Tuesday, April 19, 2016

O CAPITÃO DA NOITE (por Carlão Bittencourt)


“Esse é o Capitão da Noite,
namorado da Lua,
amante das estrelas!”


Sempre que chegava ao Bar Acrópole, na esquina de Pinheiro Machado com a Barão de Penedo, no Jose Menino, em Santos, Mauá era recebido assim pela rapaziada presente.

O bordão não falhava. Nunca. Era essa a maneira daquela turma demonstrar sua admiração por um de seus heróis. E Paulo Sérgio Mauá fez por merecer. Desde pequeno.

Perdeu o pai com nove anos e, segundo testemunhas, foram precisos dois homens feitos para separá-lo do corpo do velho na hora de fechar o caixão. Nunca se refez da perda. Adulto, se emocionava ao se lembrar da figura paterna. Sempre.

Paulo Mauá fez história no bairro. Trabalhava de dia, mas vivia mesmo era durante a noite, boêmio nato e inveterado que era.

Morava na linda Alameda Barão de Penedo, perto do Orquidário, mas era duro como um cacto. Tinha pele grossa. E mão pesada. E pavio curto. Não era exatamente difícil fazê-lo comprar barulho. Encarava qualquer um no braço com a tranqüilidade de quem não sabe o que é medo. E detestava qualquer tipo de injustiça.

Nunca pulou o muro do lado mais baixo. Tinha temperamento, caráter e fortes convicções políticas, evidentemente de esquerda. E, ainda por cima, tinha algo raríssimo: carisma.

Tanto carisma rendeu grandes amigos e belas mulheres a Mauá. Uma delas, a ex-Miss Brasil mais bonita e talentosa de todos os tempos. Você pensou em quem? Pois é ela mesma: Vera Fischer.

O pessoal da Refinaria, onde trabalhava como calculista, logo percebeu isso. E o empedernido Paulo Mauá, quando deu fé, havia se transformado em líder sindical.

Eram os tempos duros da ditadura militar que, sem mais nem menos, subtraíra o Brasil dos brasileiros. E que, na luta para se perpetuar no poder, subtrairia muitas outras coisas, entre elas as vidas de vários daqueles que tiveram a coragem de resistir: os mártires esquecidos da democracia brasileira, aqueles sem direito a dia vermelho na folhinha.

Na Presidente Bernardes, Mauá fazia discursos-relâmpagos inflamados, reivindicando os direitos de seus pares. Subia num caixote, falava, sumia. E a coisa fervia.

O momento, porém, não era exatamente propício ao quero-quero, ao dá cá. Os milicos estavam mais era para o toma lá. E bota toma lá nisso. Não deu outra. Mauá foi preso. Torturado. Sofreu pressões de toda ordem para entregar o ouro. Fechou-se em copas. Resistiu bravamente. E só.

Sobre o episódio falava pouco, ou quase nunca. Apenas algumas vezes deixava escapar algo. Certa vez, com um sorriso amargo no rosto, citou a frase que estava escrita numa das paredes da carceragem do quartel em que ficou detido: “Aqui o filho chora e a mãe não escuta”. Um lema de puro terror.

Solto, foi demitido da Refinaria. E, pior, passou a ser perseguido pelo Governo Militar. Sistematicamente.

Bastava arranjar um emprego e, poucos dias ou semanas depois, estava novamente na rua. As desculpas eram as mais esfarrapadas possíveis. Mas a perseguição era real, contumaz, implacável.

Acuado, Mauá se viu obrigado a criar um código com sua companheira. Uma senha secreta que só os dois conheciam.

Ao descer do ônibus, ainda caminhando pela rua, dava um forte assovio em direção ao prédio onde morava. Um aviso sonoro de novo desemprego, prenúncio de novas dificuldades.

Assim, quando chegava em casa, nem precisava tocar no assunto, pois sua mulher já tinha visto aquele filme antes. Até demais. E só conseguia era torcer para que o mocinho não morresse no fim.

Não morreu. Mauá sobreviveu aos anos duros da Ditadura. Sabe Deus como! Mas sobreviveu. E mais. Com a anistia, discretamente foi à forra, que ninguém é de ferro.

Como muitos outros bravos carbonários, inclusive militares, processou e venceu o sistema nos tribunais. Foi readmitido, indenizado e, logo em seguida, aposentado com todos os seus direitos trabalhistas garantidos.

A justiça fez bem a ele. Mauá entrou numa nova fase de sua vida. Um momento mais tranqüilo, mais equilibrado. Mas não deixou a militância. Pelo contrário. Com os novos ares de liberdade que sopravam, tornou-se um ser ainda mais político. Se é que isso era possível.

Como Vogal do Trabalho, por diversas vezes fez com que a Justiça não pendesse contra o operariado. Era o fiel da balança.

Como cidadão, deu apoio e fez campanha para os candidatos nos quais acreditava. E se alegrou ao ver as primeiras vitórias do PT no cenário político nacional.

Em vida, não chegou a ver Lula chegar à Presidência da República. Mas, certamente subiu a rampa do Palácio da Alvorada junto com ele, graças ao seu espírito indomável.

Uma doença terrível, fulminante, levou-o muito antes da vitória do candidato petista. Um mal que todos pensavam curado, mas que na verdade jamais havia dado trégua a Mauá. Simplesmente tinha ficado na encolha, na campana, dissimulado, como os bate-paus do Delegado Fleury, durante os anos 70, pronto para dar o bote quando sua vítima se descuidasse. Ou menos esperasse. Dito e feito.

Casado pela segunda vez (com uma fiel companheira de militância), pai de João Pedro, Mauá provavelmente nunca tinha experimentado um momento de vida tão bom, tão pleno. Tanto que, se acreditasse no conceito, ele diria a todos que estava feliz. Mas nem seria preciso. Qualquer um veria que ele estava bem. Até o Cego Aderaldo.

Dia de muito é véspera de nada, diz o velho ditado. Quis o destino que a doença voltasse justamente quando o guerreiro menos esperava. Azar. Ou como dizia o próprio Paulo Mauá: “La vida no és la vida qui vivimos, és la solidón, és el recuerdo…”.

Paulo Sérgio Mauá faleceu no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Longe do mar, mas perto da família que tanto amou.

Só se enganou quando dizia, sorrindo: “ …desta vida nada se leva”. Estava errado.

Ao partir, precocemente, com pouco mais de 50 anos, Mauá levou com ele algo inestimável: o respeito de todos os que o conheceram. O mesmo respeito que despertara, muitos anos antes, num cabo do Exército Brasileiro.

Mauá fora interrogado por horas a fio sem entregar nada. Por vingança, foi colocado, nu, todo ferido, dentro de um tonel cheio de água suja. Por mais de um dia foi mantido naquele lugar e posição. Sem dizer nada. Firme.

Sua dignidade era tanta que mexeu com o militar. Condoído com a situação do prisioneiro, o cabo perguntou se poderia fazer alguma coisa por ele.

Sem pestanejar, afundado até o pescoço em suas convicções, Paulo Sérgio Mauá balbuciou que aceitava um copo d’água.


Carlão Bittencourt – 19.04.3016





Carlão Bittencourt é redator publicitário e cronista,
autor de "Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo dos salões de bilhar de São Paulo,
e escreve toda semana em LEVA UM CASAQUINHO.

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