CAPÍTULO XXX
João
já tinha passado por ali centenas de vezes e só naquele dia reparou que, no
lugar onde agora funcionava uma casa de ferragens, havia, muitos anos atrás, um
bar gay. Eles tinham tocado ali uma ocasião, dividindo um pequeno palco com uma
outra banda, da qual ele não recordava nem o nome nem os integrantes.
Todos
os contatos para a apresentação haviam sido feitos por Sami. Portanto, nem ele,
nem Jeremias, nem os outros membros da banda sabiam que iriam tocar num bar
gay. Não que isso fizesse alguma diferença, já que todos chegaram ao lugar,
como sempre, muito altos, a ponto das pessoas, que se aglomeravam em frente ao
palco, serem apenas vultos difusos se balançando ao som das canções que eles
tocavam. A única coisa impossível de não perceber, apesar de toda a chapação,
era a animação daquele pessoal, com certeza um dos públicos mais receptivos
para o qual já tinham se apresentado.
Os
problemas começaram mesmo quando alguém se aproximou do palco e avisou que
aquela devia ser a última música da seleção, já que a outra banda iria tocar
depois. Jeremias não gostou da idéia e
explicou para a mulher que parecia ser a dona do bar que eles ainda estavam
embalando e que, se parassem naquele momento, seria difícil retomar a coisa
mais tarde.
A
mulher explicou que por ela tudo bem, mas que a outra banda estava insistindo
pra tocar e que aquele revezamento depois de seis músicas era parte do acordo
que Sami havia feito. E como Sami tinha sumido, não havia como checar se era
aquilo mesmo ou não. Dessa forma, eles resolveram parar. Desceram do palco e
foram, primeiro, para o banheiro, e depois para o balcão.
Aliás,
foi no caminho do banheiro que eles repararam que duas garotas estavam se
amassando no corredor, muito à vontade, o que continuaram a fazer sem nenhum
constrangimento pela presença deles.
Quando
alguém avisou que era hora de voltar ao palco, a notícia não provocou muito
entusiasmo, já que todos preferiam, àquele altura, continuar onde estavam, isto
é, enchendo a cara no balcão e fazendo excursões ao banheiro. Mas, como afinal
o Sami havia combinado daquela forma, eles resolveram voltar a tocar. E é o que
teriam feito, se alguém da outra banda não houvesse vomitado no palco.
Na
verdade, parecia que todos os membros da outra banda tinham vomitado ao mesmo
tempo, já que o palco parecia um mar de merda, isto é, de vômito, ou pelo menos
era a impressão que dava, naquela iluminação precária do ambiente. Eles
disseram então que era preciso que o palco fosse limpo, já que não havia condições
de tocar em cima daquele vômito todo.
A
mulher do bar disse que todos os funcionários estavam ocupados servindo os
clientes e que não seria possível limpar o palco àquela hora. Jeremias
respondeu que, em cima do vomitado, ninguém ia tocar. Algumas pessoas na
platéia começaram a vaiar, já que a música tinha parado.
Jeremias
subiu ao palco, esgueirando-se por entre as poças de vômito, pegou o microfone
e explicou que a outra banda tinha vomitado no chão e que assim não daria pra
tocar. As pessoas pareceram entender a situação e alguém, lá do fundo, sugeriu
que se fizesse uma barricada de mesas em frente ao palco, e que eles tocassem
em cima das mesas. Afinal, todos estavam ali para ouvir um som e não era justo
que a noite terminasse por causa de algumas vomitadas no palco.
De
repente, o bar parecia estar passando por reformas, já que mesas começaram a
ser arrastadas de um lado para o outro, até que uma fileira delas se formou em
frente ao palco. Várias mãos se ofereceram para ajudar a subida dos músicos em
seus respectivos pedestais. Só quando eles chegaram lá em cima é que perceberam
que manter-se de pé naqueles poleiros, e ainda por cima tocando, não seria nada
fácil, até porque, enquanto se discutia se o som continuava ou não, nenhum
deles parou de beber e, agora, lá de cima, a sensação era a de estar dentro de
um frágil barco, em alto mar, no meio de uma tempestade.
