Monday, December 3, 2018

O JOGO DO DESAPEGO (por Beth Soares)



Volta e meia a questão do desapego volta à pauta de destaque entre os milhares de assuntos que se intrincam na minha mente. Passei longos dias inconscientemente bolando um discurso no qual eu era, ao mesmo tempo, oradora, ouvinte e personagem desapegada.

Reuni provas, testemunhos, dediquei meus ouvidos analíticos a histórias sobre mim que legitimavam essa ideia, ainda que quem as contasse fosse eu mesma, do alto do meu posto de observadora profundamente parcial.

Eu, desapegada, doei tantas roupas, sapatos, móveis, ao longo da vida emprestei tantos livros que não foram devolvidos e nunca mais fiz questão deles. Doei tanto à caridade, seja em forma de dinheiro, comida, ouvidos atentos ou trabalhos não-remunerados. Não é este um grande exemplo de desapego ao presente?

Além disso, não sinto essa tal saudade do passado, que observo permear a vida de tantas pessoas. Não tenho interesse em querer revivê-lo, como tantos tentam. Para dizer a verdade, acho mesmo é triste que as pessoas se esforcem por tentar voltar a um tempo que, muitas vezes, foi construído, senão totalmente, em parte significante apenas na fantasia. Este é meu testemunho de desapego ao que passou.

Desapegada que sou até de mim, não temo a morte. Sentei-me com ela na mesma mesa. Dividimos a conta – metade para ela, metade para mim. Todos ganham, todos perdem. Não tenho nela uma inimiga. Ela pode vir quando quiser. Qual prova de desapego ao futuro pode ser mais explícita?

Tentei me convencer que a questão do apego estava praticamente resolvida nesta minha existência. Mas a mente é capaz de desmentir os planos mais sofisticados, rasgar em segundos o roteiro que escrevemos por meses, destruir com um sopro a trama que estruturamos por anos. Ela finge que aceita, para, em seguida, nos expor sem nenhuma possibilidade de contra argumentação.

Não posso por isso ser injusta e dizer que minha mente é cruel. Pelo menos não sempre. Às vezes ela é sutil. No meu caso, para revelar minhas tentativas contundentes de autoengano, ela se aproveita do momento em que não estou alerta. Quando não há preocupações práticas imediatas, nem aparências pelas quais zelar, tampouco barreiras carentes de uma demão de verniz social.

Foi assim esta noite. Me vi numa casa antiga do centro de Santos. Lá estava uma grande amiga, me esperando. Mônica tem estado sempre por perto quando preciso. Se tento esconder problemas, ela cava, cava, até que eu deixe uma pontinha à mostra, suficiente para que ela deduza todo o resto, e me ajude a fazê-lo desaparecer. É alguém com grande capacidade de organização e senso estético e, por isso mesmo, estranhei a presença dela naquele ambiente. Estava uma bagunça ensandecedora até para mim, típica geminiana de mil fases e humores num só dia.

Cheguei perto e reconheci alguns objetos. Mais perto, reconheci todos. Todos, sem exceção, eram meus. Uma cômoda com algumas gavetas era tudo que eu tinha para tentar organizá-los. Mônica dobrava algumas roupas sem parar, e me olhava sorrindo. Eu sabia que elas estavam indo para doação. Me senti compelida a começar a arrumação, muito a contragosto, por culpa de uma sempre presente preguiça-para-determinados-tipos-de-trabalho. Mas no fundo era simples – achei: bastaria me livrar do excesso. Isso significava seleção entre o que realmente é necessário e o que pode ser deixado para trás, como troféu do meu esplendoroso desapego. Abri uma das gavetas da cômoda e comecei o trabalho.

