É impossível precisar quando começou. Eu tenho uma data de nascimento, 31 de janeiro, consciente de que é uma baliza frágil, apenas simbólica, para marcar o início do estado depressivo.
Cada vez que consigo refletir sobre o passado recente, descubro novas referências, outros episódios que poderiam ter servido de gatilho, outros sentimentos que inflamaram uma enfermidade que se aproxima em silêncio, corrói por etapas, brinca com suas resistências, finge se render para renovar forças, alterar táticas, começar tudo outra vez.
Estado depressivo é depressão em andamento. Estado é uma palavra que ameniza o problema, que nos conforta que talvez não seja tão grave assim. Estado me dá a ideia de transitório, de possibilidade, de um processo sem força para ser, apenas está. Portanto, desaparecerá na próxima curva, na próxima experiência de alegria.
Escrever sobre minha condição é indicar que estou no caminho da luz. Significa movimento, um soco na paralisia que muitas vezes me impediu de me levantar pela manhã e sair de casa. A dor física e o cansaço que foram tirados do contexto para não reconhecer que a nova amiga tinha subido em meus ombros, forçando que os joelhos encostassem no chão.
Decidi escrever porque a depressão me impediu de fazê-lo. Ela conseguiu me proibir de colocar para o mundo além da janela o que me mantém saudável. Aprendi com um amigo e peguei para mim a melhor razão para escrever: manter-se são, de corpo e de espírito.
Ela me roubou o prazer e – mais do que isso – sequestrou a necessidade de escrever. Escrever é a maneira que encontrei para me expressar até as profundezas. Ganho para falar, mas o faço como quem psicografa o pensamento alheio, um instrumento real quando se está professor ou se é jornalista.
Por isso, resolvi conversar sobre depressão pela palavra impressa. A exposição pode ser um mal necessário, capaz de conviver e dar a mão para a obrigatoriedade de desacelerar e refletir sobre minha própria condição. Trocar experiências, compartilhar vitórias, relevar derrotas. Sozinho é utopia. A saída de fresta única é o acolhimento, o apoio, a compreensão e a palavra do outro. Só deste modo meus ombros subiram um pouco.
Quando inicio o que espero ser uma série de testemunhos e reflexões, tento não apenas me dividir, mas também derrubá-la passo a passo, assim como ela fez comigo. Não é vingança, pois ela não merece tamanha importância além dos estragos e das feridas que abriu. É, infelizmente, a única chance de deixá-la ir, sem que perceba que saiu até que a porta esteja trancada e sem maçaneta.
Esta amiga se instala em doses homeopáticas, até que passou a morar comigo e comandar a casa. Resisti sozinho, compartilhei com quem amo os sinais até que não sentia os movimentos. Somente seguia, iludido pela fraude de quem escolhia o que fazer enquanto não notava que o leque de opções se encolhia.
Abaixei a bandeira, mas não estendi a branca. Pedi ajuda, fui acolhido e dei nome e sobrenome a quem me machucava sem emitir sons. Precisamos conversar, minha amiga depressão. Se for formal, posso te chamar de estado depressivo.
(publicado originalmente em 9 de Outubro de 2017)
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros),
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015,
e mantém uma coluna semanal
no Boqueirão News
que é aguardada com avidez
por sua legião de leitores.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
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