Contudo,
depois de toda aquela confusão, não havia como não tocar. Por isso, eles
tocaram, ou tentaram fazer algo parecido com isso. Seja lá o que eles fizeram,
as pessoas parecem ter gostado, já que não paravam de dançar e gritar. E tudo
continuou assim quase até quase o amanhecer, quando João sentiu o chão, quer
dizer, a mesa sumir debaixo de seus pés.
Quando
voltou a si, João estava no meio de um círculo de pessoas que o olhavam
preocupadas. Alguém disse que era melhor levá-lo até o pronto-socorro. Lá,
levou vários pontos na cabeça e ficou em observação.
Aquela
apresentação no bar gay, que agora tinha virado uma loja de ferragens, foi a
última da banda.
CAPÍTULO XXXI
Seus
olhos pareciam ter sido hipnotizados por aqueles CDs e DVDs enfileirados
desordenadamente na estante. A grande maioria deles havia sido baixada
compulsivamente na internet. Quando aquilo começou, alguns anos atrás, ele
sentiu-se no paraíso, resgatando tantas coisas que haviam se perdido pelo
caminho e que ele jamais imaginou ser possível recuperar. Agora, olhando para
aquele monte de música e vídeos empacotado nas mídias digitais que abarrotavam
as prateleiras, chegava à conclusão de que, mesmo se vivesse tanto quanto tinha
vivido até ali, nunca seria capaz de ouvir e ver aquilo tudo.
Mas
o que o angustiava João não era isso, já que, há tempos, sabia que as coisas
importantes para se sentir e viver antes de morrer já não estavam mais em
estantes como aquela, mas sim dentro dele. O motivo de sua angústia era o fato
de ter perdido tanto tempo armazenando tudo aquilo, acreditando que aquilo, de
alguma forma, ainda podia salvar a sua vida, como ele achava que acontecera
algumas vezes no passado. E nem mesmo a respeito da existência real desses
supostos salvamentos ele tinha certeza agora. Em todo o caso, sempre podia
estar enganado, a respeito de tudo.
Então
sentou ao computador, anexou o arquivo e clicou em enviar.
Jeremias
já havia se esquecido do lance no bar gay e se divertiu bastante relembrando
aquela noite, mas ficou se perguntando por que diabos João tinha lhe enviado
aquele relato por e-mail. Afinal, era ele, Jeremias, quem pedira a João para
escrever a história que ele queria contar, e não ao contrário. Agora, do nada,
João, sabe-se lá por que motivo, lhe encaminhara aquele texto. Ora, seria mais
coerente se João simplesmente tivesse acrescentado o episódio à narrativa que
já estava escrevendo, com base nas coisas que Jeremias lhe mandava.
Bem,
era besteira ficar cobrando coerência de João, e o fato de ele ter enviado o
relato sobre aquela noite no bar gay era sinal de que estava, na verdade,
bastante envolvido com a história que Jeremias estava contando, tanto que ele
próprio andava desenterrando fragmentos de coisas ocorridas naquela época. Mas o que João pretendeu, quando mandou
aquilo? Foda-se, pensou Jeremias, enquanto se abrigava numa marquise, tentado
escapar da chuva que começara a desabar de uma hora pra outra.
O
vento estava soprando novamente. Há cerca de três ou quatro dias, várias vezes
durante cada dia, aquele vento soprava por sobre a cidade. João não sabia
explicar por que, mas sentia que aquele vento, soprando e soprando, às vezes
mais forte, outras vezes mais fraco, às vezes frio, às vezes quente, queria
dizer algo, ou melhor, aquele vento estava “fazendo” algo naquela cidade.
Lembrou de Dylan, dizendo que ninguém precisava ser um meteorologista para
saber em que direção os ventos sopram. E para onde sopravam aqueles ventos?
