Sunday, November 4, 2018

TOM WAITS E A MÁQUINA DE FAZER SORRIR (por Flávio Viegas Amoreira)



Sinestesias: sensações por todos poros: a epiderme em chamas cognitivas: sim! Quando ouvimos Tom Waits o corpo “pensa”. Tenho num mesmo CD gravado com esmero dos anos 90 a “Tristesse” de Chopin e a interpretação chapadíssima de “Tom Traubert’s Blues” de Waits cantando feito quem dribla as estrelas.... Inevitável recorrer a Rimbaud: “O poeta se faz vidente através de um longo, imenso e refletido desregramento de todos os sentidos”. Desregrar para melhor sentir e sentir para criar com vísceras e alma nua! Assim é Tom Waits.... Esse mestre poeta e gaitista para me referir apenas ao essencial pode ser o patrono do espírito desse blog: multiinstrumentista, compositor, inventivo cantor de voz rascante tal um vinho espanhol numa tarde fria diante o mar revolto. Waits é esse container plural num oceano de possibilidades jazzísticas e dum rock infinitesimal: minimalismo contaminante para todas percepções. Recordo esse ator eventual e genial em clássicos como “Sobre Café e Cigarros”, de Paul Auster, além de “Shot Cuts” do magistral Robert Altman. Tom é um cult que nasceu cult.... 



 “Chocolate Jesus” é um manifesto humanista do menestrel melancólico com um rock languido entre máquinas de café, esfumaçado dum cigarro infindável e o cotidiano entediado que passa ao olhar niilista do poeta Waits que espera, espera, espera.... “Blue Skies” é a derradeira manifestação desse beatnik fora de tempo e sempre presente: o beatnik numa era em que ser poeta é a grande insurreição! Sem arroubos de palco ou na estrada, nem tatuagem na genitália ou piercing nos mamilos, nem mesmo o pó ou dar o rabo: nada nada! tão subversivo quanto a poesia despojada e profunda com um drink honesto nas mãos e cérebro de Tom Waits. Poesia revoluciona.



“Céus azuis sobre minha cabeça / Dê-me mais um motivo para sair da cama / E céus azuis brilham em meu rosto / Dê-me uma outra mulher para ocupar seu lugar.” É isso tão assim.... tudo nessa questão de ter um motivo de levantar da cama e abrir a janela para o mundo como grande fato existencial....a grande sacada de Waits é trazer ao cotidiano e nossa realidade contemporânea os grandes temas e personagens para tomar um cappucino duma esquina comum e divagar sobre amores desfeitos, desolação e finitude num mundo dessacralizado. O que Bob Dylan foi aos anos 60, o artista de “Mule Variations” representa para quem cresceu nos estranhos anos 70 e os desencantados 80: fim das utopias e busca de forças poéticas para sobreviver nessa atmosfera inóspita. Ênfases rítmicas, aliterações, refrões acentuados -- toda a dicção personalíssima de Waits e sua prosódia contundente formam elas mesmas um gênero tributário do blues casado com rock intimista e jazz interpretativo: a batida Waits de ser e comportar. Enquanto escrevo essas linhas faço minha homenagem singela a um correspondente dramatúrgico de Waits: o tão cool Sam Shepard. Astros polivalentes que estão cagando para os outros e só pensam num jeito de salvar algo que preste desse mundo.... Histriônico na medida, arranhando nossos sentidos, Tom Waits chega ao auge da imprecisa perfeição em “No Visitors After Midnight”. Ouçam esse álbum e me contem impressões da eternidade numa baforada....





Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).
Este é seu mais recente trabalho publicado:



No comments:

Post a Comment