O
SOL DE GLAUBER
Vigia portuário
e também artista gráfico, Argemiro Antunes preserva a memória de Glauber Rocha,
a quem considera o maior cineasta brasileiro. Agora, ele prepara exposição
sobre os 40 anos de Terra em Transe (Márcio Calafiori)
Argemiro Antunes é vigia portuário. Tem 66 anos e
mora em um sobrado no bairro Campo Grande, em Santos (SP). Vive ali com a
mulher Albertina e dois cachorros doentes — Thor, um shi-tsu de 15 anos, e
Gigi, uma basset de 7. Na parte superior da casa fica o seu estúdio. Na
verdade, um quarto e uma saleta adaptados, onde conserva mais de cinco mil filmes gravados
em fitas VHS e em DVDs. Livros, pilhas de jornais e revistas, fichários,
cadernos, pastas, desenhos, ilustrações e discos também integram a paisagem.
Nas paredes e também espalhados, parte dos pôsteres e cartazes produzidos por
ele em homenagem a Glauber Rocha, o diretor que, em sua avaliação, dividiu o
cinema brasileiro em antes e depois.
A morte do cineasta baiano em agosto de
1981, vítima de infecção generalizada, foi uma das notícias que
mais o abalaram. Ele relembra: “Quem me avisou, por telefone, foi um amigo.
Primeiro, ele perguntou se eu estava sentado. E então disparou: ‘O Glauber
morreu!’”. Desde então, Argemiro preserva a sua memória. No momento, está
revendo a obra de Glauber Rocha e também pesquisando, esmiuçando, remontando
arquivos e preparando novos desenhos e cartazes para a exposição em novembro,
no Museu da Imagem e do Som de Santos (MISS), sobre os quarenta anos de Terra em Transe. “Essa data é
importantíssima para o cinema brasileiro. Mas parece que esqueceram”, diz.
Aos vinte e dois anos, Argemiro ingressou na
Petrobras, em Cubatão, e aos vinte e três casou com Albertina. Em 1981, ainda
petroleiro, foi trabalhar no Porto de Santos como vigia. Por isso, argumenta,
nunca pôde estudar. É autodidata. Aposentou-se como petroleiro e como vigia em
1987, mas voltou a trabalhar no Porto em 1998, principalmente para ter com o
que se distrair depois da morte do amigo Maurice Legeard, que dirigiu o Clube
de Cinema e depois a Cinemateca de Santos.
Com quase vinte anos de idade, começou a registrar
em um caderno os filmes a que assistia. A primeira anotação é de 14 de abril de
1961: Se Meu Apartamento Falasse (The Apartment), direção de Billy Wilder.
As anotações já somam dezenove cadernos e não param. Mas Argemiro nunca se deu
ao trabalho de contar quantos filmes já viu desde que passou a registrá-los.
Hoje, as suas sessões de cinema são em casa, sempre depois da meia-noite,
quando o bairro está em silêncio: “Vejo dois filmes por dia, às vezes três. Só
vou dormir depois das quatro da manhã”.
Outra de suas distrações envolvendo o cinema é a de
se corresponder, por e-mail, com os membros do Clube Amigos do Western. Os
comentários do grupo são bem-humorados, minuciosos, nostálgicos e... sensuais.
Como esta mensagem enviada por ele aos amigos, incrementando uma discussão
sobre os coadjuvantes inesquecíveis das telas:
— “Gloria Grahame... Aquela carinha irreverente, com
aquele meio sorriso pendurado, fazia-nos sonhar como ela devia se comportar na
cama... Em Os Corruptos, Lee Marvin
desfigura o rosto de Gloria com café quente... Outro coadjuvante que eu
apreciava era o Lyle Bettger, o Klaus de O
Maior Espetáculo da Terra. Aliás, tenho uma velha fascinação por circos. Circo dos Horrores tinha Erika Remberg e
a música era Look for a Star. E
também A Morte Ronda o Espetáculo, em
que Clyde Beatty era, para variar, um domador, como em A Deusa de Joba. Betty Hutton, que morreu agora em março, também
tinha lá os seus predicados”.
Argemiro integrou-se ao Clube de Cinema de Santos em
1967. Logo, passou a produzir folhetos, cartazes, letreiros e capas de
programas para as sessões do clube. Mais tarde, elaborou o mesmo tipo de
material para a Cinemateca de Santos, até a morte do amigo Maurice Legeard, em
maio de 1997.
Influenciado pela irmã Judith, que desenhava e
criava modelos de vestidos, passou também a desenhar, isso antes dos oito anos.
No início dos anos 1950, com a televisão ainda incipiente, os bairros de Santos
abrigavam dezenas de salas de cinemas. Argemiro via de tudo, mas principalmente
não perdia os seriados do Flash Gordon,
os filmes de cowboy e O Gordo
e o Magro. Voltava para casa e se punha a recriar em papel de pão, quase
que quadro a quadro, o que vira na tela. “Eu gostava e gosto muito de
quadrinhos. Foi uma das primeiras linguagens que aprendi. Então, desenhava os
filmes como se fossem quadrinhos”, conta.
Como artista gráfico, o cinema é o assunto
permanente de sua obra. Glauber Rocha, um dos cineastas que mais o intrigam e
fascinam. A primeira mostra em homenagem ao diretor de Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe foi em 1983. Dois
Anos Sem Glauber foi realizada com o apoio da Cinemateca de Santos.
