Sem
Conserto para o Sol
Mirada 2014. No
serviço oficial de táxi do evento, tremenda sexta-feira, encerramento interno
do festival que terminava no domingo seguinte, um DJ contratado para animar a
festa.
O motorista,
sujeito rústico e sem o refinamento linguístico, verbal, para as novidades que
entravam e saíam de seu veículo ao longo do evento (um festival ibero-americano
de teatro), adquiriu naquele cliente com uma mesa de mixagem, dois CDJs e um
monte de caixas de discos, além dos CDs, a confiança necessária para “... abrir
o coração e matar a curiosidade...”.
Curiosidade,
sim! É de conhecimento geral que o mundo das artes possui forte presença LGBTI
e, no teatro, não seria muito diferente.
Naquele ano,
inclusive, “Valmor & Cacilda”, do Uzyna Uzona, tinha entrado na
programação. Vai que o pobre do motorista tinha prestado serviço para o Zé
Celso?!?
Ao descarregar o
material de trabalho na porta do Sesc, o motorista não titubeou: não dava para
deixar a oportunidade de lado. Em meio a sua total ‘falta de jeito’, boa
capacidade de expressão para assunto tão espinhoso, correu o risco: “Olha,
‘seo’ Wagner... esse negócio de ‘Mirada’?!? É congresso de viado?!”.
Naquela noite de
sexta, cheguei no Sesc no princípio de noite e fui recepcionado por esse Wagner
‘criança grande’: “Aí, você viu o que eu publiquei?! Que aconteceu agora à
tarde, vindo ‘pra’ cá?!”. Mostrou a postagem no ‘Livro de Róstos’ e caímos nas
gargalhadas.
Esse foi meu
“princípio de festa” naquela noite. A técnica, para participar do evento
interno de encerramento do Mirada daquele ano era não sair da mesa da
comendoria. “Se liga... não sai daqui da mesa. Fica aqui com eu e a Cláudia,
que eles lá pelas 10 fecham a unidade e, aí, liberou para participar da festa”.
Comentários e
risadas, até às 22h. Depois, uma das melhoras festas que já participei na
vida... birita a rodo, de graça! Bebi até começar a miar. Filei até uma
“bóia-fashion” que rolou na linha de servir do famigerado restaurante. E Parra
no lugar onde sempre fez parte: o alto do deck de discotecagem. Festa
rolando... como sempre, música da boa. Bichos-grilo da América Latina, mais
Portugal e Espanha, todos na vibe das grandes canções.
Era uma alegria
garantida...
O talento desse
paranaense que desde pequeno andava com um gravador pendurado no pescoço,
distribuindo canções para as massas. Seguiu o instinto: nunca largou o lado
musical, nem de fazer o povo dançar.
Lembro-me de uma
explicação dada por ele próprio sobre qual o estilo de sua discotecagem: ele
era um “DJ selecta”. O primeiro contato que tive com Parra foi por intermédio
do Projeto Sol Maior, no Sesc local, noites de quarta (ou quinta?!?), trazendo
o que havia de mais alternativo em termos de música nos anos 1990.
Ao gozo do
hiato, muito Bar do 3, muito Torto e congêneres: o cara que tocava músicas que
nunca tínhamos ouvido na vida. Foi pelas suas mãos que conhecemos Masillia
Sound System, Zebda, Sonora Carruseles, entre tantos.
A minha
aproximação, definitiva, se deu com a Vitrolada. Na base de “DJ Acidental”,
numa noite em que dividi as ‘pick-ups’ com Baby Mendes, entrou na minha
corrente sanguínea o lance de ser DJ, de discotecar.
Sempre com o
conselho de quem ralou para chegar no ponto onde havia chegado: “DJ que não
passa, pelo menos, 12 horas ouvindo música, pesquisando artistas e canções, não
é DJ”, sentenciava.
Nem tudo são
flores: Parra era esquerda, cubana, Fidel, igualdade social, era aguerrido em
torno disso.
Nem preciso
dizer que isso era, numa cidade conservadora até o último fio-de-cabelo, “veneno
no sangue”.
Era cada
“arranca-rabo” que até mesmo nós, os(as) mais próximos(as), amigos(as),
pedíamos para ‘pegar leve’.
Talvez tenha
sido essa a origem da expressão criada pelo cineasta Dino Menezes, o famoso:
“Porra, Parra!”.
Chegavamos no
balcão da Disqueria e não dávamos nem “boa tarde”: “Porra, Parra. ‘Cê num’ acha
que dá ‘pra’ maneirar?!”. A preocupação tinha razão de ser: colecionar uma
quantidade enorme de desafetos nunca é ‘boa conselheira’, como diziam os
antigos.
Não tinha jeito:
ativismo pelas redes sociais, capas da Veja coladas nos degraus da escadaria (a
Disqueria fica numa sobreloja), tudo para não ‘ceder’ a uma baba-cósmica,
grudenta & peçonhenta, que hoje é o éter natural desse pedaço de terra
perdido nos mares-do-sul.
Havia os
desafetos por conta da ‘crítica política’, além da tomada de posição ao
‘defender’ figuras & ideais. Podia estar tudo contra: ele não arredava pé.
Havia os
‘desafetos espaciais’: com esse tipo de temperamento, dentro de somente 40 km²,
era preciso ‘defender territórios’. Um sujeito generoso ao extremo, mas sob
condições: ambição de ‘crescer na vida’, sim; mas canalhice, só se for lá na ‘casa-do-caralho’.
