Thursday, December 21, 2017

QUÍMICA FINA (uma crônica de Marcelo Rayel Correggiari)


Não tenho por costume escrever essa coluna em ‘primeira pessoa’. Tento, dentro da medida do possível, variar temas, tipos de texto, tecidos verbais, sempre de olho na reflexão e, principalmente, no bom humor (o que, convenhamos, nesse ‘mundão-de-meu-Deus’, é algo razoavelmente difícil de conseguir.
Entretanto, por conta ocorrências testemunhada nos últimos finais de semana, resolvi correr o risco: o primeiro, de escrever em primeira pessoa, não em um ‘tom confessional’, mas como alguém que já viu e sofreu bem de perto o resultado de tal mazela. Segundo, das costumeiras ‘pedradas’ e ‘apedrejamentos’ vindos, em geral, de pessoas que não entendem o “grito de alerta”, o “serviço de utilidade pública” que este texto, eventualmente, possa conter.
De qualquer forma, é respirar fundo e ter coragem.
Quem já assistiu ao documentário da Netflix “What Happened, Miss Simone?!”, sobre a vida e a trajetória destruidora da grande cantora Nina Simone (Tryon, Carolina do Norte, EUA, 21 de fevereiro de 1933 – Carry-le-Rouet, Provence-Alpes-Côte d’Azur, França, 21 de abril de 2003), nem precisa ir ao final deste texto: já sabe de antemão o que um quadro psiquiátrico de depressão com manifestação bipolar do “tipo 1” é capaz de fazer.
Se vocês acham que há algum exagero, assistam ao filme. E vejam, com os próprios olhos, o resultado da doença da mãe na vida de sua única filha, Lisa Simone Kelly.
Ainda é impreciso se saber qual a origem de uma bipolaridade do “tipo 1”. Alguns especialistas costumam associá-la a um “evento traumático”, um “evento 0”, mas o estudo de “caso-a-caso” costuma provar tal teoria como um tanto improdutiva. Há pacientes que já nascem sem a bioquímica cerebral necessária para se “processar sentimentos”, base essencial e inequívoca para o sucesso pessoal nos campos social e amoroso. Nesses casos, a abordagem medicamentosa é indicada, mas difícil de ser acertada, logo “de primeira”, pelo(a) psiquiatra responsável: leva-se um bom tempo para a dosagem e posologia adequadas (varia de pessoa a pessoa).
Há também uma fortíssima hipótese de que um quadro depressivo se torna um transtorno psiquiátrico quando o(a) paciente teve por hábito, ao longo da vida, permitir que qualquer convívio tóxico ‘norteasse’, em parte ou no todo, sua personalidade. Qualquer ‘convívio tóxico’ que atente ou quebre as resistências que todo ser humano saudável possui para a manutenção da (própria) dignidade é porta aberta para que um quadro depressivo se instale e, o que é pior, se fossilize.
Não confundamos os quadros psiquiátricos de depressão de manifestação bipolar do “tipo 1” e do “tipo 2” com o “borderline” (esse segundo que vitimou a cantora inglesa Amy Jade Winehouse (Chase Farm Hospital, Enfield Town, Reino Unido, 14 de setembro de 1983 – Candem Town, Londres, Reino Unido, 23 de julho de 2011). Em geral, bipolares não apresentam, por exemplo, automutilação (o que não é uma regra fixa no campo da psiquiatria). Contudo, como os demais sintomas são semelhantes, a confusão, às vezes, acontece.
A mecânica da bipolaridade do “tipo 1” é bem simples: um ponto de baixa (com muita tristeza, choro, fragilidade), cujo nome dado é o de “depressão”, e um ponto de alta (onde a pessoa se sente “a tal”, “um(a) deus(a)”, “poderoso(a)”, cujo nome técnico é o de “mania” (popularmente chamado de “euforia”).
A bipolaridade do “tipo 1” possui, como o próprio nome diz, extremos “depressão-mania” com variabilidade entre um e outro em fração de segundos. Um bipolar do “tipo 1”, ao pressentir “a baixa” (depressão), corre a se ocupar de conseguir qualquer coisa que o(a) arrebate para “a alta” (mania).
Nem é preciso dizer que “a busca” para “a alta” (mania) é garantia irrefutável de escolhas nefastas para consequências praticamente irreversíveis.
Ou seja, a vida de um(a) bipolar do “tipo 1” é praticamente um amontoado de destroços retorcidos cuja a resultante disso é um devastador quadro de destruição para quem porventura estiver por perto.
