Tuesday, April 12, 2016

XEQUE-MATE PARA HÉLDER CÂMARA (por Carlão Bittencourt)




Esta parada aconteceu no Edifício Holiday, no bairro da Divisa, mais exatamente no bar da galeria. Estávamos todos lá, o chamado “miolo” da bateria da Banda da Divisa em peso, mais algumas gatas do pedaço e uma namorada ou outra. A bebida oficial era cerveja e olha que não era pouca. A terceira “grade” do divino líqüido já tinha evaporado e, a julgar pela sede da rapaziada, a tarde prometia. E muito.

O samba, então, esse rolava fácil. Abrindo uma exceção, Cauê marcava um contra-surdo com uma batida gostosa, diferente, meio “puxada” para o repinique que, aliás, era o seu instrumento. Um craque até hoje.

No acompanhamento, todo mundo cantava e batucava um pouquinho. Mas sem suar. Uns na levada de mesa, outros nas garrafas vazias, uma malaca aqui, um prato com faca ali, um reco-reco acolá, muita palma de mão, batuque de mesa e a festa estava feita.

O relógio andava perto das quatro da tarde, o que queria dizer que a roda de samba já tinha duas horas duração. Duas horas sem repetir nenhuma letra de música. Coisa de gente grande.

De repente, o portuga trouxe algumas cervejas e disse que eram por conta do cara do balcão, que “fazia questão de pagar uma caixa para essa rapaziada tão cheia de ritmo…”. Tudo bem. Naquele grupo não se enjeitava nem injeção grátis, quanto mais cerveja em caixa! Olhamos todos para o cidadão e agradecemos, perguntando se ele queria ouvir alguma coisa. O homem pediu “Carinhoso”. E foi atendido.


Aí, de vez em sempre, ele vinha até a nossa mesa e enchia seu copo com as cervejas lá da caixa dele. Normal. Tão normal que esquecemos do gentil mecenas. Muitas loiras depois, pedimos a conta e lá estava, além nossas milhares de cervas, uma caixa de cerveja.

Tazinho estranhou, Bola 7 também. Peninha idem. O gajo, dono do boteco, explicou a confusão, dizendo que aquela caixa era a do cara do balcão, mas que ele tinha se mandado sem pagar. Filho da puta!

Uma coisa era certa: aquele malandro escroto ia levar o troco. Note você que, de simpático mecenas, o cidadão já tinha sido promovido a escroto. Sem escalas. E, só a título de ensinamento, ele iria também descobrir uma coisinha ou outra sobre os valores bíblicos vigentes na Banda Divisa. Algo assim na base do “olho por olho…”

A corriola saiu em campo como uma matilha de sabujos. Bingo! O caloteiro estava duas quadras adiante, regando com xixi o muro de um terreno baldio.

Correndo como um louco, Bitencão não calculou bem a estreita relação que existe entre peso e velocidade, principalmente no que diz respeito ao impacto. A cabeçada pegou o esperto, por assim dizer, em estado de inércia, catapultando-o por cima do muro. Foi uma vídeo-cassetada!

A pegada arrancou risadas de todos que estavam na captura do fujão. Foi então que alguém gritou, desesperado:

"Não façam isso! Esse é o Hélder Câmara!"

Nego Osni, que não era exatamente um cara letrado, sapecou de primeira:

"Hélder Câmara é o caralho! O bispo tem uns quarenta anos mais que esse pau-d'água!"

Ao que a voz retrucou:

"Não, não é “o” Dom Hélder Câmara. É Hélder Câmara, o campeão brasileiro de xadrez! Esse homem é um gênio!"


Imediatamente pulamos o muro e tratamos de resgatar o que tinha sobrado do campeão.

Com a cara amassada, todo sujo, meio rasgado, e praticamente sóbrio pela enorme quantidade de adrenalina que subitamente havia invadido seu sangue, Hélder Câmara, o Grande Mestre Internacional de Xadrez, pediu desculpas a todos.

E mais: não só pagou a caixa de cervejas devida, como ofereceu mais uma. Em seguida, entrou num táxi e desapareceu na tarde.

As pessoas foram se dispersando, inclusive a turma da Banda. Mas ficou um silêncio pesado, esquisito no ar. Um certo mal-estar que foi quebrado pela voz gozadora de Tazinho, falando alto para todos ouvirem:

"A sorte do tal Hélder Câmara é que o Bitencão só acertou ele uma vez. Com duas cabeçadas, o gênio não ia mais nem conseguir jogar dama…"

A tropa caiu na gargalhada.


CARLÃO BITTENCOURT 04.04.16



Carlão Bittencourt é redator publicitário e cronista,
autor de "Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo dos salões de bilhar de São Paulo,
e escreve toda semana em LEVA UM CASAQUINHO.


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