Tuesday, May 7, 2019

MEU VÍCIO (por Marcus Vinícius Batista)



Olá, boa tarde! Meu nome é Marcus Vinicius Batista e sou viciado em refrigerante, exclusivamente nos de cor negra, seja embalagem vermelha, seja embalagem azul. Enquanto você lê este texto (ou participa desta reunião comigo), completo 76 dias sem ingerir uma gota de bebida gasosa gelada, um recorde pessoal, uma marca revista e celebrada todos os dias.

Quando descobri que tinha diabetes, há oito anos, tinha 40 quilos a mais de peso. E bebia, principalmente no período da tarde, dois litros de refrigerante por dia. Não havia ocasião especial para que isso acontecesse. Bebia trabalhando. Bebia vendo filme. Bebia corrigindo provas. Bebia porque era (e continua sendo) gostoso.

Qualquer comida, doce ou salgada, servia como desculpa para um refrigerante como acompanhamento. Sem comida nenhuma, o refrigerante matava a sede. Fornecia cafeína para me manter acordado. Induzia ao sono pela sensação de fastio.

Aqui, uma pausa. Água é minha bebida preferida e ela era consumida em doses cada vez maiores para conter os efeitos do refrigerante. Cheguei a tomar, no pico do descontrole da diabetes, nove litros de água por dia. Precisava de duas garrafas de dois litros para exame de urina, sem pagar horas extras para meus rins.

Nunca larguei o refrigerante em oito anos. Usei de todas as estratégias para me enganar. Troquei pela versão zero. Aguentei, no máximo, uns 15 dias. Detesto o gosto, julgava até como hipocrisia. Uma leitura tão estúpida quanto morrer com honras.

Adotei uma política de redução de danos. Troquei por uma dose menor de vício. Tomava uma latinha por dia. Quando lançaram aquelas garrafinhas de 220 mililitros, achei que meus problemas acabariam. Tomava uma ao dia e pronto! Semanas depois, tomava, duas ou três, nos intervalos das aulas na universidade.

Tentei trocar por chá mate. A cegueira me levava a tomar a versão industrializada, impregnada de açúcar e multiplicada por cafeína. Escrevi minha dissertação de mestrado à base de chá mate, três litros por madrugada, numa fase em que dormia dia sim, outro não.

Uns 45 dias atrás, na saída de uma consulta médica com Beth, minha esposa, comprei a versão natural desta mesma bebida. Só consegui tomar quatro goles. Pensei: “Porra, como tomava esta merda!” Com discrição e certa vergonha de mim mesmo, joguei no lixo.

Criativo, inventei desculpas das mais variadas para manter o relacionamento com o óleo negro (apelido criado por um amigo de infância, o Marcelo Flexa, a partir de uma substância alienígena de mesma cor que dominava a pessoas na série Arquivo X. Coisas de nerds dos anos 90!).

Descobri, em 2016, por exemplo, uma versão orgânica, nacional, deliciosa, chamada WeWii, no café-bistrô de um amigo. Tomava uma garrafa de 330 ml todos os dias, durante ou depois do almoço. Como a marca sumiu do mercado, ficou fácil transferir a responsabilidade pela suposta abstinência. Suposta, pois retomei a vida com os originais norte-americanos. Os líderes de mercado são, óbvio, deuses pela onipresença e onipotência.

Numa madrugada do começo deste ano, minha esposa tocou no assunto refrigerante. Estávamos no quarto, naquela conversa antes de dormir. Tínhamos voltado de viagem, e a carga de refrigerante atingira níveis preocupantes. Fingíamos que nada acontecia. Percebi, naquele ponto, que o silêncio significava desistência. Minha surdez, burrice. Eu virara um caso perdido, a ser corroído pela diabetes em poucos anos. Meu prazer, meu vício causava dor nela.

Tentei fazer uma nova promessa. Ela, escaldada, não acreditou. Tive que engolir a seco, prometer com a credibilidade no chão, decepcionado comigo ao ouvir o tom de decepção da voz de Beth. Não há gritos, sermões, raiva que alcancem a profundidade de uma decepção em poucas palavras.

Ali, a decisão estava tomada. Cavava motivação em algum canto, antes que cavassem uma cova para mim. Um quadro no escritório – confesso que não sei se ela lê – marca os dias de abstinência. Não o atualizo diariamente, mas nunca perco as contas.

Comentei com Beth nos primeiros dias, vendo nela o olhar da desconfiança. Compreendi que os números valeriam, acima de tudo, para mim e que o tempo – contado ou não – seria o melhor instrumento para limpar a casa, o melhor pedido de desculpas por provocar preocupações e frustrações.

Não sinto vontade até prova em contrário. Também não dou oportunidades. De vez em quando, uma provocação pelo prazer perverso. No final de semana retrasado, meus filhos se sentaram para comer pizza. Cada um tomou um copo de refrigerante. Peguei um deles, ameacei beber, devolvi e sorri por maldade momentânea diante de olhares surpresos.

Na última quinta, em sala de aula, peguei uma lata de uma aluna para dar um exemplo a partir da embalagem do refrigerante. Senti o cheiro, nada aconteceu, aula seguiu em paz.

Obrigado por este encontro. Meu nome é Marcus Vinicius Batista e sou viciado em refrigerante. Estou há 76 dias sem beber. Passo a passo. Dia após dia.


(publicado originalmente em
CONVERSAS E DISTRAÇÕES
em 25 de Março de 2019)


Marcus Vinícius Batista é professor universitário
e jornalista, além de cronista número um
da Imprensa Santista. É autor de
"Quando Os Mudos Conversam",
coletânea com o melhor de sua produção
publicado entre 2007 e 2015.



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