Joaquim Távora, para ver o que tinha lá. Negócio de forma,
disso e aquilo. O Maurice gostava dessas miudezas. Ele era ligado nessas
coisas. Aí o médico passou para ele mais quimioterapia. Aí ele falou para o
médico: “Ah, não vou mais fazer porra nenhuma”. Fiquei muito triste. Na véspera
da morte dele, sábado à noite, ele morreu num domingo, já estavam
descontroladas as funções...
Ele estava internado?
Não, ele estava em casa. No dia
seguinte, a Patrícia me ligou chorando porque ele tinha morrido. Disseram que
quando foram tirar sangue para os exames, nem sangue saiu da veia dele.
Ele não quis ser internado?
Não, porque quando ele ia para a Santa
Casa ficava naquele improviso, no corredor. Muito triste aquilo...
Para concluir: pessoalmente qual a importância do Maurice para o
senhor?
O Maurice me mostrou um mundo que até
então, eu que frequentava cinema desde garoto, não tinha consciência. Eu já
estava com 26 anos quando o conheci. Até então eu já tinha visto alguns filmes.
Tinha visto O Anjo Da Morte, um
grande filme theco [de Jan Kadar e Elmo
Klos]; A Estrada, de Fellini [1954, Itália]; Mercado De Ladrões, do Jules Dassin [1949, Estados Unidos]. Quando conheci o Maurice, sem mencionar o
filme, falei numa sequência do Mercado De
Ladrões: um caminhão vira, as
maçãs se espalham na estrada e o cara morre esmagado. E ele, na lata: “Esse filme é Mercado
de Ladrões”. Com o Maurice, eu descobri como ver o cinema, como ver a
política...
E o incentivou a criar também, não foi?
Incentivou, incentivou... Se não fosse o
Maurice, eu nunca iria me interessar muito em continuar desenhando, não! Ele me
mostrou um lado, político e social, principalmente, e eu passei a fazer as
coisas como crítica, desenhos de humor e essas coisas todas. E também arte no
cinema que foi a mostra do Glauber... O Maurice tinha uns negócios dele, muito
pessoais... Eu me lembro que quando estava tudo pronto, os painéis prontos para
inaugurar a mostra sobre o Glauber na Cadeia Velha, em 1983, nós fomos para a
rodoviária, enchemos a cara lá, e lá pelas tantas ele me disse: “Chapinha, quem
tá explorando quem nessa merda?”. Eu nunca pensei em fazer isso com o Maurice,
explorá-lo... Eu dei uma apostila que fiz sobre o Maurice para o Gilberto
Mendes. Depois encontrei com ele na Livraria Realejo e a Eliane, a esposa dele,
falou pra mim: “Pôxa, Miro, você foi um cara que conviveu com o Maurice sem
interesse. Foi um cara muito legal com ele”. Eu não escrevi isso. Ela
interpretou porque ela teve uma percepção. Eu fiquei admirado dela perceber
isso. Sem eu ter colocado nada explicitamente. Ela percebeu que foi uma coisa
sem interesse. Nem interesse promocional, nem interesse financeiro, nem coisa
nenhuma. Mas o próprio Maurice nunca entendeu assim. É incrível isso aí, né?
Ele era tenso, não?
Tenso, tanto é que a gente ia para algum
bar, quando ele tomava o segundo copo de cerveja, eu dizia: “Maurice, eu já vou
embora”. E ele: “Porra, por quê?”. Eu dava uma desculpa qualquer porque eu
sabia que depois da segunda cerveja e do primeiro... Não era mais conhaque,
né?... A situação ficou pior... Então, ele tomava cachaça mesmo!... Ele enchia
a cara. Depois, acabou ficando doente...
O Maurice chegou a parar de fumar?
Não parou nunca. Ele fumava quatro ou
cinco maços por dia. Fumava Belmont, contrabandeado, aquela bomba. Ele tinha
que ter parado de fumar há trinta anos. Depois na garganta dele só o que
passava era fumaça com nicotina, a única coisa que lhe dava prazer. Quem sou eu
pra chegar pra um cara desses e falar? Ele estava assumindo as coisas dele,
assumiu mesmo!
Argemiro
Antunes continua falando de Maurice Legeard:
Ele vivia sempre na contramão. O negócio
do Maurice era criar polêmica. Ele pegava uma pessoa e a irritava até quase
sair na mão, xingar. Aí, sim, ele ria, saia vitorioso. Lembro de uma vez numa
festa. Veio um pessoal de Campinas que fazia teatro. Tinha uma menina
bonitinha, loirinha, ela começou a dizer que fazia teatro. O Maurice começou a
encher o saco da menina. Até que uma hora ele perguntou: “Você conhece
Ionesco?”. Ela falou: “Não!”; “Então vocês não conhecem porra nenhuma de
teatro!”, disse o Maurice. Aí a garota: “Maurice, vai pra puta que te pariu.”
(gargalhadas). Quando a menina se tocou que era provocação, aí se desmanchou.
Vou te contar outra: Uma vez o Maurice foi falar de cinema na Faculdade de
Comunicação de Santos; tomou uns conhaques, chegou à sala de aula já
incentivado pelo álcool e falou sobre o diretor Lima Barreto. Encerrou dizendo:
“E tem mais: quando esse cara morreu faltou gente pra segurar na alça do caixão
dele”. Depois da palestra eu disse: “Maurice, o Lima Barreto que faltou gente
pra segurar na alça do caixão foi o Afonso Henriques de Lima Barreto, o
escritor, não o cineasta, o Victor Lima Barreto. E ele: “Ah, foda-se! Ninguém
entende porra nenhuma mesmo.”
Márcio Calafiori é jornalista.
Nasceu em 1957 e se formou
pela Facos em 1986.
Exerceu quase todos os cargos
em redações de jornais em Santos,
Santo André, Campinas e São Paulo.
Foi redator, repórter, revisor,
editor, secretário de redação,
chefe de reportagem e ombudsman.
Aposentou-se em 2012
como professor da Unisanta,
depois de 29 anos de dedicação
exclusiva ao Jornalismo Impresso.
Colabora eventualmente com
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