Pra
variar, de repente, achou que aquilo tudo podia ser uma grande besteira. Estava
ventando porque estava ventando, muito provavelmente em função das mudanças
climáticas meio malucas provocadas pela primavera, que já avançava rápida rumo
ao começo do verão. Estava ventando e isso não significava absolutamente nada
além do fato de que estava ventando. Só isso. Como sempre, ele perdia um tempo
precioso, atribuindo significados importantes a tudo o que acontecia. Tempo
precioso! E por que seu tempo era tão precioso assim? Ele não sabia, e com
quase toda a certeza isso também não tinha a mínima importância.
Seja
como for, ele sentiu uma necessidade urgente de voltar para casa. Não só voltar
para casa, mas de encontrar com ela e dizer que eles precisavam dar o fora o
quanto antes. Tinha que convencê-la a fazer isso já. O problema é que ela, sem
dúvida, iria querer saber qual o motivo dessa fuga desesperada, e ele não tinha
nenhuma resposta convincente para isso, já que apenas sentia que era preciso
dar o fora o mais rápido possível, pois, se insistissem em ficar naquela
cidade, corriam até mesmo risco de vida. E tudo tinha a ver com aquele vento
estranho que vinha soprando nos últimos dias.
Jeremias
também sentiu o vento. Caminhava pela praia e se surpreendeu com o fato do
vento estar levantando tanta areia. Lembrou-se de uma tempestade no deserto e
teve de proteger os olhos. Do nada, como começara, o vento parou. Jeremias
começou então a dar tapas na sua camisa e na sua bermuda, para tirar a areia
que havia se grudado em suas roupas. Ainda não tinha terminado de fazer isso,
quando o vento voltou a soprar, dessa vez ainda mais forte do que antes.
Percebeu que as poucas pessoas que caminhavam pela praia naquele fim de tarde
começaram rapidamente a fugir da faixa de areia, em direção aos jardins que
separavam a praia da avenida. A princípio, Jeremias revolveu resistir e
continuar caminhando, mas logo percebeu que isso seria impossível. O vento
soprava cada vez mais forte e levantava cada vez maiores quantidades de areia.
Decidiu então também fugir para a avenida.
Quando
chegou ao final do jardim e se preparava para atravessar a avenida, percebeu
que, novamente, o vento havia passado. O ar agora estava parado e denso, como
se alguém tivesse apertado um interruptor e “desligado” a ventania. Enfiou-se
na primeira lan house que encontrou, decidido a escrever algo sobre aquilo e
mandar para João. Mas mudou de idEia e ficou apenas olhando a tela vazia do
monitor e se perguntando se aquele vento estranho queria dizer alguma coisa.
Lembrou-se então da época em que muita gente dizia que a cidade seria coberta
por uma gigantesca onda e como ele achava aquilo tudo estúpido. Provavelmente, o vento era somente vento e
não queria dizer absolutamente nada, era apenas ar soprado de um lado para o
outro, naquele momento, na superfície do planeta ocupada por aquela cidade.
Levantou-se da bancada do computador, sem ter escrito nada, e foi embora.
Se
Jeremias tivesse aberto sua caixa postal, em vez de ficar viajando como um
idiota enquanto olhava para a tela em branco do computador na lan house,
saberia que João havia lhe enviado um e-mail, falando exatamente sobre aquele
vento que soprava na cidade há alguns dias.
“Tudo
tem a ver com esse vento”, disse João para ela, logo que chegou em casa,
tentando explicar por que eles precisavam cair fora daquela cidade. “Será que
você não está sentindo esse vento?”, perguntou João. É claro que ela tinha
sentido o vento, mas não via a mínima relação da porra do vento com aquela
ideia maluca de fugir da cidade sobre a qual João não parava de falar desde que
chegara da rua.
