Um
sábado abrasador. A temporada anunciava o êxodo dos forasteiros para ganhar o
sol. Podia sentir o serpentear dos milhares de carro pela estrada do mar.
Embalara o lixo reciclável com esmero de artesão. Duas voltas para amarrar bem e conter
qualquer vestígio do cheiro de peixe. O
burburinho da debandada ao redor soava meio dia no horário de verão. Separados os jornais, um volume de contos de
Maupassant, programado um western de Leone para começo da noite, talvez uma
cerveja por perto a noite.... Desde que Peter partira não tivera mais ninguém --
não com aquela exclusividade. Não que
tivessem morado juntos, mesmo assim sentia –se compromissado com alguma rotina
a dois. A porta da lixeira fechava-se
14 horas e esperava deixar a cozinha limpa. O prédio de quinze andares era
ocupado por idosos, casais recém-casados e alguns apartamentos de temporada. Nada
conste tivesse grandes amigos por ali. Só no bar padaria lanchonete juntavam se
conhecidos que aproximavam mais por conversa fora que afinidade. Atmosfera de maresia -- terminado almoço
queria só a janela escancarada do segundo andar tomar a fresca do seu quarto
naquele canto modorrento do mundo. Todos resíduos do almoço de solteiro básico
antes da folga do faxineiro. A pino o mormaço convidava para a rua. Uma cerveja
ver o bronzeado passar. Horácio sente
cheiro de molho de tomate e o latido denunciador ao abrir a porta. O corredor
escuro, alguma brisa gelada e expectante dum lince urbano e alguns passos
delicados descendo pelos fundos. A clarabóia lateral do prédio turvara seu
movimento enquanto seu chinelo escapara excitante ao segurar a porta. Fixou num ponto impreciso entre o corrimão e
o ultimo lance em direção ao seu andar. Era Ofélia o imponderável depois de
três anos sem notícias. Ofélia nome vetusto para aquela feição de Mata Hari.
-
Você morando aqui Horácio, no mesmo prédio onde vieram morar meus pais? – com
sorriso solto sem esboçar nenhum drama.
-
Desde aquela vez no barzinho da Augusta, esqueceu que dissera? – pousando o
lixo, o jeito, o inusitado do corpo.
-
Tô nessa loucura de exposição, pensei em ti, não estou usando rede social, não sabia se gostaria me rever....
-
Pois é a vida é o que sempre acontece..... (risos desinibidos enfim) voltei pra
cá para ter o mar como moldura: lendo loucamente, escrevendo sem cessar e sem
loucura de Sampa que me desenergizava.
-
Você continua zen ... então agora vou dar um mergulho e espero me convide para
entrar mais tarde.....
-
Claro! Hoje não saio mesmo ou no máximo por perto padaria boteco de esquina petisco
para a noite.... fechado! te espero:
vinho ou cerveja?
-
Colocar conversa em dia é cerveja mesmo...beijo!
Sem
pretensão de recomeço aquele reencontro tinha toda cara de remissão. Colocara
uma roupa mais estampada, algum tempo aquele homem melancólico por ofício se
tornara mais solar. Horácio enfim encarara o advento abrupto de Ofélia em seu
destino com uma tranqüilidade e despojamento incomuns.
-
Pois é (o inefável refrão de pausa entre nós),- eu voltei a esse canto para
reinventar algo...
-
Sei, voltou depois de Bruno.... pelo menos eu não tive tempo de perdê-lo para a
morte, perdi antes para ti.
-
Bom ...agora empatamos né? Foi de fuder
no começo, eu lutei feito louco para
viver com ele e agora esse percurso doido....
Provolone
com salame hamburguês, olhavam a brisa, combinaram outra cerveja noutra noite,
os pais dela estavam bem, não ficara nenhuma ferida, tudo zerado, dormiram
abraçados, tentaram sexo, ficaram nos amassos, gozaram juntos claro Bruno
vibrara em algum canto do universo...
Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).
Este é seu mais recente trabalho publicado:
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