Friday, July 6, 2018

JOÃO e JEREMIAS - A PORRA DA HISTÓRIA (um folhetim beat de JR Fidalgo - 16ª de 17 partes)



CAPÍTULO XXVIII


Foi muita estupidez imaginar que as bugigangas que haviam ficado com Júlio poderiam render alguma grana decente.

A moto tinha se transformado num monte de ferro-velho enferrujado, depois de permanecer guardada durante todos aqueles anos num dos três ou quatro pequenos armazéns clandestinos que o pai de Júlio mantinha na zona portuária. O jeito foi aceitar a mixaria que a única pessoa que poderia se interessar por aquilo ofereceu, ou seja, o dono de um ferro-velho.

Alguns móveis, guardados no mesmo armazém, já tinham virado comida de cupim. E os cupins não haviam deixado nem um bilhete, agradecendo pela refeição.

Era óbvio que as duas TVs já não funcionavam mais, nem o aparelho de som ou os dois amplificadores, tanto o maior quanto o menor.

Bem, a guitarra estava em boas condições, mas isso só havia acontecido porque Júlio a tinha “adotado” e ela, desde que Jeremias partira, tinha se transformado em companheira fiel de Júlio, o que com certeza havia causado ciúmes doentios na sua fiel Fender trazida dos EUA e desde então deixada em segundo plano, abandonada num canto do quarto/sala de Júlio.

Jeremias, a princípio, não queria aceitar, mas Júlio insistiu tanto que ele acabou enfiando no bolso aquela “ajuda de custo” em troca da cessão definitiva do instrumento.

Afinal, Jeremias estava mesmo precisando desesperadamente de dinheiro e até aquela grana ridícula oferecida por Júlio pela guitarra fazia diferença na situação em que se encontrava. Ao mesmo tempo, àquela altura do campeonato, a última coisa que Jeremias estava precisando era de uma guitarra velha, mesmo que ela agora estive funcionando perfeitamente.

Trocando em miúdos, a grana conseguida por Jeremias dava para ele arrumar um lugar para dormir por alguns dias e continuar frequentando as lan-houses, para mandar seus e-mails para João, seu principal e único projeto no momento.


Estava de bom tamanho, pensou ele, enquanto se despedia da guarita falante e batia o portão da rua do prédio de Júlio, após recusar sua oferta para que dormisse ali por alguns dias.

 

CAPÍTULO XXIX


Já estava a alguns quarteirões de casa quando concluiu que aquilo não fazia sentido algum. Colocou as duas mochilas no chão e sentou-se na beirada do canal.  Sentiu-se envergonhado, pois percebeu a infantilidade de toda aquela merda. Só mesmo uma criança ou alguém seriamente perturbado poderia achar que fugir seria solução, solução para a travação em relação a escrever um cada vez mais improvável segundo livro, a solução para se livrar daquele beco sem saída em que se sentia aprisionado desde que Jeremias havia começado a lhe enviar aqueles e-mails malucos, a solução para aquele desespero profundo que tomava conta dele sempre que se pegava sozinho em casa e não conseguia fazer mais nada além de passar horas navegando na internet e buscando inutilmente algo para ver na TV a cabo, evitando assim, de todas as formas possíveis, pegar o notebook e tentar dar continuidade àquelas duas páginas que começavam com a frase “foi uma longa jornada dentro da noite”, exatamente a mesma frase com que encerrara A Porta dos Fundos do Paraíso.

O mais absurdo, porém, era que tinha decidido fugir sem nem sequer imaginar para onde ir. E qual seria a reação dela ao chegar em casa e perceber que ele havia simplesmente sumido? Claro, não seria a primeira vez que algo assim acontecia, só que tudo tem um limite e talvez o limite dela, justamente daquela vez, já tivesse se esgotado. Então, por todos os motivos do mundo, ele, como sempre fizera das outras vezes, deu meia volta e retornou para casa.

Enquanto tirava as roupas da primeira mochila e retirava o notebook da segunda, colocando-o sobre a mesa da sala, João entendeu que, de uma forma ou de outra, estaria preso ali, até que terminasse o que havia começado. O problema é que ele não sabia bem o que havia começado.

A sensação de que precisava terminar o que havia começado se referia, afinal, ao livro do qual só havia escrito duas páginas, à história que Jeremias vinha contando através dos e-mails ou a alguma outra coisa que ele não estava percebendo?

Essa última hipótese parecia fazer algum sentido, isto é, talvez ele não tivesse que terminar especificamente uma coisa, mas sim definir, de uma vez por todas, o que queria fazer da porra da vida, já que andar em círculos e imaginar que sabia para onde queria e devia ir, embora nunca saindo do lugar, havia se transformado na sua principal e única atividade nos últimos tempos.

Lembrou-se então de um filme francês que havia visto na TV, no qual um executivo abandona sua vida profissional de sucesso em Paris e vai para o sul da França, onde monta uma pousada com a mulher. Descobre, porém, que sua verdadeira vocação era fabricar azeite com as azeitonas que nasciam numa propriedade rural próxima à sua. A sua mulher, que não se adaptara à vida naquela pequena aldeia onde foram morar, volta para a cidade, mas ele continua lá, tentando apreender a distinguir, a partir dos seus pequenos ramos, a diferença entre os vários tipos de oliveira e a relação disso com a espécie de azeite que podia ser produzido com as azeitonas de cada árvore.


João concluiu, porém, que todo aquele blá-blá-blá podia não passar de mais uma grande e estúpida fantasia, daquelas que o levavam sempre ao mesmo lugar: a parede bem em frente ao seu nariz. Por isso, saiu novamente de casa, desta vez sem as mochilas. Ia apenas caminhar pelas ruas e ficar cansado o suficiente para esquecer aquela confusão toda, pelo menos por algum tempo.



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JR Fidalgo: um jornalista
que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco
pra escrever e um compositor
que não sabe tocar.

(mas que, mesmo assim,
já escreveu três romances
e uma quantidade considerável
de canções ao longo
dos últimos 45 anos)

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