No
e-mail que enviara a Jeremias, João afirmava: “Ela achou que eu tinha pirado de
vez, com aquela história de vento e de querer sair da cidade. Na verdade, já há
algum tempo vínhamos conversando sobre a possibilidade de nos mudarmos para
outro local, onde nos sentíssemos mais ‘em casa’, coisa cada vez mais difícil
por aqui. No entanto, ela ficou realmente assustada quando eu comecei a falar do
vento e de como corríamos risco de vida, se não déssemos o fora rápido. Pela
primeira vez em muitos anos, me perguntou a sério se havia voltado a usar
drogas, e não pareceu muito convencida diante da minha negativa. ‘Se não é
droga, você tá surtando de novo. É melhor procurar ajuda’, disse ela, me
olhando preocupada e esperando uma reação minha. Minha reação foi simplesmente
repetir: ‘Precisamos dar o fora já. Ou o vento vai nos destruir.’”
Jeremias
não gostava de admitir aquilo, mas era o vento que, nos últimos dias, o levava
diariamente a observar o mar, para checar se seu nível não estava aumentando.
Naquela semana, havia sonhado quase todas as noites. O enredo dos sonhos era
diferente, mas eles terminavam sempre da mesma maneira. Ele, João, Cris e todos
os outros estavam lá, naquela praia, quando um vento forte, às vezes quente, às
vezes frio, começava a soprar. Então eles olhavam em direção do mar e, através
de uma espessa cortina de areia que a ventania criava, eles viam uma enorme
onda se formando e avançando rumo à praia. Logo depois Jeremias acordava,
suando e com a cabeça coberta pelo lençol, como se estivesse se protegendo da
grande onda que se aproximava.
Desde
que os sonhos começaram – e ele tinha quase certeza de que os sonhos haviam
começado no momento em que aquele vento começou a soprar sobre a cidade -,
Jeremias não havia conseguido escrever mais nenhum trecho da história que ele
queria que João contasse. Estava totalmente obcecado pelo vento – e pelo nível
do mar.
Assim
que abriu os olhos, João pensou que havia sonhado, mas depois considerou a
hipótese de que estivesse apenas recordando, de olhos fechados, aquelas
imagens. Afinal, ele não estava dormindo, somente deitado, ouvindo música,
quando a cena, de contornos bem nítidos, foi se formando em sua cabeça. Ele e
Sara, mais de 30 anos atrás, caminhando à noite na praia. Passaram longo tempo
no escuro, se amassando. Depois andaram em direção à avenida. Quando estavam
próximos do jardim que separava a areia da avenida, João sentiu-se estranho.
Seu corpo parecia mais pesado, mas tinha a impressão de que seus pés deslizavam
a alguns centímetros do chão, como que sustentados por minúsculos colchões de
ar.
Ao
olhar para os prédios, do outro lado da avenida, eles pareciam estar lentamente
derretendo. A sensação durou cerca de um minuto. João não sabia se Sara estava
sentindo e vendo as mesmas coisas que ele, no entanto tinha a impressão de que
sim, por isso, ou talvez por medo, não comentou nada com ela sobre aquilo, nem
naquele momento nem em qualquer outra ocasião.
Na
época, achou que aquela sensação podia muito bem ser um efeito retardado do
ácido, embora tanto ele quanto Sara houvessem então, quando muito, realizado
duas ou três viagens, a última delas vários meses atrás. Agora, porém, ao
recordar aquela cena João já não tinha tanta certeza de que aquele episódio,
ocorrido há tanto tempo naquela praia, tivesse sido causado por um mero efeito
colateral lisérgico.
A
questão é que agora, ao se recordar daquela cena, João se lembrou também de
que, quando os prédios estavam “derretendo”, um forte vento, vindo da praia,
soprava através da avenida. O curioso é que, durante todos aqueles anos, ele
não havia se dado conta disso, como se a lembrança daquele forte vento, mais de
30 anos atrás, tivesse ficado todo esse tempo bloqueada por seu subconsciente.
Por quê? João não sabia responder, mas mandaria um e-mail para Jeremias
abordando o assunto.
