Sunday, July 8, 2018

NEM UM FOGUINHO (por Ademir Demarchi)



“Ao fim da vida, depois de dedicá-la à física e ganhar um Prêmio Nobel, o cientista Richard Feymann disse: ‘vivemos num universo misterioso e sem nenhum propósito’”. A frase, lida numa revista semanal, parecendo propositadamente misturada ao noticiário político, ficou ecoando na cabeça do ginecologista aposentado Dr. Aranha, atualmente ornitólogo e filósofo improvisado depois de dedicar-se uma vida à zoologia no consultório de madames. Também se vislumbrando uma espécie de inseto ainda não identificada por si próprio, no fim da vida tentava fazer a mesma constatação que Feymann, enquanto dava frutas e alpistes aos pássaros de sua gaiola tropical.

Passou a tarde entre as duas funções. “O que intriga não é o mistério, que, afinal, move a curiosidade humana e dá um sentido à vida. Onde há mistério há um curioso. O problema está na falta de propósito do universo, da vida...”

Banhara-se, ceara, dormira, acordara, fez o desjejum e eis ainda a remoer o mistério e a falta de sentido, de pijama de seda no meio da manhã, ensaiando o que dizer numa palestra de fim de tarde para desocupados de um clube de amigos que adotava como símbolo um burro. Precisava caprichar, pois o ex-prefeito, atual deputado federal, delirante de ser futuro ministro, mas eterno burro emérito do clube, estaria entre eles. À mesa, prestava atenção no canto de um dos pássaros lá fora enquanto segurava uma torrada quando a mulher dissolveu suas fumaças de pensamento perguntando: “será que na idade da pedra o homem não acendia nem um foguinho pra namorar?”

Por um instante boquiaberto, a torrada ainda mais suspensa no ar, com o universo ganhando outras inesperadas faltas de sentido, ele por fim respondeu com a sobrancelha mais arqueada que nunca e a cabeça ondulando: “Nenhum, Foguinho. Iam direto ao ponto”.

Como toda mulher, romântica incurável, ela não gostou da resposta, explicitada num beicinho sutilmente contrariado, sutilmente infantil, pensou ele, que, diante disso, já estava em outro universo, imaginando a vida nas cavernas, onde, em sua imaginação, colocou os pássaros que cantavam lá fora pra voar sobre as cabeças dos trogloditas espalhados pelo chão: “eles caçavam, comiam, procriavam. Ficavam o tempo todo ocupados em procurar comida, em evitar virar comida de outros mais fortes e mais esfomeados e viviam como animais. Quando tinham vontade, pegavam a fêmea que estivesse no cio. Nenhum foguinho, Foguinho”.

Sem ainda ser pronunciada por ele, a frase de Feymann tecia suas teias e a alcançava. Aquela caverna por ele descrita ia preenchendo sua imaginação e logo ela estava vislumbrando a falta de sentido que supunha ser aquela vida dos trogloditas. Foi o que bastou para virar antropóloga comparativista e lembrar-se da parafernália de taças, água suíça, vinhos na temperatura certa, comidas exóticas e, claro, o foguinho das velas aceso no ritual da noite anterior, que, pensava, os tornavam completamente diferentes daqueles ancestrais, com os de agora devidamente mantidos à distância com os novos hábitos civilizacionais... Atiçada em sua doença romântica incurável por essa noite, ela ainda estava com todos os sintomas de enlevo e fantasia, apaixonada, olhando para ele segurando aquela torrada: “ainda bem que inventamos o foguinho”. “Em cavernas exclusivas...”, emendou ele em pensamento.

Um tico-tico irado se manifestou numa árvore de pitangas terrivelmente vermelhas vislumbradas pela janela e a torrada que pairava no ar como que se manifestou existindo para ele, que a levou à boca sentindo o gosto animal das cavernas enquanto ela selvagemente estraçalhava um iogurte desnatado à sua frente.

Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Edições.

No comments:

Post a Comment