Tolhia eventuais
espaços... errou na condução, era ‘sem chance’. Ficar surfando na aba do seu chapéu,
levava um “chega-pra-lá” quase substancial.
Por conta disso,
haverá histórias de injustiças. Sim. Ninguém é perfeito. Nem esse merceeiro,
nem mais ninguém. Se a prática do dia-a-dia se mostrava cruel, não seria ele
que iria ‘abrandar as coisas’.
Dizem que o luto
costuma durar 3 anos. Sua passagem foi um choque.
De longe, o dia
mais triste da minha vida, junto com o desaparecimento do Brizolinha.
Na lendária
Vitrolada, numa noite de terça, 10 de fevereiro de 2015, chego para ‘bater o
ponto’ e nem sinal dele. Nem da Cláudia. Fui indagado até pelo atual presidente
do Concult, o Júnior Brassalotti: “cadê o Parra, hein?!”.
Soube, naquela
noite, de um ‘mal súbito’. Na manhã do dia seguinte, a triste e chocante
notícia.
No meio da
madrugada, o Michel, dono do Torto, passou a informação de sua morte. Cheguei
para o velório antes do corpo. Tirando uma situação aqui e ali, a única coisa
que lembro daquela tarde foi uma enorme mistura de lágrimas e ranho.
Simplesmente uma
dor do caralho.
Dizem que o luto
costuma durar 3 anos.
Na última
segunda-feira, 12 de novembro, Wagner Parra completaria 56 anos se ainda
estivesse entre nós, de corpo presente. Estranhamente, depois desses três
terríveis anos, algumas pessoas na cidade já conseguem falar dele sem cair em
ruidosos prantos.
Início de um
novo ciclo?! Tomara! Hora de acomodar melhor a dor e seguir em frente. Num
lugar que colocou Paulo Alexandre num primeiro turno com 85%, e Bolsonaro com
71% dos votos válidos, tomara!
Tomara esse novo
ciclo, esse ‘reerguer’...
Num lugar onde
você só ‘é’ se estiver enquadrado pela “estética Azevedo Sodré de ser”, não é
preciso ser nenhum gênio, ou ‘bidu’, para entender que o lugar merece a
quantidade de farmácias que possui.
Nada mais
adoentado...
Foi-se a terça,
a Vitrolada, Chico Taboada voltou p/ França, Luiz Fernando Almeida foi para o
Beco do Batman, Dino Menezes ressurge com o “Porra, Parra!”, silenciaram-se Masillia
Sound System, Zebda, Sonora Carruseles.
Em breve, um
conto que ele, Parra, me encomendou: “A Última Churrascaria do Mundo”. Para o
primeiro semestre de 2019.
Lufer nas
pick-ups, Dr. Caiaffo mundo afora.
Michel mantém a
tradição: tem sempre um pedaço de Torto uma vez por mês no centro da cidade.
Julinho vai de
Forum.
A vida continua.
Continua?!
Em que base?!
Essa que ‘tá’
aí?!
“Muito
obrigado!”.
A cidade que
tinha Rosinha Mastrangello, Circo Marinho, Bar da Praia, Bar do 3, Torto, Adega
Marrocos, duas boates entre Praça Independência e a praia, e que era realmente
24 horas sem a necessidade de postos de gasolina, hoje, é a maior concentração
de gente solitária no planeta Terra.
Desafeição em
toneladas: às escondidas, “longe de Roma”, cuidados até para ver quem está no
lado de dentro e nas mesas sobre a calçada para não azedar o pé-do-frango.
A que ponto
chegamos!
Uma cidade que
não confia mais em seus afetos.
Exatamente o
contrário do que era o Parra.
Puta que pariu!
A que ponto
chegamos!
Acho que hoje
conseguimos falar melhor de seu desaparecimento.
Penso que
terminou o luto e, agora, a saudade.
Saudade é o
ponto de referência: de onde todos nós partimos.
Mesmo sem a
menor garantia de chegarmos no destino: o trajeto, os feitos do trajeto, é o
que conta.
Seu
desaparecimento foi o início do sumiço de todos os sabores que esse lugar, um
dia, teve.
Pessoalmente,
era o meu ‘irmão mais velho’.
A canção diz que
“o novo sempre vem”. Tenho lá minhas dúvida. Não tenho certeza de que ‘o que
vem por aí’ brecará o descenso, uma espiral tortuosa, sempre para baixo.
Seu
desaparecimento representou o fim da pluralidade pelas bandas de cá. Daquele
ponto em diante, só ficou a ‘buniteza’ do jardim-da-orla: uma cidade sem o
menor traço de viço.
Não é artística,
não é turística, não é comercial... sabe-se lá para qual lado foi.
Canhestra,
estranha... esquizofrênica.
Se estivesse
vivo, o seu pedido: “Resista!”. Sempre pedia para que tivéssemos bons olhos,
mesmo que tudo ao redor estivesse em ruínas.
Para que não
caíssemos na armadilha das padronizações & pasteurizações.
No mais, essa
saudade dele. Já podemos tocar no assunto sem chorar. Nessa órfã Mercearia, a
saudade monumental. Forte o bastante para atingir todos os cantos do espírito.
Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É autor de Areias Lunares
(à venda na Disqueria,
Av. Conselheiro Nébias
quase esquina com o Oceano Atlântico)
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO
Que lindo, Marcelo.
ReplyDelete...bem isto mesmo marcelo, tristeza, saudades e uma santos assim...
ReplyDelete