No
minúsculo quarto da pensão onde estava dormindo – sua nona morada desde que
chegara a cidade -, Jeremias acordou com sua cama tremendo. Foi até a janela e
viu o bate-estaca no terreno ao lado, cravando na terra mais uma profunda
coluna de aço que sustentaria o alicerce de mais um alto prédio que estava
sendo construído na cidade. Sentindo tudo tremer à sua volta cada vez que a
máquina golpeava a estaca contra o chão, Jeremias se perguntou se tantas
estacas, tão longas, cravadas simultaneamente em tantos pontos da cidade, não
acabariam, a qualquer momento, provocando alguma séria convulsão sísmica.
Afinal,
a cidade ficava numa ilha e, em grande parte dela, quando se cavava um pouco
mais fundo no chão, a água aparecia. Depois achou aquilo tudo uma grande
bobagem. Afinal, quem era ele para colocar em dúvida a capacidade técnica de
todos aqueles engenheiros e arquitetos que estavam construindo todos aqueles
grandes e modernos prédios na cidade?
Estava
fazendo a barba, na pequena pia que havia no quarto, quando um impacto mais
forte do bate-estaca fez com que cortasse o rosto, um corte profundo, que sujou
de sangue a louça branca, velha e rachada da pequena pia. Enquanto estancava o
sangue, percebeu que o barulho do bate-estaca havia parado. Foi até a janela. O
monstrengo realmente estava descansando. Um vento forte, agora muito quente,
soprava lá fora.
João
também sentia o vento forte. Só que, no lugar onde estava, o vento era frio.
Encostado na amurada de pedra que separava o fim da praia do início do porto,
que começava logo adiante, João observava o mar ficando mais e mais encrespado.
Volta e meia, João se pegava ali, encostado naquela amurada, com os olhos fixos
no mar do canal por onde os navios entravam e saíam da cidade. Aquele era o
único lugar onde João ainda conseguia se sentir realmente um pouco mais
presente na cidade onde havia nascido.
Pensou
em Jeremias e imaginou que ele não tinha mandado mais nenhum e-mail com a
continuação da história. Aliás, era ele, João, que nos últimos tempos andava
mandando mensagens para Jeremias, e nenhuma delas havia sido respondida. Talvez
Jeremias tivesse sumido de novo. Se fosse assim, a história que Jeremias queria
contar nunca chegaria ao fim.
Olhando
o mar, que ficava cada vez mais agitado à medida que a velocidade do vento
aumentava, João gritou da amurada: “Foda-se!”
“Foda-se”
foi o que Jeremias disse, ao decidir ir embora. Aliás, não apenas ir embora,
mas mandar tudo aquilo à merda, tudo o que envolvia aquela cidade e,
principalmente, aquela história que ele, um dia, achou que seria importante
contar. A questão era que, desde que aquele maldito vento começara a soprar,
ele não conseguia mais raciocinar direito a respeito de porra nenhuma. Vivia
sobressaltado com a proximidade da próxima rajada. Seria mais forte ou mais
fraca do que a anterior? Seria quente ou fria? E o nível do mar, havia subido
mais um pouco durante a última noite?
Jeremias
sentia que estava enlouquecendo e sabia que a única saída era dar o fora. E que
diabos estava esperando então? Por que não dava o fora já? Porque, lá no fundo,
ele sentia que precisava esperar um pouco mais. Mas esperar o quê? Bem, isso
ele não fazia a mínima idéia.
“Merda,
merda, merda! Foda-se, foda-se, foda-se!”
João
não conseguia explicar para si mesmo por que, naquele estado maníaco-depressivo
em que se encontrava nos últimos dias, havia aceitado participar de um debate
com outros escritores, numa feira de livros que se realizava na cidade. De
qualquer forma, lá estava ele, mais uma vez fazendo essa perguntava para si
mesmo, quando o mediador da mesa lhe perguntou o que ele pretendera ao escrever
“A Porta dos Fundos do Paraíso”. João pegou o microfone e ficou por longo tempo
encarando as pessoas sentadas na platéia. Depois, disse:
–
Jeremias.
