As
passadas lentas viraram inércia diante da loja de casacos. Eu e Bel paramos
para ver os casacos de couro, estilo motociclista. Em Londres, a manhã era
ensolarada, mas sabíamos que anoitecia por volta das 16 horas, e a temperatura
caia a menos de cinco graus em certas noites. Já tinha um casaco e poderia usar
o clima como desculpa; como souvenir.
O
passeio por Notting Hill se justificava porque conheceria a livraria onde Julia
Roberts e Hugh Grant gravaram o filme “Um lugar chamado Notting Hill”. A
livraria se transformou em loja de lembrancinhas e outras quinquilharias, um
rascunho do cenário cinematográfico. O bairro de origem negra recebeu artistas
a partir dos anos 70 até virar um endereço de novos ricos, repleto de comércio
para turistas e lojas de grifes.
Apontei
para um casaco com dois emblemas de motos. Desconfiei porque vi outros modelos iguais.
Pensei: “deve ser de origem chinesa, produção em série a la 25 de março.” O
vacilo entre olhar as roupas e pensar sobre elas permitiu que o dono da loja se
aproximasse. Não havia como evitar o contato visual, regra de ouro para escapar
da abordagem.
O
dono da loja era um sujeito na casa dos 70 anos, calvo, com uma barba branca e
traços faciais típicos de um indiano. Vestia-se como um lorde de terno, gravata
e meio fraque. Os sapatos brilhavam à luz do sol. A conversa começou em inglês
e os braços dele sinalizavam para que entrássemos como presas na toca. O truque
de dialogar em português não funcionou diante da insistência.
Dentro
da loja, ele me mediu de cima a baixo e pediu para um funcionário trazer o
casaco. Ouvindo nossa conversa, perguntou: “Venezuelanos?” Disse que éramos
brasileiros e ouvi na sequência: “Obrigado, de nada.”
Enquanto
o funcionário tirava o casaco de um saco plástico, o indiano já retirava minha
jaqueta. Colocou o casaco nas minhas costas, puxou meu braço e olhou para mim.
Bel apenas sorria. A conversa seguia em inglês. Eu expliquei que a roupa ficou
apertada e ele pediu um número maior, que serviu bem. Aí começou a negociação.
O
indiano olhou de cima a baixo e foi firme: “200.” Na hora, quebrei outra regra,
que pode ser resumida na frase “quem converte não se diverte.” Inevitável
pensar que, com a libra a R$ 6, o casaco custaria R$ 1200. Resolvi usar a
desculpa básica, geralmente eficaz no Brasil. “Vamos dar uma volta e passamos
aqui mais tarde.”
O
indiano chamou o funcionário outra vez, que trouxe a calculadora. Ele digitou
90 libras e apontou para mim. Bel apenas sorria, enquanto eu pensava como era
abusivo o preço original. De 200 para 90 libras. Reforcei a desculpa do passeio
e fiz o movimento de sair da loja.
O
homem de terno segurou meu braço esquerdo e digitou na calculadora: 80 libras.
Olhei para Bel e ela sorriu novamente. Comecei a pensar na hipótese da compra,
mas o casaco ainda estava caro. Balancei a cabeça negativamente, falei que
voltaríamos mais tarde e vi o indiano mexer na calculadora. 70 libras.
Olhei
para Bel e falei em português: “se cair para 50 libras, eu levo.” Virei-me para
o indiano, que parecia impaciente e insistia na venda, desta vez tentando fazer
com que eu segurasse o casaco. Repeti o mantra da voltinha e ele, a dança de
empurrar a roupa.
Pressionado,
observei que Bel tentava sair de fininho. Mudei a tática e falei: “I will think
about it!” O indiano se enfureceu, deu o casaco nas mãos do funcionário e me
disse: “se soubesse que você iria pensar, não tinha te oferecido o casaco.”
Antes
que ele se aproximasse outra vez, percebi o espaço livre e sai da loja. Ao
notar que não haveria venda, o indiano mudou de feição. A cara fechada voltou a
ser sorriso, e ele insistiu, em tom mais baixo, que o casaco poderia ser meu
por 70 libras.
Lá
fora, falei para Bel: “Quase, por 50 eu levava”. Passeamos pelo bairro e a
lembrança foi um caderno para anotações. Ganhei dela também uma carteira de
couro, presente que incluiu a gravação das iniciais do meu nome.
À
tarde, em Camden Town, hoje o bairro dos artistas, entramos numa loja. Dezenas
de casacos de couro, idênticos aos da loja do indiano, estavam pendurados à
direita. Não aguentei a curiosidade e perguntei ao vendedor.
“Quanto?”
“70
libras.”
“Qualquer
um?”
“Qualquer
um!”
Minha
jaqueta, definitivamente, vai aguentar o tranco de outras viagens.
Marcus Vinícius Batista é professor universitário
e jornalista, além de cronista número um
da Imprensa Santista. É autor de
"Quando Os Mudos Conversam" (Realejo Livros),
coletânea com o melhor de sua produção
publicado entre 2007 e 2015.
e jornalista, além de cronista número um
da Imprensa Santista. É autor de
"Quando Os Mudos Conversam" (Realejo Livros),
coletânea com o melhor de sua produção
publicado entre 2007 e 2015.
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