Ele
fala quase todo o tempo. Eu ouço, testemunho e faço breves perguntas para
cutucar novas histórias. Até que aparece um teste de conhecimentos gerais. É o
aviso sobre qual será o novo (velho) assunto.
—
Você sabia que o primeiro jogo de videogame do Homem-Aranha é de 1987?
—
Não sabia. Onde você viu isso?
—
Youtube, pai. Youtube.
Se
ele respirar, consigo emendar uma pergunta.
—
Você sabia, filho, que eu ganhei meu único videogame, em 1987? Eu tinha 13
anos. Era um Atari.
—
Sério? Você era um adolescente. Tinha jogo do Homem-Aranha?
—
Não. Mas tinha mais de 100 jogos. Outro dia, vi numa loja para vender. Agora, é
com entrada USB.
—
Uau! Mas não tinha nenhum jogo de super-heróis?
—
Não me lembro, filho.
A
conversa sempre flutua em torno do mundo dos super-heróis. Vini coordena e
organiza o diálogo. De vez em quando, entram assuntos mais sérios, como
relacionamento com colegas de escola e lições de casa. Os colegas conduzem aos
detalhes das esculturas de braceletes, luvas e garras de ... super-heróis,
presentes do garoto que descobriu os trabalhos manuais e pretende espalhar sua
obra para além dos muros da escola.
Eu
e Vini criamos o hábito de percorrer um quilômetro de distância, todos os dias,
perto da hora do almoço. É a hora de levá-lo à escola. É a hora de conversarmos
a sós. É a hora dele me conduzir para seu universo, de jogos, personagens e
histórias.
O
trajeto começa na Avenida Pedro Lessa. Depois de três quadras, a primeira
parada, na banca de esquina com o Canal 6. Ali, um sorvete ou uma garrafa
d´água para peregrinar. A escolha do alívio líquido depende do clima, depende
da minha disposição, depende do tempo de caminhada para chegar na escola no
horário. A banca é um desvio de duas quadras, o que pode ser muito para o
relógio enforcado.
O
trajeto continua pelo canal 6, rumo à praia. Vamos pelo corredor de árvores,
que nos garante sombra e brisa constantes, sem a barreira de prédios que isola
a praia e inicia o efeito estufa particular.
O
corredor também quebra a hegemonia dos super-heróis, trocados por outras
criaturas mágicas, bem mais próximas. Paramos muitas vezes para observar os
peixes pequenos, que nos fazem inverter papéis. Ressuscito a memória afetiva
das latinhas furadas para apanhar os “peixes de canal”, em frente à casa de
meus avós paternos, no canal 3. Vini não acredita que era possível pescá-los.
—
E o que você fazia com eles? Colocava no aquário?
—
Não, Vini, não pode. Eles são de água salgada. Morreriam no aquário, que costuma
ser de água doce. Eu devolvia para o canal. Essa era a diversão.
Vini
me olhou com certa desconfiança, mas não fez comentários. Acreditou, em
princípio, na minha palavra.
Quase
todos os dias, paramos um pouquinho para ver a garça Mariana, homenagem à irmã
dele. Mariana tem o poder de se transformar em garça, sair de Cubatão, onde
estuda, para nos escoltar até a escola. Depois, retoma a forma humana e retorna
para a sala de aula. Ela nos observa de longe, não diz palavra, dá pequenos
voos e, eventualmente, cutuca o fundo do canal atrás de algum petisco.
No
caminho, a natureza nos prega uns trotes, tenta refrescar os peregrinos de meia
hora. Certa vez, um pé d’água a duas quadras da escola nos deixou como pintos
molhados. A escola, por sorte, tinha uniformes em estoque para emprestar. Há
duas semanas, a chuva apertou e tivemos que nos abrigar num restaurante por
quilo. Uma coca e uma garrafa d’água sofisticou o papo sobre games, youtubers,
cinema, animações e seriados de TV. Tudo pautado pelo Vini que, ao se cansar de
contar, pede opiniões.
—
Pai, como seria o mundo se tivessem super-heróis?
—
Vini, seria bem legal, mas não podemos esquecer de que teriam vilões também.
Outra coisa: o mundo tem muitos heróis. A diferença é que eles não possuem
superpoderes.
Vini
pensou por uns segundos. “É mesmo! Assim já tá bom!”
Caminhar
com meu filho de oito anos cinco, seis vezes por semana é uma experiência da
qual ele vai se lembrar. É o que espero. Não tento adivinhar como a memória
afetiva dele processa nossa vivência, mas estará lá em algum canto. Andamos
entre a fantasia e a realidade, sem a pretensão de descobrir quem é o que.
Apenas pisamos no mesmo ritmo, de mochilas me punho, na velocidade das pequenas
experiências de conviver.
(publicado originalmente em CONVERSAS E DISTRAÇÕES em 14 de Março de 2018)
Marcus Vinícius Batista
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros)
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
para republicação no BAÚ DO MARCÃO.
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