Filhos(as), cônjuge(s), pais, mães, amigos(as), namorados(as), paqueras, colegas-de-trabalho: o nível de trauma que um(a) bipolar do “tipo 1” causa é brutalmente gigantesco.
Destrói anos de vida: do(a) próprio(a) bipolar e daqueles que, por algum motivo, gostariam de tê-lo(a) em suas vidas.
Isso porque um(a) bipolar do “tipo 1” não está “anulado(a)” para a vida. Até as demais pessoas perceberem os graves problemas emocionais que o(a) paciente possui, há grandes envolvimentos afetivos por parte dessas pessoas. O afastamento, nesse caso, é péssimo para ambos os lados, mas a única saída para ‘os(as) não-pacientes’ prosseguirem a vida.
Das várias características de um(a) bipolar do “tipo 1” está a baixa capacidade cognitiva do(a) paciente. Um(a) bipolar do “tipo 1” é um(a) eterno(a) “Should I Stay or Should I Go”: uma hora vai para a festa, mas, de repente, não vai mais. Aí, volta a ir a tal da festa, ou troca por uma diferente em questão de minutos. Quando chega no lugar, sente-se, do nada, deslocado(a), com uma sensação contida na boa e velha pergunta: “Mas que diabos estou fazendo aqui? Nem dessa gente eu gosto! Nem ‘tô’ na ‘vibe’...”.
Costuma ir à festa, mesmo sem vontade, para garantir qualquer estímulo que possa jogá-lo(a) de volta para a “mania”. Afinal, na festa, é possível encontrar possibilidades essenciais para a satisfação dessas “manias”.
Das várias, uma que a maioria das pessoas que (con)viveram com bipolares do “tipo 1” mais se queixa: sexo em excesso. O orgasmo como “arrebatamento”, como uma “forte droga” para não ficar por longos períodos “na baixa” (depressão). O resultado disso, para quem está do ‘lado de fora’ é abissalmente devastador: porque, para bipolares do “tipo 1”, são várias pessoas ao longo do dia, ou doses cavalares de energia e tempo para seduzir e garantir relações sexuais em grandes quantidades mais a frente, transformando o(a) paciente numa espécie de “homem/mulher condomínio”. Isso atenta frontalmente à necessidade básica do(a) ‘não-paciente’ por segurança a fim de construir, de forma consistente e perene, laços afetivos.
As pessoas que convivem com isso sofrem demais por conta desse dispositivo do(a) bipolar do “tipo 1”: fica praticamente inviável sequer planejar um jantar romântico, um encontro, um momento a dois, uma viagem. A guilhotina parece estar sempre no pescoço, o tempo todo, sem descanso. Isso sem contar na insegurança ‘afetiva-genética-de saúde’ que tal convívio gera em muitos.
Não confundamos tal situação com àquelas protagonizadas por pessoas sem quaisquer escrúpulos no exercício sexual da própria vida, gente que deliberadamente faz sexo como se bebe um copo d’água, sem qualquer afeição ao(à) parceiro(a) ou sintonia com algum sentimento ou afetividade entre o casal. São coisas distintas: o(a) bipolar do “tipo 1” pratica o coito ‘em sofreguidão’, quase ‘um desespero’, na busca de ‘arrebatamento’ ou uma ‘porta de saída’. Uma espécie de ‘vale-tudo’: a relação sexual não acontece ‘na boa’, para o casal ‘curtir o momento’. O nível de açodamento chega a ser quase ímpar.
Quando a coisa não atinge quantidades monumentais de sexo, o escape pode acontecer por qualquer coisa que cause arrebatamento: compras, cocaína, excessiva exposição, bebida, festas, drogas... qualquer coisa que “os(as) tire de si próprios(as)”.
O ‘não-confronto’ consigo mesmo(a) se deve ao não entendimento (baixa cognição) do que se sente. Quando se tem entendimento preciso do que se sente, fica mais fácil lidar com os momentos turbulentos e doloridos da vida, mas isso é algo improvável num(a) bipolar do “tipo 1” posto que sua capacidade de cognição está alterada. É como se ele(a) estivesse completamente “descolado da realidade” (a saber, intuir, de antemão, as consequências de um determinado gesto ou ato). Isso não existe de forma saudável num(a) bipolar do “tipo 1”.
