Sunday, November 18, 2018

CELEBRAMOS OS 56 ANOS DE NASCIMENTO DO GRANDE WAGNER PARRA COM UM TEXTO SAUDOSO DE MARCELO RAYEL CORREGGIARI

Sem Conserto para o Sol
Mirada 2014. No serviço oficial de táxi do evento, tremenda sexta-feira, encerramento interno do festival que terminava no domingo seguinte, um DJ contratado para animar a festa.
O motorista, sujeito rústico e sem o refinamento linguístico, verbal, para as novidades que entravam e saíam de seu veículo ao longo do evento (um festival ibero-americano de teatro), adquiriu naquele cliente com uma mesa de mixagem, dois CDJs e um monte de caixas de discos, além dos CDs, a confiança necessária para “... abrir o coração e matar a curiosidade...”.
Curiosidade, sim! É de conhecimento geral que o mundo das artes possui forte presença LGBTI e, no teatro, não seria muito diferente.
Naquele ano, inclusive, “Valmor & Cacilda”, do Uzyna Uzona, tinha entrado na programação. Vai que o pobre do motorista tinha prestado serviço para o Zé Celso?!?
Ao descarregar o material de trabalho na porta do Sesc, o motorista não titubeou: não dava para deixar a oportunidade de lado. Em meio a sua total ‘falta de jeito’, boa capacidade de expressão para assunto tão espinhoso, correu o risco: “Olha, ‘seo’ Wagner... esse negócio de ‘Mirada’?!? É congresso de viado?!”.
Naquela noite de sexta, cheguei no Sesc no princípio de noite e fui recepcionado por esse Wagner ‘criança grande’: “Aí, você viu o que eu publiquei?! Que aconteceu agora à tarde, vindo ‘pra’ cá?!”. Mostrou a postagem no ‘Livro de Róstos’ e caímos nas gargalhadas.
Esse foi meu “princípio de festa” naquela noite. A técnica, para participar do evento interno de encerramento do Mirada daquele ano era não sair da mesa da comendoria. “Se liga... não sai daqui da mesa. Fica aqui com eu e a Cláudia, que eles lá pelas 10 fecham a unidade e, aí, liberou para participar da festa”.
Comentários e risadas, até às 22h. Depois, uma das melhoras festas que já participei na vida... birita a rodo, de graça! Bebi até começar a miar. Filei até uma “bóia-fashion” que rolou na linha de servir do famigerado restaurante. E Parra no lugar onde sempre fez parte: o alto do deck de discotecagem. Festa rolando... como sempre, música da boa. Bichos-grilo da América Latina, mais Portugal e Espanha, todos na vibe das grandes canções.
Era uma alegria garantida...

