Friday, July 6, 2018

FRIO (por Marcelo Rayel Correggiari)



O frio que faz aqui é bem menos rigoroso do que em outras partes do mundo.
Um conceito térmico relativo: o frio que faz as pessoas aqui baterem os queixos é um saboroso verão para tantas outras.
A sensação de temperatura está no rol das principais subjetividades que se pode ter. O quanto se sente de frio, calor, o quanto se é amado(a) (ou não), o tamanho do ódio, a dimensão da solidão, o que é saboroso ou repulsivo, tudo pode estar diretamente ligado ao que se passa no sujeito.
Há muito frio, mesmo que os termômetros indiquem os tradicionais 45ºC do nosso verão. Frio e aspereza. Um dia, a doçura foi embora e não deixou substituto. Uma espécie de ‘era do gelo’ começou a tomar conta de tudo e de todos apesar do nosso friozinho rastaquera.
Esse frio é insubstituível. Tem gente friorenta com 14ºC, tem gente que toma sorvete com -5ºC, tudo depende de onde alguém nasceu ou foi criado. Porém, o frio pouco teria a ver com esses efeitos geográficos sobre a psique humana.
Como é gélido um lugar que retomou seu princípio de austeridade canhestra pouco afeita à humanidade. É muito frio, esse lugar, certamente. Congelam-se os ossos e os espíritos diante dos desperdícios de qualquer talento vindouro. É sempre assim: essa superfície esconde os dois terços dos icebergs abaixo da linha d’água.
A humanidade não está aqui, não estaria nesse lugar refratário às meias-estações. Duvidoso: reduz cérebro à pasta, suco, cada vez que lança no ar seu sopro mais glacial de desconsideração do que cala na essência.
Sempre assim. Num lugar onde o inverno parece nunca ir embora, frio corpos de neonatos abandonados em caçambas de lixo são esse cartão-de-visita para os incautos que excessivamente insistem de que tudo está muito bem no mais álgido patamar da vertigem.
De giro em giro, a histeria de quem não consegue mais conter a própria queda nessa adoração e idolatria da doença que corrompe a criatura. A certeira dúvida de que o monstro por dentro não seria mais alimentado. Esteve, nos dias congelantes, esse frio que quebrou a espinha.




Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO

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