Argemiro expôs trinta trabalhos. No ano seguinte, realizou A Grandeza do Dragão, com 40 cartazes. Em 1987, nova mostra, agora
em comemoração aos vinte anos de Terra em
Transe. E outra em 1988, em que exibiu quinze trabalhos no saguão do Teatro
Dulcina, no Rio de Janeiro, num espetáculo inspirado em Glauber, montado pelo
dançarino Sylvio Dufrayer.
Em 2004, os quarenta cartazes de A Grandeza do Dragão entraram em
exposição permanente no Tempo Glauber, o acervo do cineasta, no Rio. João
Rocha, diretor de Relações Institucionais da entidade, diz: “Após avaliar o
material produzido por Argemiro Antunes, percebi que, além de artístico, tem um
grande poder para a pesquisa dos visitantes. Assim, tomei a decisão de
transformá-lo numa das exposições permanentes da casa. E foi a exposição
principal por mais de quatro anos”.
Argemiro não levanta suspeitas de que é um estudioso de Glauber. Ao falar do diretor, o
seu discurso não lembra em nada o de um intelectual. Não usa expressões
próprias do conteúdo acadêmico. É direto, quase rude: “Como artista, o Glauber
deu o testemunho de seu tempo”. Ele considera que o cinema mais importante que
se fez no Brasil foi justamente o Cinema
Novo, do qual Glauber é um dos fundadores. “O Cinema Novo tentou
compreender o país com a abordagem da literatura, da política e da sociologia”,
analisa.
Recentemente, Argemiro foi convidado
para falar de Glauber e de Terra em
Transe na Biblioteca Municipal de Cubatão e fez uma exposição no MISS — Miro, O Olhar Além da Tela, encerrada em
agosto —, com cartazes, tiras, charges — inclusive as produzidas
para O Pasquim, com o qual colaborou
— e uma história em quadrinhos inédita, Ganância,
de 1969: “A idéia foi a de mostrar um Miro além do seu trabalho focado na
Cinemateca e no Clube de Cinema”, diz o coordenador de cinema da Secretaria de
Cultura de Santos e diretor do MISS, Nívio Mota.
Ao falar sobre a obra de Glauber Rocha, Argemiro diz
que se trata de um “cinema sem concessões”. É enfático: “O Glauber fez o tipo
de cinema que quis fazer. No Brasil, foi um dos artistas mais incompreendidos
de seu tempo.
Por ser polêmico, sofreu muita intolerância e acabou se exilando
por causa disso. Era um cara com uma cabeça incrível, privilegiada, adiante de
seu tempo. Em 1964, aos vinte e três anos, ele internacionalizou o cinema
brasileiro com uma verdadeira obra-prima, Deus
e o Diabo na Terra do Sol. Não é pouco!”, diz exibindo o cartaz de Othon
Bastos no filme como Corisco, criado
por ele para uma das exposições sobre Glauber.
Argemiro tem ido cada vez menos ao Porto de Santos,
mas quando vai, vai de bicicleta. Usa a bicicleta também para ir ao Mercado do
Marapé, onde costuma se encontrar com o amigo e pintor Juracy Silveira. No dia a
dia, surpreende-se, às vezes, batendo boca com algum vizinho, principalmente se o sujeito em questão usa a furadeira na parede ou
aumenta demais o volume do aparelho de som ou da TV.
Um dos trabalhos que
preserva em seu estúdio é o roteiro de Terra
em Transe, transcrito a partir de uma cópia do filme. Para Argemiro, além
de cinema, Terra em Transe é poesia.
E relembra o choque que o filme causou na época do lançamento e do manifesto
internacional a seu favor, já que foi proibido — e depois liberado — pelo
governo militar: “É uma obra visionária que, infelizmente, carregada de
verdade, vai sistematicamente atualizando o Brasil. Está tudo ali: a corrupção
e a fraqueza dos políticos, as multinacionais, o povo vilipendiado. Que poder
de síntese tinha o Glauber! Ele escreveu as falas do Jardel Filho, que faz o
papel de Paulo Martins, o poeta, em função da entonação de voz dele. O Jardel
era um grande ator, tinha uma amargura na voz...”.
E Argemiro então declama uma das falas
de Terra em Transe como se fosse
Paulo Martins:
— “Quando voltei para o Eldorado, não
sei se antes ou depois, quando revi a paisagem imutável, a natureza, a mesma
gente perdida, em sua impossível grandeza, eu trazia uma forte amargura dos
encontros perdidos e outra vez me perdia no fundo dos meus sentidos. Eu não
acreditava em sonhos e em mais nada. Apenas a carne me ardia e nela eu me
encontrava”.
Perfil publicado na revista Brasileiros, em 2008.
Márcio Calafiori é jornalista.
Nasceu em 1957 e se formou
pela Facos em 1986.
Exerceu quase todos os cargos
em redações de jornais em Santos,
Santo André, Campinas e São Paulo.
Foi redator, repórter, revisor,
editor, secretário de redação,
chefe de reportagem e ombudsman.
Aposentou-se em 2012
como professor da Unisanta,
depois de 29 anos de dedicação
exclusiva ao Jornalismo Impresso.
Colabora eventualmente com
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