Logo de cara, vi minha nécessaire da natação, com todos os meus apetrechos. Óculos, spray desembaçador, a touca nova superconfortável, três frascos pequenos nos quais ponho shampoo, condicionador e creme sem enxágue. Todos ricos em vitaminas, proteínas e sais minerais, com seus nomes-códigos impronunciáveis, próprios para cabelos danificados pela ação da piscina, do mar e do efeito estufa. Amo nadar. Impossível deixar tudo aquilo para trás. Ok, ok. Vou deixar a gaveta da natação para depois. Penso melhor e, então, volto nela. Vamos para outra gaveta.

Vi nas minhas mãos minha nécessaire de maquiagens. Meu batom novo. Vermelho mate. Demorei para encontrar o tom que eu queria. Assim como o pó compacto e o blush. Também demorei para encontrar os pincéis certos para cada coisa. Um deles foi a própria Mônica que me deu: para fazer aquele truque da sombra, o côncavo, sabe? Aprendemos juntas. Desse não posso me desfazer. Motivos emocionais. Melhor deixar essa para depois, também. Qual é a próxima gaveta?

Me virei para olhar o que mais tinha de importante para guardar e percebi que havia uma TV ligada o tempo todo. Não assisto programas de TV aberta ou a cabo há muito tempo (viva a Netflix!), mas me chamou a atenção uma notícia esquisita:

“Saiu o prêmio do Desapego! Um milhão de reais para o vencedor!”

- Desapego? Você sabe o que é isso, Mônica? Um novo jogo, tipo Mega Sena?

- Não faço ideia – ela disse, sem deixar de sorrir e dobrar roupas.

- Preciso aprender como se joga. Já pensou, ficar milionária com esse tal de desapego? Viajaria o mundo todo. Adoraria fotografar o mundo...

Abri a próxima gaveta e lá estava minha Nikon. Adoro minha câmera... Pensei nela e ela foi sozinha lá pra dentro! Estava entendendo onde minha mente queria chegar, mas tentei fingir que não.

Já irritada, fui para a próxima gaveta. Fotos de família. Olhei para elas e lembrei do contexto de cada um daqueles momentos. À medida que folheava o álbum, as fotos dos meus pais ficavam mais recentes: os cabelos mais brancos, as linhas mais profundas. Eles estão envelhecendo e, se eu continuar viva por mais alguns anos, vou vê-los partir. É natural. Mas também é muito triste. Não quero. Não quero ter que me despedir deles. E se algum dos meus irmãos também for antes de mim? Não! Fechei rápido essa gaveta. Próxima!
  


Fotos do Marcus, meu marido. O mesmo se repetiu. Cabelos foram ficando grisalhos... Lembrei do corpo que não fica em silêncio mais de 24 horas – sempre há uma dor para reclamar. A gente sempre brinca, um tentando provar para o outro que tem mais possibilidades de ir embora primeiro. Falamos das dívidas e do perdão delas, de acordo com o que nos reservar o destino. Sempre rimos. Um riso que dissimula o medo. Ninguém quer ficar por último.

Minha amiga não dizia nada – o que comecei a achar estranho! Mas será que precisava? Permaneci olhando para ela um pouco mais. Não quero que ela deixe de estar na minha vida. Não quero que nenhum dos meus amigos deixem de estar na minha vida. Nem os antigos, nem os novos nem os que farei nos próximos anos. Morro de saudades dos que somem (ou fui eu quem sumiu?), mesmo que não os procure com frequência.

Acordei antes de descobrir em qual gaveta estava o maldito desapego que eu jurava que tinha. Ele era meu. Só meu. E valia tanto...

Tá bom, vai... entendi. Esse tal de jogo do desapego não é para iniciantes. Só aposta nele quem é muito, muito sábio.


Ou muito, muito burro.

(publicado originalmente em
CONVERSAS E DISTRAÇÕES
em Maio de 2017)


Beth Soares nasceu em Santos SP,
é jornalista e editora no Ateliê de Palavras
ao lado do maridão Marcus Vinícius Batista,
colabora para o website JORNALIRISMO,
para o blog CONVERSAS & DISTRAÇÕES
e agora também para LEVA UM CASAQUINHO




No comments:

Post a Comment