Tuesday, November 27, 2018

COISAS QUE ACONTECEM COMIGUINHO (por Germano Quaresma)



Chove de fato a cântaros na minha hortinha, e é por conta disso que eu, a princípio, julgava mais um presente/armadilha de Eros o fato de moça tão bela tomar assento ao meu lado naquele avião voltando de Salvador. Feitas as concessões de estilo, um sorriso acolhedor e meio tímido, pra que ela não visse ali um velho tarado, também retribuiu o sorriso e fechou-se em copas, de modo não visse eu ali uma oferecida. Protocolo feito, calados ouvimos a preleção da aeromoça, que nos convidava a eventualmente operar a porta de emergência. Foi quando a baianidade falou, um riso gostoso em minha direção, a mão no meu braço, Tamo lascado, espero que a gente não tenha que operar isso, Será doce morrer do teu lado. Fechou a cara de novo, pedi desculpas, Brincadeirinha, recolhemos.

Veio lanchinho da Azul, comi as balinha de goma tudo, ela sacou um livro. Bisbilhotei de rabo d'olho, livro de poesia, um poeta da moda que vai até na Fátima Bernardes. Sem sarcasmos, que seriam fatais ali, demonstrei interesse e falei-me também poeta. Qual livro o senhor escreveu, Senhor tá no céu, tenho é vários, mas poesia tem o Comédia de Alissia Bloom, Ai, que legal, Obrigado.

Conversa fluiu, contou sua vida: recém viúva, perdera o marido numa morte súbita, muito chocada, não chegaram a ter filhos. Contei meus desastres sentimentais, minha busca por não sei o quê, parecíamos irmãos a dada altura, e olha que íamos bem alto, além dos nimbos.

A um momento falou que desejava filhos e um novo amor. Tomado da dor da verdade, fiz-lhe saber-me avô já, e vasectomizado. E foi ali que senti, para aquela jovem viúva, ser eu apenas um bondoso frade mendicante. Don Fray Luiz de Atahualpa.

Em Campinas despedimo-nos com um beijo casto, prometendo nos escrevermos. Foi tudo muito rápido, não nos dissemos os nomes. Era tarde, peguei o ônibus da Azul pra um aeroporto em Sampa, onde cheguei à uma de uma manhã sem ônibus pra casa.

No guichê, onde fui saber um jeito de voltar, a jovem mãe índia chorava ao lado de sua menina. Moço, eu também perdi o ônibus pra Santos, meu marido foi ali ver. Em breve chegava o marido, frustrado com a frieza paulistana, que ignorava seu desespero de passar a noite perdido com a família sem saber voltar. Ficamos logo amigos, botei-os no táxi em que eu já ia pro terminal Jabaquara à busca de uma lotação pra praia.

Eram de Marabá, passaram dias em Santos nalgum parente, voltavam ao Pará mas perderam o voo. Eu mesmo, senhor, durmo em qualquer lugar, mas será que esse povo não vê que estou com mulher e uma filha pequena, Não, meu filho, não vê. Amor em São Paulo é artigo de luxo.

No Jabaquara tomamos um carro de aluguel pra Santos. O motorista nos explicou que era Jesus agindo quando todos nos encontramos. Talvez ele só enxergasse o fato de um santista velho e experiente puder ajudar um jovem casal estranhado numa selva tão urbana. Mas não. Eu vinha saudoso de casa, fui refugiar na Bahia a tristeza de ver meu país numa merda tão puta. Conversando com aqueles três eu fui fisgado é pela simpatia da menininha, na qual vi semelhanças incríveis com a minha neta. Foi impressionante o modo como aquela criança gostou de mim, talvez tenha captado a gratidão dos pais, creio mesmo que não, era afinamento de almas, a minha velha alma de eremita com aquela jovem alma em flor. A criança não parou de falar comigo por toda a descida da serra, e eu dando corda. Os pais riam, encantados da cria. O carro os deixou na porta de casa.

Despedi-me, desejando-lhes o melhor, e agradecendo as graças alcançadas naquele dia cansativo, desde a jovem viúva até a criança iluminada. Quando voltava ao carro pra seguir pra casa a menina perguntou:

"Qual o seu nome?"

"Puxa, é mesmo, nem nos apresentamos. É Manoel. E o seu?"

"Alissia."


Que Deus nos abençoe a todos.


Germano Quaresma, ou Manoel Herzog,
nasceu em Santos, São Paulo, em 1964.
Criado na cidade de Cubatão,
trabalhou na indústria química
e formou-se em Direito.
Estreou na literatura em 1987
com os poemas de Brincadeira Surrealista.
É autor dos romances
A Jaca do Cemitério É Mais Doce (2017),
Dec(ad)ência (2016), O Evangelista (2015)
Companhia Brasileira de Alquimia (2013),
além dos livros de poemas
6 Sonetos D’amor em Branco e Preto (2016)
A Comédia de Alissia Bloom (2014).
Este é seu mais recente trabalho publicado: 





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