O romancista, poeta, dramaturgo, jornalista, crítico literário e advogado Rosário Fusco (1910-1977) foi uma figura ímpar na Literatura Brasileira, cujo esquecimento só pode ser atribuído à indigência mental que tem marcado a atuação da intelectualidade nacional nos últimos tempos. Basta ver que seu livro Carta à Noiva (1954) foi considerado à época de seu lançamento uma obra-prima por Millôr Fernandes (1923-2012) e listado pelo jornalista e ficcionista Ivan Ângelo como uma das dez mais importantes obras de nossa história literária.
Além disso, o seu romance O Agressor (1939) teve os seus direitos comprados por Orson Welles (1915-1985) à editora italiana Mondadori, que o lançou na década de 1960, com um prefácio que comparava o romancista brasileiro a Franz Kafka (1883-1924) e James Joyce (1882-1941). Já o professor e crítico Antonio Candido (1918-2017) o considerou um raro exemplo de romance surrealista no Brasil. Não é pouco.
Que ainda não se tenha escrito a sua biografia é imperdoável lacuna que o poeta e cronista Ronaldo Werneck tenta minorar com Sob o Signo do Imprevisto: Rosário Fusco por Ronaldo Werneck (Cataguases-MG, Poemação Produções, 2017), que reúne “lembranças, memórias, evocações e confissões que constituem um mosaico capaz de revelar a grandeza deste personagem intenso, polêmico e essencial”, como observa o escritor Luiz Ruffato na apresentação que escreveu para este livro.
Como se sabe, até a década de 1970, a crítica não levava em conta a vida pessoal dos autores, pois entendia que a obra era autônoma e valia por si mesma. Mas, de lá para cá, os críticos passaram a considerar a literatura também como reflexo da experiência pessoal do autor, o que resultou na valorização do gênero biográfico. Hoje, vive-se uma disputa surda entre jornalistas e acadêmicos para se apontar quem melhor produz livros de história e biografias. Os acadêmicos, obviamente, pesquisam mais e revelam detalhes mais importantes e verídicos que estavam perdidos em arquivos, mas, com raras exceções, escrevem com uma sisudez que afugenta leitores.
Já os jornalistas, com base na experiência acumulada em redações de jornais e revistas, sabem como produzir textos atraentes, mas muitos deles sofrem de “alergia” ao pó dos arquivos. Ou seja, limitam-se a citar livros impressos, sem base documental. Assim, se um historiador publicou alguma invencionice ou boutade no século XIX, por exemplo, aquela impropriedade é repetida indefinidamente. O ideal, portanto, seria sempre aliar o texto bem escrito e de fácil entendimento ao rigor da pesquisa acadêmica, ainda que as últimas páginas sejam repletas de citações das fontes consultadas. É o que dá credibilidade à obra.
No caso de Rosário Fusco, não se sabe ainda se os arquivos têm muito que revelar. O que se conhece é que Fusco guardava zelosamente em sua casa “quilos” de cartas recebidas do poeta Mário de Andrade (1893-1945), entre outras possíveis preciosidades, segundo Werneck.
Quem sabe uma pesquisa no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro possa revelar fatos inéditos de sua atuação no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão de censura e propaganda à época da ditadura de Getúlio Vargas (1882-1954), uma passagem de sua vida que não seria edificante, mas que não deve ser vista sob os olhos de hoje em que as ideologias de direita e esquerda fracassaram completamente. De fato, de 1941 a 1943, ele dirigiu, ao lado do jornalista Almir de Andrade (1911-1991), ideólogo do Estado Novo (1937-1946), a publicação Cultura Política: Revista de Estudos Brasileiros, mantida pelo DIP.
Até por isso, como mostra Werneck, Fusco é uma personalidade perfeita para uma biografia de sucesso. Irreverente, iconoclasta, verborrágico e frasista, deve ter deixado impresso e manuscrito muito material, além dos livros publicados. A princípio, essa biografia deveria ser escrita pelo próprio Werneck ou por Joaquim Branco, nascidos em Cataguases, que, em sua juventude naquela mítica cidade do interior de Minas Gerais, conheceram o romancista já em seus últimos anos de vida. Ou por Luiz Ruffato, cataguasense de geração mais recente.
Mas, pensando bem, dessa missão também poderia encarregar-se um pesquisador literário disposto a escrever uma tese de doutoramento em Letras na área de Literatura Brasileira. Nesse caso, Werneck, Branco e Ruffato seriam fontes indispensáveis. Até porque a essa altura da vida já não haveria contemporâneos da época de juventude de Fusco.
Portanto, Sob o Signo do Imprevisto, é, desde já, uma contribuição indispensável e valiosa para uma futura biografia de Fusco, pois traz não só as lembranças que Werneck guardou como a famosa entrevista que o romancista deu a ele e a Joaquim Branco e publicada pelo semanário Pasquim, do Rio de Janeiro, na edição de 19 a 25 de março de 1976. Naquela entrevista, depois de dizer que “ninguém vive de literatura”, Fusco dava como exemplo o escritor francês Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), que, segundo ele, vivia à custa de uma jovem mulher e não podia admitir que um de seus romances pudesse vender apenas 30 mil exemplares, enquanto as memórias de um ex-secretário da atriz Brigitte Bardot vendiam mais de 300 mil “só na chamada área parisiense” (p.102).
