Tuesday, March 12, 2019

O ÚLTIMO POEMA (por José Roberto Fidalgo)



Vou precisar de uma lápide relativamente grande, já que, segundo meus cálculos, meu epitáfio vai ser relativamente grande.

Epitáfios de uma, duas ou três frases quase nada dizem sobre quem era e o que fazia aquele monte de ossos e carne enquanto estava em cima – e não debaixo da terra, misturando-se a ela num longo processo de apodrecimento e transmutação – cósmica?

Claro, se você for cremado, a coisa acontece de outro jeito. No fim dá no mesmo.

Além disso, por minhas previsões, estou quase certo de que serei enterrado – e não incinerado, o que seria até um espetáculo interessante: o monte de carne e ossos se transformando, primeiro, numa fogueira, depois em fumaça e cinzas, que alguém vai guardar em vasos de formatos estranhos ou jogar ao vento de algum lugar, alguns às vezes também muito estranhos.

Mas essa parte final, quando você vai à cremação de alguém, não deixam você assistir.

Acontece escondido, depois que o caixão some dos olhos da gente.

Estávamos, contudo, falando de epitáfios, do meu, mais precisamente, e não sobre as maneiras de como nos livrar dos corpos quando eles param de funcionar de vez.

Claro, se você morrer numa explosão, por exemplo, esse problema de se livrar do corpo – do seu corpo, no caso – se resolve por si mesmo.

E continuo falando de enterros, velórios e lápides, não do meu epitáfio.

É que me lembrei agora também daquela técnica de deixar que urubus, corvos e assemelhados façam o serviço, com os corpos sendo suspensos a determinada altura, para facilitar a deglutição dos visitantes aéreos.

Ah, e existe ainda o que eu chamo de cremação ¨punk-romântica¨, aquela que os vikings faziam, atirando flechas incendiárias num barco deslizando sobre a água e levando dentro um corpo que não funcionava mais.

Linda cerimônia, sem dúvida.

Mas, com certeza, deve haver uma lei proibindo queimar cadáveres ao ar livre.

Lógico que você não iria preso – pois já estava morto. A bronca, porém, ia acabar sobrando pra seus parentes e os amigos que tivessem aceitado seu convite para estar lá.

Além disso, você teria que encontrar três ou quatro arqueiros capazes de acertar um barco flutuando a uma distância consideravelmente grande da margem, com flechas flamejantes, é claro.

Supondo que esses arqueiros existissem e você conseguisse contatá-los, imagine quanto cobrariam para participar de um troço esquisito desses.

E a cremação “punk-romântica” envolveria também outra complicação séria.

Você teria que organizar e pagar tudo com antecedência, correndo dois grandes riscos: talvez você morresse antes de terminar de organizar e quitar a coisa toda ou talvez você continuasse vivo por muito tempo, tempo em que você se amaldiçoaria por ter gasto toda aquela grana em seu próprio funeral e agora estar duro pra caralho por ter pago um troço que só vai acontecer lá na frente – e que você não vai poder nem assistir, por motivos óbvios.

Vamos, porém, deixar de lado essa coisa de enterros e flechas incendiárias para nos concentrar no epitáfio.

Repetindo, a lápide, além de grande, talvez precise ser usada em ambas as faces, quer dizer, o texto começará na frente e se estenderá até o lado de trás. Isso exigirá a colocação de um pequeno aviso, de preferência escrito com fontes diferentes, ao final da parte da frente do texto, dizendo: “continua do outro lado.”

Não é muito estético, concordo, mas talvez não exista outro jeito.

Devia ter avisado lá em cima, mas acho que agora já está claro que eu mesmo escreverei meu epitáfio.

quase metade dele já está praticamente pronto – na minha cabeça. Eu repito esse trecho inicial de duas a três vezes ao dia, em voz alta. Troco uma palavra aqui, outra ali. Tiro uma vírgula, coloco um ponto, mas basicamente o texto não muda.

Ocorre que, de uns tempos para cá, cada vez que eu recito o texto, o tamanho da lápide vai aumentando e aumentando na minha cabeça.

O negócio passou a ser físico, quer dizer, minha cabeça começa a latejar, latejar, até que eu me calo, pela certeza absoluta de que, se prosseguir, minha cabeça irá literalmente explodir, espalhando pedaços do meu cérebro pelo chão.

 Apesar disso, insisto em continuar a repetir essa parte inicial do epitáfio todos os dias, duas, três, quatro vezes, mas o processo está se tornando cada vez  mais doloroso.

Agora já sinto a lápide aumentando na cabeça assim que pronuncio as primeiras palavras.

E o grande problema é que ainda há muita coisa a dizer. Começo a duvidar que consiga levar isso adiante, se a lápide continuar aumentando na minha cabeça, ameaçando explodi-la.

Então, por mais que isso me contrarie, vejo-me obrigado a pensar na possibilidade de mudar de rumo.

Quem sabe um poema relativamente curto não consiga expressar tudo o que gostaria que estivesse escrito sobre mim em meu túmulo?

Estou quase certo de que, se procurasse com cuidado, encontraria algum poema já escrito que dissesse tudo o que queria dizer sobre minha vida.

Essa busca, contudo, poderia ser muito longa. É possível que eu levasse anos para encontrar um poema que me definisse exatamente – para os que ainda estariam vivos e para aqueles que iriam nascer.

Sinceramente, eu não estava disposto a ter essa missão como objetivo central na parte final da minha vida.

Isso me parecia uma grande perda de tempo: procurar por um poema enquanto minha vida acabava dia após dia.

Então, a saída seria eu mesmo escrever o poema.

Mas o que eu diria nele sobre mim?

Cheguei a um impasse que vem bloqueando qualquer tentativa de seguir adiante.

Vai daí, surgiu a ideia de que talvez vocês possam me ajudar nessa tarefa de compor o tal poema.

Então, espero que vocês compreendam e me ajudem.

Aos que se interessarem, peço que, por favor, sejam rápidos, pois, já que não pretendo cometer suicídio, não posso prever quando vou precisar desse poema pronto para ser gravado na minha lápide.

Obrigado pela atenção. E até a próxima.




JR Fidalgo: um jornalista que tem preguiça de perguntar, um escritor que não tem saco pra escrever e um compositor que não sabe tocar. (mas que, mesmo assim, já escreveu três romances e uma quantidade considerável de canções ao longo dos últimos 45 anos)



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