Sunday, July 8, 2018

A VIAGEM E A CURA #1 (ou ALL WE NEED IS HAPPINESS AND LOVE) (por Beth Soares)




Eram mais de 100 canais na TV a cabo. Da TV Senado aos Telecines, eu zapeei dia e noite, todos os 21 dias, com interrupção apenas entre 12h e 13h30 e depois entre 20h e 20h30. Esses eram os horários das visitas. Por um lado, o tédio e a sensação de perda de tempo. Por outro, os inúmeros momentos de reflexão que só a solidão combinada ao medo do não-futuro é capaz de proporcionar. Hoje, vejo que aquela foi, na verdade, minha chance de ganhar tempo. Ali, cercada por quatro paredes tão beges e insípidas quanto as refeições que me eram servidas, percebi o quanto eu havia adiado a realização de alguns sonhos. O pior é que, por mais que eu me esforçasse, não havia nenhum argumento bom o suficiente para justificar essa atitude.

Obedecendo a uma das fases do luto (eu ainda não sabia direito onde tudo aquilo daria), decidi barganhar com a vida: me dê mais alguns anos e eu arranco mais coragem daqui de dentro para realizar todos os planos que engavetei. Antes de qualquer resposta, maquinei todas as estratégias, reuni minhas economias e tracei o plano com base nelas. Dias depois, lá estava eu indo para casa. Entendi isso como um “sim” da vida. Negócio fechado! Agora me cabia cumprir minha parte.

E assim eu fiz. Não houve enrolação, dificuldades, nada. Cada passo do plano correu de forma tão leve e tantas surpresas boas vieram para melhorar o projeto, que só podia significar uma coisa: o “sim” da vida estava confirmado! A rapidez e a conexão perfeita dos acontecimentos foram tão surpreendentes que, mesmo meses depois da minha alta, até o Bruno, meu amigo de branco - na verdade, nunca vi meu médico, que virou meu amigo, vestido assim - custou a acreditar.

— Bruno, vou viajar.

— Ótimo, Beth. Você sabe que o emocional é parte importante da sua recuperação. Quando finalizarmos o tratamento com a quimio, no mês que vem, a gente refaz os exames e, se dentro de 3 meses permanecer tudo bem, eu te libero para viajar. Para onde é?

— Inglaterra. Escócia. França.

— Ah, que viagem bonita! Eu morro de vontade de conhecer a Escócia. E mesmo no verão, o clima nesses lugares não é tão ruim para você. Você sabe que não pode tomar sol, então se me dissesse que iria para o Caribe, eu vetaria sua viagem...

— Bruno... mas eu não vou no verão de lá. Vou no inverno.

— Ah, sim... vocês vão só no ano que vem...

— Não, Bruno. Vou no próximo mês. E sozinha.

— Você tá de brincadeira, né?

— Não. Já tá tudo certo. Passaporte, passagens, estadia, curso.

— Beth!!! Ainda falta um mês de quimioterapia! Você tá ficando louca?

— Ahahahaha... Bruno, nunca estive mais sã!

O Bruno é daqueles médicos que já não existem mais. Ou pelo menos existem em poucas quantidades. Os do passado, que com a idade dele - trinta e poucos - tinham esse entusiasmo, já não acreditam mais que valha a pena. Os de agora passam longe das qualidades que ele tem: prudência, respeito, compaixão, humildade para assumir quando não sabe o suficiente e ir buscar ajuda, tanto nos livros quanto em profissionais mais experientes.

Ainda abalado pela minha notícia repentina – e, pela cara dele, imprudente – o Bruno encontrou uma saída ganha-ganha.

— Vamos fazer o seguinte: você vai para São Paulo se consultar com a melhor e mais experiente especialista que conheço em casos como o seu. Por mim, você não iria viajar. Mas se ela achar que está tudo bem... a gente pensa no assunto.

Lá fui eu para o consultório da Dra. Gianna. De exames na mão e ansiedade na lua, sentei em frente à médica, uma mulher na casa dos 50 anos, de voz suave e muita simpatia. Enquanto ela lia e anotava na minha ficha os resultados (o Bruno já havia passado todos os detalhes do caso para ela), fui contando meus planos e, naturalmente, não conseguia conter o sorriso enquanto falava. E o que ela me disse foi mais uma confirmação daquele “sim” da vida:

— Sabe de uma coisa? Vou sugerir ao Bruno que cancele a última sessão de quimioterapia. Assim você pode ir mais tranquila, sem risco de estar com a imunidade muito baixa quando entrar no avião.

— Oi? Como assim? Tudo bem eu ir?

— Tudo bem, não. Tudo ótimo! Essa é a melhor medicação que você poderia receber: felicidade. A sua felicidade vai fazer com que você se cure mais rápido.

Eu ainda não tinha descido do espaço, quando ela me estendeu um papel. Achei que era uma receita médica, para que eu providenciasse algo a mais, além dos medicamentos que eu já estava tomando. Mas, para minha alegria, era uma lista com vários lugares que ela tinha amado, numa viagem que ela havia feito recentemente a Londres, e que recomendava que eu visitasse.

— E se o frio estiver muito difícil de aguentar, vai nessa loja aqui – e apontou com a caneta um nome que eu ouviria muito falar dali a alguns dias (mas isso é assunto para um outro texto): “Primark”.

Feliz da vida, levantei-me para sair e a última recomendação dela foi: “Aproveite esses dias de felicidade!” Eu seguiria esse conselho ao pé da letra, ainda que ela não me tivesse dado.
  
Quando voltei com a notícia, era perceptível a contrariedade do Bruno. Mas agora ele teria que negar dois pedidos, e um deles era de uma colega bastante conceituada e séria (ao contrário da paciente insana). Ele decidiu dar um voto de confiança para esse medicamento antigo, mas ainda pouco estudado: a alegria.

Não dormi na noite anterior à viagem. No aeroporto, após me despedir dos meus pais e do Marcus, virei de costas para que eles não vissem a lágrima que teimou em escorrer. Era um misto de ansiedade, felicidade e entusiasmo pelo mundo novo que eu estava prestes a ver, no Velho Mundo. Naquele momento, eu ainda não sabia que, em algumas semanas, Marcus estaria comigo num café em Londres, me fazendo a surpresa mais marcante de nossas vidas até então. Mas essa já é outra história.

Lá dentro da minha cabeça, o trecho de uma música dos Beatles se repetia insistentemente. Era assim:

There's nothing you can know (Não há nada que você possa aprender)
That isn't known (Que já não seja conhecido)
Nothing you can see that isn't shown (Nada que você possa ver que já não foi mostrado)
Nowhere you can be (Nenhum lugar que você possa estar)
That isn't where you're meant to be (Que não é onde você está destinado a estar)
It's easy (É fácil)
All you need is love (Tudo que você precisa é amor)
All you need is love (Tudo que você precisa é amor)
All you need is love, love (Tudo que você precisa é amor, amor)
Love is all you need (Amor é tudo que você precisa).

Eu descobriria em pouco tempo que esta música faria todo sentido. Era mais um “sim”.

Beth Soares nasceu em Santos SP,
é jornalista e editora no Ateliê de Palavras
ao lado do maridão Marcus Vinícius Batista,
colabora para o website JORNALIRISMO,
para o blog CONVERSAS & DISTRAÇÕES
e agora também para LEVA UM CASAQUINHO

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