Tuesday, March 26, 2019

AUGUSTA ERA SÓ E IMENSA (por Flávio Viegas Amoreira)



O quarto tinha sido arrumado pela diarista que a acompanhou por cinco anos gentis, tudo disposto com esmero sem tirar o jeito distinto de Augusta nesse mundo indiferente.  Pensei na meia dúzia de vasos com antúrios na pequena sacada, a estante brilhava de uso e eu perguntei ao zelador sobre os parentes distantes. Apartamento parecia ter o tamanho do seu despojamento:  lembrei do chá de erva-doce nos dias frios e a cerveja preta no almoço; deveras ela dizia, deveras.... Sábia não teve filhos não faltaram amantes nos anos antes do recolhimento e nenhum apego a animais domésticos, ela era sábia melhor adjetivo extenso a tudo que refletisse sua inquietação mansa.  Seria tão somente eu a remexer seus guardados....

- Ela deixou para o senhor essa mobília espero que tenha uso ´Seo Alfredo´.  Ela estimava sua família sua luta o carinho da sua esposa...

-  Levo a geladeira e fogão os moveis vão para meu sobrinho que casa Dr. Rodrigo

- Me ajuda abrir aquela cômoda e eu entrego a chave quando sair na portaria.  Vez ou outra eu passo por aqui saber de cartas e algum recado.  Forte abraço Alfredo.

Ela me acenava rapidamente, por vezes encetávamos conversa, sabia que eu era ator, tinha ar de dama inglesa, uma sobriedade indiferente, bebia no mesmo bar um delicado cálice de campari seguido de aguardente isso aos sábados. Tudo nela contrastava com o redor do mundo da esquina do comércio das coisas do bulício da cidade . Alguns meses quando vim de Nova York já fizera amizade e conversávamos quando em dias de chuva ou festas de final de ano. Tentara escrever poesia, fora correspondente de guerra,  era frugal nos gastos por natureza nunca mesquinhez, recusou ajuda do governo de sua terra de origem, escolhera o Brasil na cara e coragem e ponto final para todo risco,  solidão,  falta de contato. Tirou ovário, quebrou o pulso,  nunca recorreu a ninguém para quase nada. ´´Não incomodo ninguém para não ser incomodada´´ - dizia com sorriso maroto. Passados dois anos de convívio ela notara que eu também era um desgarrado do bando e me confiara alguns pontos altos da vida: o amor por um pai carinhoso, a morte da mãe na infância, uma irmã bem casada e nenhuma expectativa sobre seu futuro além mar desde que se embrenhara na selva como missionária leiga duma ONG humanitária. Usou eufemismo para dizer uma grande amizade por uma companheira de viagem que se estabelecera no Rio de Janeiro. Fazia algum tempo não dava notícia desde sua viuvez. Me solicitara ensinar-lhe mandar e-mails e o rudimentar daquela internet que surgia em 1999 : ´´Não quero aprender esse troço , mas sei importante, me ajuda nisso ´Rodrrrigo´ com o gutural de meu nome acentuando o imperdível sotaque de alsaciana. Ela falava alemão logicamente, arranhava italiano, se recusava ao inglês sem necessidade mesmo tendo um jeito desleixado de Virginia Woolf, tentara aquarela razoáveis, me dedicou algumas tapeçarias esmeradas mas principalmente reunira em muitos anos versos que tinha certeza a fariam uma nova Emily Dickinson habitante das matas brasileiras encerrada na velhice num quarto e sala na beirada do mar. Estiquei-me naquele outono perto da sacada com luz intensa ,  desfiei os laços dos guardados de Augusta e um calhamaço em linhas seguras de papel sulfite entre correspondências, outros cadernos escolares e uma pasta recheada compunham seu inventário ao mundo que nunca lhe dera sinal de apreço ou entendimento ao menos. No alto do livro improvisado um título nítido como o sol prematuro que me acordara dessa aventura: ´´Anabella´´.


Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).
Este é seu mais recente trabalho publicado:


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