O talento desse paranaense que desde pequeno andava com um gravador pendurado no pescoço, distribuindo canções para as massas. Seguiu o instinto: nunca largou o lado musical, nem de fazer o povo dançar.
Lembro-me de uma explicação dada por ele próprio sobre qual o estilo de sua discotecagem: ele era um “DJ selecta”. O primeiro contato que tive com Parra foi por intermédio do Projeto Sol Maior, no Sesc local, noites de quarta (ou quinta?!?), trazendo o que havia de mais alternativo em termos de música nos anos 1990.
Ao gozo do hiato, muito Bar do 3, muito Torto e congêneres: o cara que tocava músicas que nunca tínhamos ouvido na vida. Foi pelas suas mãos que conhecemos Masillia Sound System, Zebda, Sonora Carruseles, entre tantos.
A minha aproximação, definitiva, se deu com a Vitrolada. Na base de “DJ Acidental”, numa noite em que dividi as ‘pick-ups’ com Baby Mendes, entrou na minha corrente sanguínea o lance de ser DJ, de discotecar.
Sempre com o conselho de quem ralou para chegar no ponto onde havia chegado: “DJ que não passa, pelo menos, 12 horas ouvindo música, pesquisando artistas e canções, não é DJ”, sentenciava.
Nem tudo são flores: Parra era esquerda, cubana, Fidel, igualdade social, era aguerrido em torno disso.
Nem preciso dizer que isso era, numa cidade conservadora até o último fio-de-cabelo, “veneno no sangue”.
Era cada “arranca-rabo” que até mesmo nós, os(as) mais próximos(as), amigos(as), pedíamos para ‘pegar leve’.
Talvez tenha sido essa a origem da expressão criada pelo cineasta Dino Menezes, o famoso: “Porra, Parra!”.
Chegavamos no balcão da Disqueria e não dávamos nem “boa tarde”: “Porra, Parra. ‘Cê num’ acha que dá ‘pra’ maneirar?!”. A preocupação tinha razão de ser: colecionar uma quantidade enorme de desafetos nunca é ‘boa conselheira’, como diziam os antigos.
Não tinha jeito: ativismo pelas redes sociais, capas da Veja coladas nos degraus da escadaria (a Disqueria fica numa sobreloja), tudo para não ‘ceder’ a uma baba-cósmica, grudenta & peçonhenta, que hoje é o éter natural desse pedaço de terra perdido nos mares-do-sul.
Havia os desafetos por conta da ‘crítica política’, além da tomada de posição ao ‘defender’ figuras & ideais. Podia estar tudo contra: ele não arredava pé.
Havia os ‘desafetos espaciais’: com esse tipo de temperamento, dentro de somente 40 km², era preciso ‘defender territórios’. Um sujeito generoso ao extremo, mas sob condições: ambição de ‘crescer na vida’, sim; mas canalhice, só se for lá na ‘casa-do-caralho’.
Tolhia eventuais espaços... errou na condução, era ‘sem chance’. Ficar surfando na aba do seu chapéu, levava um “chega-pra-lá” quase substancial.
Por conta disso, haverá histórias de injustiças. Sim. Ninguém é perfeito. Nem esse merceeiro, nem mais ninguém. Se a prática do dia-a-dia se mostrava cruel, não seria ele que iria ‘abrandar as coisas’.
Dizem que o luto costuma durar 3 anos. Sua passagem foi um choque.
De longe, o dia mais triste da minha vida, junto com o desaparecimento do Brizolinha.
Na lendária Vitrolada, numa noite de terça, 10 de fevereiro de 2015, chego para ‘bater o ponto’ e nem sinal dele. Nem da Cláudia. Fui indagado até pelo atual presidente do Concult, o Júnior Brassalotti: “cadê o Parra, hein?!”.
Soube, naquela noite, de um ‘mal súbito’. Na manhã do dia seguinte, a triste e chocante notícia.
No meio da madrugada, o Michel, dono do Torto, passou a informação de sua morte. Cheguei para o velório antes do corpo. Tirando uma situação aqui e ali, a única coisa que lembro daquela tarde foi uma enorme mistura de lágrimas e ranho.
Simplesmente uma dor do caralho.
Dizem que o luto costuma durar 3 anos.
Na última segunda-feira, 12 de novembro, Wagner Parra completaria 56 anos se ainda estivesse entre nós, de corpo presente. Estranhamente, depois desses três terríveis anos, algumas pessoas na cidade já conseguem falar dele sem cair em ruidosos prantos.
Início de um novo ciclo?! Tomara! Hora de acomodar melhor a dor e seguir em frente. Num lugar que colocou Paulo Alexandre num primeiro turno com 85%, e Bolsonaro com 71% dos votos válidos, tomara!
Tomara esse novo ciclo, esse ‘reerguer’...
Num lugar onde você só ‘é’ se estiver enquadrado pela “estética Azevedo Sodré de ser”, não é preciso ser nenhum gênio, ou ‘bidu’, para entender que o lugar merece a quantidade de farmácias que possui.
Nada mais adoentado...
Foi-se a terça, a Vitrolada, Chico Taboada voltou p/ França, Luiz Fernando Almeida foi para o Beco do Batman, Dino Menezes ressurge com o “Porra, Parra!”, silenciaram-se Masillia Sound System, Zebda, Sonora Carruseles.
Em breve, um conto que ele, Parra, me encomendou: “A Última Churrascaria do Mundo”. Para o primeiro semestre de 2019.
Lufer nas pick-ups, Dr. Caiaffo mundo afora.
Michel mantém a tradição: tem sempre um pedaço de Torto uma vez por mês no centro da cidade.
Julinho vai de Forum.
A vida continua.
Continua?!
Em que base?!
Essa que ‘tá’ aí?!
“Muito obrigado!”.
A cidade que tinha Rosinha Mastrangello, Circo Marinho, Bar da Praia, Bar do 3, Torto, Adega Marrocos, duas boates entre Praça Independência e a praia, e que era realmente 24 horas sem a necessidade de postos de gasolina, hoje, é a maior concentração de gente solitária no planeta Terra.
Desafeição em toneladas: às escondidas, “longe de Roma”, cuidados até para ver quem está no lado de dentro e nas mesas sobre a calçada para não azedar o pé-do-frango.
A que ponto chegamos!
Uma cidade que não confia mais em seus afetos.
Exatamente o contrário do que era o Parra.
Puta que pariu!
A que ponto chegamos!
Acho que hoje conseguimos falar melhor de seu desaparecimento.
Penso que terminou o luto e, agora, a saudade.
Saudade é o ponto de referência: de onde todos nós partimos.
Mesmo sem a menor garantia de chegarmos no destino: o trajeto, os feitos do trajeto, é o que conta.
Seu desaparecimento foi o início do sumiço de todos os sabores que esse lugar, um dia, teve.
Pessoalmente, era o meu ‘irmão mais velho’.
A canção diz que “o novo sempre vem”. Tenho lá minhas dúvida. Não tenho certeza de que ‘o que vem por aí’ brecará o descenso, uma espiral tortuosa, sempre para baixo.
Seu desaparecimento representou o fim da pluralidade pelas bandas de cá. Daquele ponto em diante, só ficou a ‘buniteza’ do jardim-da-orla: uma cidade sem o menor traço de viço.
Não é artística, não é turística, não é comercial... sabe-se lá para qual lado foi.
Canhestra, estranha... esquizofrênica.
Se estivesse vivo, o seu pedido: “Resista!”. Sempre pedia para que tivéssemos bons olhos, mesmo que tudo ao redor estivesse em ruínas.
Para que não caíssemos na armadilha das padronizações & pasteurizações.

No mais, essa saudade dele. Já podemos tocar no assunto sem chorar. Nessa órfã Mercearia, a saudade monumental. Forte o bastante para atingir todos os cantos do espírito.




Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É autor de Areias Lunares
(à venda na Disqueria,
Av. Conselheiro Nébias
quase esquina com o Oceano Atlântico)
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO

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