No
domingo à noite, vi o primeiro suspeito. Parecia ser uma senhora – eu estava a
uns 50 metros de distância -, vestindo um casaquinho verde, daqueles de senhora
mesmo, como uma personagem do jogo de tabuleiro Detetive.
Descobri
sem querer, havia descido para deixar o lixo na rua, mas percebi que ela parou
uns dois segundos antes de subir a escada, tempo suficiente para medir os
livros, ler as capas e levá-los para casa.
Tinha
colocado os livros ali, no hall de entrada do prédio, há menos de duas horas. A
intensidade e a frequência do sumiço das obras reforçavam o modus operandi e a
suspeita das especulações: alguém estava montando uma biblioteca a partir da
minha.
O
quase flagrante – ou a alucinação literária – é mais um episódio da história
que começou há um ano e meio. No prédio onde moro, há uma caixa de
correspondência grande, de quase um metro de diâmetro, no hall de entrada.
Nessa
época, inspirado por projetos semelhantes, passei a deixar livros e revistas em
cima da caixa, encostados na parede. Na caixa, ficam as cartas, a burocracia,
as contas a pagar da vida concreta. Acima dela, morariam temporariamente a
liberdade da literatura, o ácido em forma textual.
Era
uma forma simples de compartilhar textos bons, mas que não seriam mais lidos
por mim e que mereciam novos olhos de leitura. Uns dois meses depois, a então
subsíndica, Marlene, sem saber quem era o autor da ideia, oficializou a caixa
de correspondência como endereço oficial para troca e doação de livros. Um
cartaz plastificado selava o compromisso público com a literatura.
O
espaço começou a receber gente de toda ordem: de Cervantes com seu Dom Quixote
a apostilas de Ensino Médio, sem autoria definida; de Bram Stoker com seu
Drácula – capa dura, repassado para meu irmão André Rittes, vítima de alguém
com a “síndrome do pego emprestado, mas sumo com o livro” – a revistas Tititi,
variação contemporânea da lógica do terror. Vários saíram e outros acabaram nas
minhas estantes, como Cristóvão Tezza, Agatha Christie e coletâneas de crônicas
brasileiras.
No
último mês, dois fatores alteraram a dinâmica em torno dos livros. Marlene
deixou o cargo de subsíndica, e alguém encarou o lugar como cemitério:
abandonou à própria sorte dois volumes da Enciclopédia Larousse. Foram 30 dias
de agonia, que – a cada dia – reforçavam como certos livros podem se tornar
fora do catálogo da vida. Ninguém mais quis saber das enciclopédias. Como
concorrer com a maior e menor de todas elas, o Google, com muito mais volumes
que cabem no bolso?
Ao
mesmo tempo, percebi nos últimos 15 dias que os livros desapareciam mais rápido
do que de costume. Questão de horas. Notei também que ninguém mais doava
exemplares de coisa alguma. E os volumes da Larousse sofriam a agonia em praça
pública.
Não
dava para abrir duas frentes de atuação. Um passo por vez para não perder o
esforço. A primeira saída foi escolher um destino digno, dentro das
circunstâncias, para o pedaço de enciclopédia. Pensei em diversas hipóteses,
todas elas resultariam em lata do lixo, em qualquer ponto da cidade, no
anonimato.
Decidi
que a morte honrosa pela reciclagem era a opção. Os volumes, se reciclados
devidamente, poderiam reencarnar como livros didáticos. Ou romances de
qualidade. Ou obras de poesia. Ensaquei-os como uma caixa de enterro decente e
os encaminhei para uma nova vida, em outro plano espiritual.
Voltando
ao desaparecimento dos livros. Por causa de uma redução da minha biblioteca,
intensifiquei a doação de livros nos últimos 15 dias. De 20 a 30 obras por semana,
parte para meus alunos, um pequeno pedaço para amigos no caso de livros
específicos, e o restante para o hall do prédio.
No
hall, minhas doações evaporavam em duas horas, talvez três. Cheguei a fazer
quatro doações no mesmo dia, para manter o espaço ocupado. Até porque a nova
gestão aqui no prédio é modelo temer. Suspenderam a reciclagem de lixo,
retrocesso na política ambiental, um passo para acabar com o departamento de
Cultura, desconfio que sem a gritaria da classe artística-artesanal do condomínio.
Os
"sequestros" pareceram, para mim e Beth, minha mulher, ato bem
intencionado, um relacionamento consentido. Primeiro, acreditamos que havia
muita gente interessada em ler, que os livros estavam tirando tempo da TV e da
Internet. Depois, mudamos a hipótese: e se uma família toda resolveu ler, de
repente? Refletindo melhor, parecia improvável que o hábito nascesse, por
geração espontânea, para todos os integrantes de um único apartamento.
Sobrou
a terceira hipótese: um único beneficiário, reconstruindo ou construindo uma
biblioteca a partir da biblioteca aqui de casa. Hoje, aposto que foi a senhora
de casaquinho verde, com as próprias mãos, no hall de entrada. Não tenho outros
suspeitos, e ela pegou a escada em direção aos apartamentos da frente. Em um
deles, mora uma família nova há um mês.
A
senhora, por sinal, apresenta semelhanças físicas e etárias com a moradora
nova. Mas a suspeita não traz confiança, pois era à noite, com chuva, e eu
estava a 50 metros de distância, como escrevi, e sem óculos.
Hoje,
doei livros novamente. Eles sumiram outra vez. Independentemente do novo
leitor, queria só matar minha curiosidade, conhecê-lo, saber o que já leu,
discutir o conteúdo, sugerir novas obras e, acima de tudo, desejar bom passeio,
boa leitura. Sem crime, não há suspeitos.
P.S.:
Eu e Beth nos mudamos em 1º de setembro. Não sabemos como ficou o espaço.
Obs.:
Texto publicado no site QLivros, em 1º de junho de 2016. Texto publicado no
blog Palavra Cultural, em 10 de junho de 2016.
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros),
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015,
e mantém uma coluna semanal
no Boqueirão News
que é aguardada com avidez
por sua legião de leitores.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
para republicação no BAÚ DO MARCÃO.
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