Monday, January 30, 2017

ESCRACHANDO O DEMÔNIO COM UM CHUTE NOS BAGOS #11 (um folhetim de J R Fidalgo)


À VENDA ONLINE E AGORA
EM TODAS AS LIVRARIAS!
(1ª temporada, episódio 11)


Aproximei-me de uma assistente que tinha a cara menos estranha do grupo e perguntei, com ar de preocupação, se, por acaso, meu amigo não havia deixado de tomar os remédios prescritos durante a sua mais recente reabilitação e voltado às drogas, digamos, ilegais.

Ela me respondeu com um revirar de olhos que até hoje não entendi o significado.

No centro do galpão, havia uma dessas mesas compridas, meu amigo à cabeceira e seis ou sete assistentes, incluindo Speed, sentados ao redor. Ofereceram-se uma cadeira e, após perguntarem se alguém queria beber ou comer algo, meu amigo começou a expor “o plano”.

Eu gravaria um comercial maquiado como o Coringa, mas de forma estilizada – exigência dos detentores dos direitos autorais. Meu rosto aparecia em close, com cortes na altura do começo do cabelo na testa e no queixo, o que daria destaque aos movimentos da grande boca. Meu texto se resumia à citação em azul na capa do livro pardo: ““não se defenda, chute primeiro, acerte nos bagos, não hesite, chute já!”

A câmera se afastaria do meu rosto, até me pegar de costas, sentado numa cadeira iluminada apenas por um holofote que destacava a minha silhueta contra o escuro do resto do cenário. Embaixo da tela, num letreiro, agora em letras maiúscula e amarelas: “ESCRACHANDO O DEMÔNIO COM UM CHUTE NOS BAGOS. À VENDA ON LINE (link do site) E AGORA EM TODAS AS LIVRARIA”.

- Por que o Coringa?, perguntei.

- Porque é ao mesmo tempo assustador e engraçado”, respondeu uma das garotas da produção.

- Mas esse é só o primeiro, prossegui meu amigo. Num dos vídeos você aparece de Coringa; em outro, como o Flash, e outro, como o Batman. Vão passar os três comerciais alternados, com várias inserções ao dia.

- Vocês despirocaram de vez? Tô fora dessa merda.


Meu amigo voltou à carga: “Cara, vê se entende, vai ser o primeiro livro de autoajuda recomendado por super heróis.”

- Toda essa confusão legal, de paraíso fiscal, chantagem, dinheiro lavado pra comprar direito autorais. Vocês já pensaram na grande bosta que pode dar isso?

- Nós já temos um puta grupo de advogados especializado trabalhando nisso. Na verdade, eles são especialistas em apagar todos os rastros e pegadas”, disse confiante meu amigo.


Que prosseguiu: “Isso me deu outra grande ideia. Vamos fazer um quarto comercial com você caracterizado como Saul Goodman.

- Quem é Saul Goodman?, perguntei.

- O advogado do Walter White, do Breaking Bad. Tão fazendo uma série sobre o Saul antes de ele conhecer do Walter. Já está na segunda temporada e começou a bombar na TV a cabo.

- Gente, agradeço a atenção, mas estou desesperadamente precisando me esconder em minha caverna. O Speed poderia me levar de volta agora?



Chovia quando o helicóptero desceu no gramado de casa.

Perguntei pro Speed se ele não queria esperar um pouco para decolar de novo, mas ele me garantiu que, depois das montanhas, o tempo estava ótimo.

Em vez de tomar a direção de casa, fui para a caverna.

Cheguei lá ensopado, mas fiquei vestido até anoitecer, quando ouvi minha mulher colocar uma bandeja com comida na entrada da caverna.

Ela sabia que o melhor a fazer, nessas ocasiões, era me deixar distante de todos, inclusive dela.

Escureceu por completo. Acendi os lampiões e fui buscar a bandeja que minha mulher havia trazido.

Aproximei-me dos lampiões e comi.

Continuava chovendo. Recolhi alguns galhos secos no chão da caverna e, usando um pouco de querosene de um dos lampiões, acendi uma minifogueira. Dormi com as roupas ainda úmidas, ouvindo a chuva caindo lá fora.

Acordei com um raio de sol que atingiu meus olhos a partir de uma fenda numa das paredes de rocha.

Levantei, fui lá fora e disse em voz alta: “Já que não consegui me tornar invisível nem um pregador bêbado de uma igreja no deserto, vamos lá então, chutar os bagos do demônio.”

Liguei para meu amigo e perguntei se Speed tinha condições de vir me buscar a tempo de participar do início da produção do comercial com o Coringa. Ele respondeu que tudo bem.

Aguardariam minha chegada para começar os preparativos. Minha presença ajudaria.


JR Fidalgo,
um jornalista que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco pra escrever
e um compositor que não sabe tocar.

(mesmo assim escreveu dois romances
e uma quantidade considerável de canções
ao longo dos últimos 40 anos - nota do editor)




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