O resultado disso é uma quantidade gigantesca de frustração (por não entender o que sente e não conseguir se envolver emocionalmente por nada, nem por alguém, como acontece na maioria das pessoas). É algo que vai bem além de “alterações bruscas de humor”, é bem mais sofisticado. Por conta disso, uma raiva consigo mesmo(a): percebam que um(a) bipolar do “tipo 1” sofre com reclamações de amigos e familiares por sua postura “agressiva”. É o famoso “... não sabe brincar”: as brincadeiras são agressivas, as piadas são agressivas, o gesto é agressivo, a postura é agressiva... algo bem acima do normal.
Como consequência, o mundo de um(a) bipolar do “tipo 1” nunca é “como ele é”, mas o que ele “deve ser” de acordo com o que acredita dentro de seu “descolamento da realidade”: as pessoas devem ter ‘tal aparência’, ‘tal comportamento’, ‘tal roupa’, ‘tal status-social’, ‘tal origem’, ‘tal patrimônio’... Para um(a) bipolar do “tipo 1”, não há o “mundo como ele é”, com suas diversidades, gêneros, tendências, transformações, dinâmicas. Até sabem que existem, mas somente pertinentes se enquadrados numa realidade que não faz parte da natureza (ou essência) ‘do outro’.
O resultado desse entendimento nem sempre é bem visto por esse ‘outro’: dentro de um processo de preservação e proteção social, as pessoas rotulam tal procedimento como ‘manipulação’ (o que, de fato, não deixa ser em algum grau). Mais uma ‘espiral descendente’ do(a) bipolar do “tipo 1”: na tentativa de controle, envolve outros(as) personagens em assuntos que seriam meramente privados. Até se explicar que elefante esguicha água, mas não apaga incêndio, cada um responde da sua maneira: há muitas pessoas que não primam pela discrição, e metem a boca-no-trombone, por se sentirem inconscientemente amedrontadas por algo extremamente ameaçador para a vida humana: a interferência.
Um(a) bipolar do “tipo 1” interfere... e interfere da pior maneira. Não conseguem avaliar eventuais consequências dessas interferências e... quando veem... o estrago está feito. E de maneira irreparável.
Quando digo ‘não conseguem’, não é porque ‘não querem’. Um(a) bipolar do “tipo 1” até quer, mas não consegue, mesmo. A coisa é bem grave. Querem muito, mas não conseguem: não conseguem entender o que sentem, não conseguem se envolver emocionalmente por nada, nem ninguém... é uma vida resumida a uma sequência interminável e cada vez mais destruidora de solavancos.
Disso para a violência (ou gestos e procedimentos mais violentos) é um pulo! Na ‘espiral descendente’ de um(a) bipolar do “tipo 1” está a ‘violência’. Pode se chegar a esse ponto, ou não, tudo depende de cada caso. A pergunta frequente em alguns casos é “Pode um(a) bipolar do “tipo 1” sentir algo por alguém?!”. Suspeita-se até que ‘pode’, mas é um sentimento em meio a um ‘ferro-velho’ carcomido e tão “retorcido”, de um ‘descolamento da realidade’ tão grande, que é difícil identificá-lo (ou até duvidar cabalmente de sua existência).
A pergunta final: “Quando é que um(a) bipolar do “tipo 1” ‘cai em si’ e procura por ajuda especializada?!”. Isso é uma grande incógnita. Varia de pessoa para pessoa. Como um(a) bipolar do “tipo 1” é socialmente aceitável e aproveitável, quase não sobra muita margem para o(a) paciente entender que chegou num ‘fundo-de-poço’: pelo mundo à sua disposição, e sua baixa capacidade de cognição, não lhe é ofertado(a) sinais claros de que há graves problemas emocionais que mereçam, enfim, ter acompanhamento médico. Aí, é esse eterno ‘marcar passo’ que isola o(a) paciente de um saudável convívio social e afeta todos(as) os(as) demais ‘não-pacientes’ que nutrem legítimo afeto por essa pessoa.
Definitivamente, péssimo para os dois lados. É um isolamento que o(a) paciente não gosta de sofrer e o(a) ‘não-paciente’ detesta aplicar. Todavia, o relacionamento fica tão ‘tóxico’ que não resta alternativa que não seja essa, mesmo que não se queira.

O resultado: uma destruição que foge do lógico e do ilógico. Nos dias de hoje, em quantidade planetária. Muito sofrimento que poderia ser corrigido com habilidade e química fina. Não há aqui apenas um “grito de alerta”, mas uma vontade pela paz. Não é possível ser feliz vendo tanto sofrimento.

Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO


No comments:

Post a Comment