Thursday, June 28, 2018

DICIONÁRIOS (por Marcelo Rayel Correggiari)




De vez em quando, é bom nos debruçarmos sobre os dicionários.
Um dos principais perigos para o mundo hoje não está somente na destruição do meio-ambiente, atentados contra a vida ou estilo-de-vida que mais parece uma fábrica de fazer loucos(as): a capacidade de cognição também está sob sério risco.
Uma boa visita ao dicionário, nesse caso, pode ser bastante relevadora.
O bom e velho ‘livrinho’ de palavras (com versões online, pela internet, que atendem a todos os gostos) pode auxiliar na noção exata do que precisa ser expresso. Grande parte das pessoas não o utiliza. Por causa da preguiça, presunção, ou por entender que o bom uso das palavras é coisa de gente esnobe, pretensiosa, que deseja, acima de tudo, manipular todas as demais, os dicionários não são consultados.
Há, igualmente, uma outra explicação: um bom dicionário pode escancarar nossa limitação e ignorância sobre aquilo que julgamos ser o uso correto dos conceitos.
Em suma, um dicionário pode desmascarar o(a) querido(a) freguês(a), sem antes pôr abaixo qualquer princípio ou crença que bem poderia ser adotada pelas demais pessoas.
Nos dias correntes, não há livro mais subversivo do que um dicionário.
Simplesmente porque o danando contém, por intermédio da etimologia, o significado inicial e consagrado das palavras, boa parte delas bem mal utilizada nesses tempos bicudos.
Em caso de dúvida, esconde-se o ‘maledetto’ e “... abafa o caso!”.
Mal começo...
Nos dias atuais, o perigo, às vezes, vem com o nome de “ressignificação”. Tudo precisa ser revisitado e “ressignificado”. Um troço meio chato e canhestro. “Ressignificar” algo que já possui um significado consagrado esconde, em si, uma presunção e arrogância bastante perigosas.
Vamos por partes, então...
Se algo possui um significado consagrado, tal coisa não precisa de “ressignificação” (ou um “significado novo”, como queiram). Tal objeto já é entendido (ou quase isso!) por um número considerável de usuários de um código (no nosso caso, a Língua Portuguesa) e não haveria cabimento “... criar um novo significado...” para qualquer coisa que já possui o seu.
Confusão: uma costumeira ‘forçação-de-barra’ para que todos os demais incorporem um significado sobre algo que já possui o seu quando, na verdade, o jogo-de-fundo é a reutilização desse mesmo objeto sob o pretexto de ‘cenários diferentes e inéditos’.
Imaginemos “ressignificar” coisas simples e corriqueiras como cachorro, automóvel, muro, colher, teto, pasta, escrivaninha... seria somente uma “ressignificação”ou uma nova utilização de algo que já possui seu significado consagrado?!
Afinal, utilização nova e diferente de algo é uma coisa, “ressignificação” (ou significado novo) é bem outra.
Nem precisaríamos apontar um certo “cheiro da tramoia” contido nisso: como precisaríamos acobertar certa ‘picaretagem’ para novas utilizações que bem atendem interesses extremamente pessoais, colocamos o nome de “ressignificação” para ‘ficar bonito’ (ou ver se cola).
A presunção aumenta mais quando detectamos que “ressignificação” é um gesto (questionável!) do emissor da mensagem, jamais do seu receptor. O gesto do receptor é o de “interpretar” a mensagem, decodificá-la.
Voilá! É muita arrogância do emissor jogar tudo nas costas do receptor sob a égide de “... falta de lastro para decodificar mensagens mais quentes...”, “... fracasso do sistema escolar...”, “... mídia que não colabora em nada...”, “... educação de baixa qualidade...”, e por aí vai...!
Mesmo que com parco repertório e bagagem, qualquer ser humano tem capacidade de interpretar a mensagem que recebe. E essa interpretação acontece com os significados iniciais e consagrados das coisas, não sobre um “... novo significado...”, ou “ressignificação”, que só existe mesmo na cabeça do emissor.
Se um(a) receptor(a) de uma mensagem não entendeu a mensagem que recebeu é sinal que ele(a) interpretou corretamente o hermetismo característico daquela mensagem enviada (daí não ter entendido grande coisa). Ou seja, a leitura possui sua correção cognitiva básica (identifica que há metáforas e metonímias presentes na mensagem, e que o(a) receptor(a) precisaria de maior enriquecimento para uma completa decodificação).
Porém, tudo isso é feito sobre significados iniciais consagrados e não sobre “coisa ressignificada”. Uma ressignificação pode soar, da parte do receptor, uma espécie de “puxada de tapete”: uma imposição meramente idiossincrática.
Muito da baixíssima capacidade de cognição encontrada nos dias de hoje se deve a severas alterações na plasticidade do cérebro acompanhadas de diversas neuroses e psicopatias cada vez mais consideradas como “normais” em nossa lida diária. Coisas que atentam contra a segurança de qualquer exercício social, independente da ordem ou esfera. Isso é uma coisa. Entretanto, não são todas as pessoas que portam esse tipo de estado. Ainda há pessoas em perfeita sintonia com seus sentimentos e afetos. Logo, torna-se razoavelmente perigoso a “ressignificação” de algo sob o risco de se perder de vez um excelente contato que se tenha com uma plateia justamente por desautorizá-la em seu exercício de interpretação daquilo que lhe foi posto.
Em caso de dúvida, querido(a) freguês(a), todas vez que estiver diante de um discurso “ressignificado”, consulte um dicionário. Afinal, um grande mérito para tempos futuros é ter a sofisticação de saber o significado inicial e consagrado de tudo aquilo que nos cera.




Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,

e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO

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