–
Como?, indagou o mediador.
–
Jeremias, repetiu João.
–
Quem é Jeremias?
–
Eu já não sei direito. Na verdade, às vezes eu duvido que ele ainda esteja
vivo.
–
Mas o que esse Jeremias tem a ver com o seu livro, “A Porta dos Fundos do
Paraíso”?
–
Eu acho que tem tudo a ver, mas vocês não iam entender. Então por que vocês não
me deixam em paz? Talvez vocês todos estejam certos e eu errado, quer dizer,
talvez eu esteja apenas enlouquecendo.palestra
–
Como?
–
É isso, é o como. Não existe um porque, somente um como! E eu não estou sabendo
como contar a história que Jeremias me pediu pra contar. O maldito vento…
–
Que vento?
–
Esse maldito vento. Será que vocês não estão sentindo esse maldito vento?
João
jogou o microfone no chão e saiu andando.
Um
garoto sentado na última fila aplaudiu. João não percebeu.
Naquele
dia, o vento começou a soprar logo que os primeiros raios de sol apareceram. Na
verdade, os raios de sol não apareceram, porque o dia amanheceu nublado. Foi o
que Jeremias descobriu ao colocar a cara para fora da janela, sentindo seus
olhos arderem por causa da areia que o vento levantava.
Ao
contrário do que sempre acontecia, naquela manhã o vento não o incomodou.
Estranhamente ele sentiu o vento como um companheiro, uma espécie de trilha
sonora para a história que estava vivendo ali, embora cada vez mais se
convencesse de que aquele enredo não fazia o mínimo sentido.
Jeremias
foi caminhando direto para a praia e, durante o percurso, reparou que as
pessoas nas ruas não pareciam incomodadas com o vento, que soprava cada vez
mais forte, às vezes frio, às vezes quente. Ninguém parecia também dar a mínima
para a areia que obrigava Jeremias, de quando em quando, a limpar as lentes de
seus óculos escuros, para poder voltar a enxergar alguma coisa. Achou aquilo
estranho, mas concluiu que era apenas mais um detalhe inusitado daquele
inusitado roteiro que alguém devia ter escrito durante um surto psicótico
qualquer.
Ao
chegar à praia e pisar na areia, apertou o passo. Tinha a sensação de que ele
estaria lá, exatamente no lugar onde imaginara, mas sentia que precisava chegar
na hora certa. Talvez a coisa toda tivesse a ver com sincronicidade ou com
qualquer outra dessas teorias malucas que procuram explicar acontecimentos
inexplicáveis. De qualquer forma, foi um alívio vê-lo lá, sentado na areia, ou
melhor, envolvo num rodamoinho de areia que o vento levantava. Sentou-se ao seu
lado e logo um outro rodamoinho também o envolveu.
–
Eu sabia que ia te encontrar aqui
–
Eu tinha certeza de que você apareceria.
–
Engraçadas essas coisas, né?
–
Muito.
–
Então, o que a gente faz?
–
Não sei, você tem alguma ideia?
–
Minhas idéias acabaram há muito tempo.
–
Acho que as minhas também.
–
Bem, a gente pode ficar por aqui mesmo, esperando o que vai acontecer.
–
Por mim tudo bem, embora esse vento cheio de areia me incomode um pouco.
–
Pra dizer a verdade, eu já me acostumei com ele. Agora eu estranho é quando não
venta.
–
Sabe que você tem razão. Às vezes também acontece comigo. Sinto falta dele, do
vento.
–
E a história?
–
Que história?
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JR Fidalgo: um jornalista
que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco
pra escrever e um compositor
que não sabe tocar.
(mas que, mesmo assim,
já escreveu três romances
e uma quantidade considerável
de canções ao longo
dos últimos 45 anos)
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