Ainda naquela entrevista, esbanjando erudição, Fusco dizia-se precursor do “realismo fantástico” no romance sul-americano. Lembrava que Julio Cortázar (1914-1984) aprendera “a coisa” com Jorge Luis Borges (1899-1986), que começara a produzir textos de “realismo fantástico” em 1942. “Ora, em 39, eu escrevi O Agressor, que demorou quatro anos na José Olympio e só saiu em 43”, argumentava.
Depois, ridicularizou o “realismo fantástico”, considerando-o “besteira”, lembrando que já existia o suprarrealismo de André Breton (1896-1966) e Guillaume Apollinaire (1880-1918). E acrescentava: “(...) o suprarreal, significando algo mais que o real ou o outro lado dele, diz mais do que realismo grudado a fantástico”. Dizia ainda que o real independe da existência, podendo até precedê-la. “Tomás de Aquino já associava a potência e o ato, ou distinguia o ser da existência (coisa que o vosso amigo Sartre explorou às pampas) pois que a essência precede a existência (Heidegger, Husserl etc.)”, afirmava aos entrevistadores.
Para Fusco, vivia-se (e vivemos ainda!) um tempo semântico. “A mesma coisa e a mesmice se impondo com outros nomes. Inventa-se uma palavra (inventa-se ou valoriza-se) e logo vem uma teoria para lhe dar curso”, dizia (pp.91-92).
Rosário Fusco de Souza Guerra, nascido em São Geraldo-MG, filho de um comerciante italiano e de uma lavadeira, ficou órfão de pai logo em seus primeiros meses de vida e mudou-se com a família para Cataguases. Em 1925, com 15 anos de idade, iniciou intensa correspondência com o grupo modernista de São Paulo e começou, bastante cedo, a publicar seus poemas no jornal Mercúrio, da Associação Comercial de Cataguases.
Ainda aluno do ginásio de Cataguases, frequentou as sessões do Grêmio Literário Machado de Assis e participou da fundação do grupo Verde, responsável pelo lançamento da revista Verde, importante publicação modernista editada entre 1927 e 1929. Essa revista contou com a colaboração de poetas, escritores e ilustradores modernistas do Brasil e de outros países.
Em 1932, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde concluiu, em 1937, o curso de Direito na Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e realizou intensa atividade na imprensa como crítico e jornalista. Nessa época trabalhou também como publicitário, cronista de rádio, redator-chefe da revista A Cigarra, crítico literário do Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, secretário da Universidade do Distrito Federal e procurador do Estado de Guanabara, cargo em que se aposentou.
Depois de trabalhar, na década de 1940, como adido da Embaixada do Brasil em Santiago do Chile, candidatou-se a deputado federal pelo Estado do Rio de Janeiro, na década de 1950, mas não conseguiu se eleger, apesar do slogan criativo que exibia: “Não fique confuso, fique com Fusco”. Sua justificativa: “Os imbecis não me entenderam, o que, aliás, não é novidade”. Por volta de 1960, mudou-se para Nova Friburgo-RJ, onde permaneceu até 1968, tendo retornado em seguida para Cataguases, onde faleceu.
Em 2000, a editora Bluhum, do Rio de Janeiro, relançou O Agressor. Em 2003, a Ateliê Editorial, de Cotia-SP, publicou um dos livros que Fusco deixou inédito, a.s.a. - Associação dos Solitários Anônimos, definido como “uma rapsódia surrealista” pelo crítico Manuel da Costa Pinto. Fusco publicou mais dois romances – O Livro do João (1944) e Dia do Juízo (1961) –, além de obras de poesia, ensaios e teatro. Segundo Werneck, existem ainda outros inéditos, como Vacachuvamor, romance; Um jaburu na Tour Eiffel, livro de viagem; e Creme de Pérolas, poemas eróticos.
Ronaldo Werneck nasceu em Cataguases, morou por mais de 30 anos no Rio de Janeiro e voltou a viver na cidade natal desde o final do século passado. Jornalista e crítico, colaborou com vários jornais e revistas cariocas. Desde 1968, colabora com o Suplemento Literário Minas Gerais, onde publicou poemas, resenhas e críticas de cinema. Poeta, tem oito livros publicados: Selva Selvaggia (1976), pomba poema (1977), minas em mim e o mar esse trem azul (1999), Ronaldo Werneck Revisita Selvaggia (2005), Noite Americana/Doris Day by Night (2006), Minerar O Branco (2008), cataminas pomba & outros rios (2012), e o mar de outrora & poemas de agora (2014). O escritor lançou também em 2009 o livro-ensaio Kiryrí Rendáua Toribóca Opé – humberto MAURO revisto POR ronaldo WERNECK e os livros de crônicas Há Controvérsias 1 (2009) e Há Controvérsias 2 (2011). Desde os anos 1990, assina a coluna Há Controvérsias, publicada em vários blogs e no jornal O Liberal, de Cabo Verde.
SOB O SIGNO DO IMPREVISTO
Autor: Ronaldo Werneck
(com apresentação de Luiz Ruffato e prefácio de Joaquim Branco)
Editora: Poemação (Cataguases MG)
128 páginas
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Autor: Ronaldo Werneck
(com apresentação de Luiz Ruffato e prefácio de Joaquim Branco)
Editora: Poemação (Cataguases MG)
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