Sunday, March 17, 2019

MERDA, SÓ MERDA (por JR Fidalgo)




Ele tropeçou várias vezes antes de conseguir subir no pequeno palco improvisado e, enfim, segurar o microfone, que alguém próximo pacientemente tentava lhe entregar há algum tempo. Ficou alguns instantes mudo, olhando fixamente a plateia. Então começou:
“Merda, só merda. Então não adianta essa história de que as respostas estão aqui dentro. Tentei, parei, fiquei em silêncio, senti o coração bater, etc., etc., etc., mas só achei merda. Merda, merda e mais merda.
“Tudo bem, talvez até exista alguma coisa interessante escondida em algum lugar, mas deve estar soterrada debaixo das toneladas de merda que eu engoli durante toda a vida – ou que alguém me enfiou goela abaixo, não importa. A questão é que aqui só tem merda. Portanto, essa busca da qual vivem falando vai dar em nada, isto é, no meu caso, vai dar em merda.
“Nem a comida que ingeri, há pouco, no jantar, escapa ao ciclo. No momento ela está sendo processada pelo meu estômago e meus intestinos e, em breve, será devolvida ao exterior. Em forma de que? De merda, é lógico.
“Sim, porque é um ciclo, eu disse que é um ciclo. Como só há merda aqui dentro, eu, em todas as ocasiões e situações, sempre e só compartilho minha merda interior com o exterior. E, quando eu não engulo merda, como no caso da comida que eu ingeri há pouco, dou um jeito de também transformá-la em merda e lançá-la no mundo exterior.
“É claro que esse processo – de não engolir merda, mas expelir merda – não se refere exclusivamente a comida, muito pelo contrário. É um processo bem amplo.
“Aí vocês vão dizer: ah, mas esse tipo de coisa acontece com todo o ser humano. Só que isso, definitivamente, não me interessa, mesmo que possa até ser verdade. A questão é que estou falando da minha merda, a única merda que me interessa. A merda alheia é problema dos outros, de vocês, sei lá.
“O ponto é que me mandaram procurar aqui dentro. Daí eu fui lá, quer dizer, vim aqui, e só encontrei merda…merda, merda e mais merda. Então estou aqui, cheio de merda pra compartilhar com meus semelhantes, com todos vocês. Amém!”


Jogou o microfone longe, desceu do palco, tropeçou várias vezes de novo e deu o fora. Pela porta dos fundos.



JR Fidalgo: um jornalista que tem preguiça de perguntar, um escritor que não tem saco pra escrever e um compositor que não sabe tocar. (mas que, mesmo assim, já escreveu três romances e uma quantidade considerável de canções ao longo dos últimos 45 anos)



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