Jesus
Cristo cambaleava pela rua Oswaldo Cochrane, na esquina com a avenida Afonso
Pena, em Santos. O estalar do chicote reforçava o sofrimento físico e
psicológico, provocado pelos movimentos ritmados, automáticos do soldado
romano. Jesus contorcia o rosto e recolhia o corpo a cada chibatada.
No
meio das pessoas que acompanhavam a encenação da Via Sacra nos arredores da
Igreja de São Benedito, um menino de seis anos começou a gritar: “Mãe, mãe,
manda ele parar. Ele tá machucando Jesus.”
O
professor Antônio Carlos da Silva, de 50 anos, sorriu entre uma e outra
expressão de dor. Ele encarnava Jesus Cristo naquela sexta-feira santa e
considerava a aula dada com sucesso. O professor interpreta o papel há sete
anos.
Toninho
nasceu para interpretar. Assim, ele consegue cuidar dos outros. Ele se transforma
para transformar gente. Na religião católica, pessoas de todas as faixas
etárias. Na sala de aula, 75 estudantes de 7º e 8º anos do Colégio Rita de
Cássia, onde trabalha há nove anos, ensinando Português e Literatura.
Este
ano, os alunos se encontraram com Sherlock Holmes, o famoso detetive inglês, e
com Pinóquio. Desde 2017, quando o projeto Cosplay Literário começou por ideia
da colega Vanessa Horta, o pátio e as salas de aula receberam Castro Alves, o
Hobbit, Pedrinho (Sítio do Pica Pau Amarelo) e até um caixeiro viajante. “Eu
absorvo o livro, o personagem. Preciso despertar a curiosidade, na escola, na
igreja. Sou assim desde criança, daquelas que perguntavam porque segunda-feira
se chama segunda-feira.”
Mala
antiga
O
caixeiro carrega uma mala antiga que, por acaso, se “materializou” na garagem
do professor. Uma amiga estava de mudança e pediu para guardar objetos do pai
dela no local. A mala, antes relíquia familiar, agora carrega livros, que são
trocados em sala de aula. “Não valem livros de estimação. Temos que respeitar.”
O
envolvimento dos alunos é direto, sem entrelinhas ou figuras de linguagem. Eles
vestem o personagem com quem se identificam. Uma aluna, por exemplo,
confeccionou um capacete com isopor, o pintou e se maquiou para interpretar
Auggie Pullman, o protagonista com deformidade facial do livro
“Extraordinário”, escrito por RJ Palacio.
As
artes estão na vida do professor desde moleque. A música namora com a
literatura. Os estudantes conhecem vitrola e discos de vinil, enquanto passeiam
pelo repertório de Chico Buarque e Secos e Molhados. Toninho, por vezes, canta,
hábito que pode ser testemunhado também em saraus. “Me lembro das primeiras
músicas que me tocaram, aos quatro anos: ‘Primavera’, do Tim Maia; e ‘Skyline
Pigeon’, do Elton John.”
Toninho
(ou Pinóquio), em aula
O
nascimento da filha Laura
No
mês passado, Toninho atravessou outra etapa de transformação. Ao deixar
justamente um sarau, que acontecia num bistrô e café, ele teve a bicicleta
furtada. Pedalar é atividade diária e bicicleta, o meio de transporte para seus
dois empregos.
Os
donos do bistrô, Júnior Landim e Renata Fenyo, mobilizaram amigos e, numa
vaquinha, compraram uma bicicleta nova para o professor. Júnior inventou uma
desculpa – problemas pessoais, precisava desabafar – e convenceu Toninho a ir
ao café depois do fechamento.
Logo
depois, chegou Beto, dono da bicicletaria ao lado, com Laura, brilhando de nova
e cestinha a tiracolo. Depois da surpresa e das lágrimas, Toninho a batizou.
“Não estou acostumado a receber, estava num momento pessoal difícil. Laura é a
filha que não tive.”
Camaleão
na vida profissional
Antes
de se tornar professor, há 12 anos, Toninho foi um camaleão no mundo do
trabalho. Durante três anos, ele atuou como escriturário na Polícia Civil. Saiu
por causa de problemas digestivos. “Não aguentei quando apareceram no portão de
casa, perguntando se eu vendia documentos de trânsito. Não tive estômago.”
Dali,
houve a aprovação em outro concurso público e mais uma década na Telesp, na
organização das equipes de manutenção nas ruas. Em 2006, nova mudança, para a
Caixa Econômica Federal, no atendimento social, no Centro de Santos. Isso
significa, muitas vezes, atender pessoas em situação de pobreza extrema.
Elvis
Presley no banco
O
banco é a segunda jornada diária, após as aulas de Português e Literatura. A
agência bancária e a escola são lugares quase sinônimos. “Nos dois, preciso
descobrir o que as pessoas querem, proporcionar a elas com sensibilidade e
interagir com acolhimento.”
O
banco também conheceu a metamorfose física do professor. Numa das “festas da
firma”, o tema era rock and roll. Toninho não teve dúvidas: passou numa loja de
fantasias e alugou o figurino completo de Elvis Presley. Ao chegar na festa,
todos estavam de camisetas pretas. Fantasiados, ele e uma colega. O professor,
acostumado ao palco, fez jus ao traje e incorporou o rei do rock.
Casa
latino-americana
Acolher
se constitui em degrau obrigatório para o crescimento individual, na visão do
professor. Nos últimos dois anos, ele a esposa Diva, de família paraguaia,
passaram a hospedar jovens voluntários de toda a América Latina. Os jovens vêm
ao Brasil para a participação em projetos sociais. No mês passado, o casal
abrigou duas peruanas e um colombiano. “A proposta é uma refeição diária e
dormitório, mas não dá, né? Nós os tratamos como filhos. Já cuidamos de
adolescentes também do México, Costa Rica e Chile. É uma casa
latino-americana.”
A
América de língua espanhola, que deu ao professor a família da esposa e o
intercâmbio com jovens solidários, tirou dele, há dois meses, Juan, seu único
filho, de 19 anos. Toninho sentiu a dor da partida dele, assim que entrou no
ônibus, no Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos. “Desabei em lágrimas. Só
consegui me fortalecer pela religiosidade, mas ainda bem que tem a Internet.”
Toninho
e Juan se falam todos os dias, desde que o filho desembarcou em Buenos Aires,
na Argentina, para cursar Cinema numa universidade. O pai, orgulhoso, tenta
aprender com a mudança de Juan e com o ninho vazio. “Ele tá resolvendo tudo
sozinho. Falar espanhol ajuda e todos amadurecem.”
Juan
só voltará ao Brasil em julho. Até lá, o professor Antônio Carlos da Silva
ensina que o antídoto para a saudade é cuidar dos outros – sem didatismo ou ar
professoral, mas com exemplos. A pílula é ingerida uma vez ao dia, quando ele
se transforma em personagens (fantasiados ou não) para alterar o rumo de outras
histórias: as do seu público. “É assim que preencho meu dia e supero a ausência
dele.”
(publicado originalmente pelo DIÁRIO DO LITORAL
em 29 de Abril de 2019)
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