Saturday, June 2, 2018

CAMINHANDO PELA FANTASIA (por Marcus Vinícius Batista)




Ele fala quase todo o tempo. Eu ouço, testemunho e faço breves perguntas para cutucar novas histórias. Até que aparece um teste de conhecimentos gerais. É o aviso sobre qual será o novo (velho) assunto.

— Você sabia que o primeiro jogo de videogame do Homem-Aranha é de 1987?

— Não sabia. Onde você viu isso?

— Youtube, pai. Youtube.

Se ele respirar, consigo emendar uma pergunta.

— Você sabia, filho, que eu ganhei meu único videogame, em 1987? Eu tinha 13 anos. Era um Atari.

— Sério? Você era um adolescente. Tinha jogo do Homem-Aranha?

— Não. Mas tinha mais de 100 jogos. Outro dia, vi numa loja para vender. Agora, é com entrada USB.

— Uau! Mas não tinha nenhum jogo de super-heróis?

— Não me lembro, filho.

A conversa sempre flutua em torno do mundo dos super-heróis. Vini coordena e organiza o diálogo. De vez em quando, entram assuntos mais sérios, como relacionamento com colegas de escola e lições de casa. Os colegas conduzem aos detalhes das esculturas de braceletes, luvas e garras de ... super-heróis, presentes do garoto que descobriu os trabalhos manuais e pretende espalhar sua obra para além dos muros da escola.

Eu e Vini criamos o hábito de percorrer um quilômetro de distância, todos os dias, perto da hora do almoço. É a hora de levá-lo à escola. É a hora de conversarmos a sós. É a hora dele me conduzir para seu universo, de jogos, personagens e histórias.

O trajeto começa na Avenida Pedro Lessa. Depois de três quadras, a primeira parada, na banca de esquina com o Canal 6. Ali, um sorvete ou uma garrafa d´água para peregrinar. A escolha do alívio líquido depende do clima, depende da minha disposição, depende do tempo de caminhada para chegar na escola no horário. A banca é um desvio de duas quadras, o que pode ser muito para o relógio enforcado.

O trajeto continua pelo canal 6, rumo à praia. Vamos pelo corredor de árvores, que nos garante sombra e brisa constantes, sem a barreira de prédios que isola a praia e inicia o efeito estufa particular.

O corredor também quebra a hegemonia dos super-heróis, trocados por outras criaturas mágicas, bem mais próximas. Paramos muitas vezes para observar os peixes pequenos, que nos fazem inverter papéis. Ressuscito a memória afetiva das latinhas furadas para apanhar os “peixes de canal”, em frente à casa de meus avós paternos, no canal 3. Vini não acredita que era possível pescá-los.

— E o que você fazia com eles? Colocava no aquário?

— Não, Vini, não pode. Eles são de água salgada. Morreriam no aquário, que costuma ser de água doce. Eu devolvia para o canal. Essa era a diversão.

Vini me olhou com certa desconfiança, mas não fez comentários. Acreditou, em princípio, na minha palavra.

Quase todos os dias, paramos um pouquinho para ver a garça Mariana, homenagem à irmã dele. Mariana tem o poder de se transformar em garça, sair de Cubatão, onde estuda, para nos escoltar até a escola. Depois, retoma a forma humana e retorna para a sala de aula. Ela nos observa de longe, não diz palavra, dá pequenos voos e, eventualmente, cutuca o fundo do canal atrás de algum petisco.

No caminho, a natureza nos prega uns trotes, tenta refrescar os peregrinos de meia hora. Certa vez, um pé d’água a duas quadras da escola nos deixou como pintos molhados. A escola, por sorte, tinha uniformes em estoque para emprestar. Há duas semanas, a chuva apertou e tivemos que nos abrigar num restaurante por quilo. Uma coca e uma garrafa d’água sofisticou o papo sobre games, youtubers, cinema, animações e seriados de TV. Tudo pautado pelo Vini que, ao se cansar de contar, pede opiniões.

— Pai, como seria o mundo se tivessem super-heróis?

— Vini, seria bem legal, mas não podemos esquecer de que teriam vilões também. Outra coisa: o mundo tem muitos heróis. A diferença é que eles não possuem superpoderes.

Vini pensou por uns segundos. “É mesmo! Assim já tá bom!”

Caminhar com meu filho de oito anos cinco, seis vezes por semana é uma experiência da qual ele vai se lembrar. É o que espero. Não tento adivinhar como a memória afetiva dele processa nossa vivência, mas estará lá em algum canto. Andamos entre a fantasia e a realidade, sem a pretensão de descobrir quem é o que. Apenas pisamos no mesmo ritmo, de mochilas me punho, na velocidade das pequenas experiências de conviver.



(publicado originalmente em CONVERSAS E DISTRAÇÕES em 14 de Março de 2018)

 
Marcus Vinícius Batista
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros)
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
para republicação no BAÚ DO MARCÃO.

No comments:

Post a Comment