Thursday, September 21, 2017

CADEIRAS SOBRE A MESA (uma crônica de Marcelo Rayel Correggiari)


Uma mercearia ‘24 horas’ jamais fôra uma tarefa fácil: a certa altura, o cansaço bate. Além disso, um esforço grande para as despesas quando o sol se põe: eletricidade e funcionários, horas-extras... o custo e o impacto das operações podem ser fatais.
Fica muito claro que todos têm direito ao descanso, ao sono, ao repouso. O duro é explicar isso para os notívagos...
A boa e velha boemia só ocorre em casos de adesão: diversões noturnas, dessas madrugada afora, só existem em bom número, densidade e consistência para aqueles que desejam faturar em cima daqueles que se jogam na ‘night’ sem saber, ao certo, onde tudo vai parar.
Caso contrário, meia-noite e tudo mundo na caminha, envergando seu melhor pijaminha...
... cidade de velhos?! É uma boa pergunta.
Quem trabalha na noite sabe o encurtamento da vida que tal atividade ocasiona a qualquer organismo. Isso também cabe para uma ideia meio ‘romântica’ que boa parte dos(as) leitores(as) têm em relação aos escritores: aquele(a) sujeito(a) que ocupa um cômodo aceso pela madrugada a deitar sobre o papel seu/sua melhor criação literária.
Ó, inocência! Mal sabem que mais de 90% deles(as) acordam sete da manhã para iniciarem suas tarefas às oito. Essa ideia do silêncio da noite para a criação literária é bem típica de quem não tem a Literatura como ofício.
Enfim... ninguém é obrigado a saber de certos detalhes quase sórdidos. Sigamos com a visão romântica do escritor, sua musa, boemias e madrugadas, nem que seja para aquecer corações ou motivar o(a) leitor(a) a sair de casa e adquirir um exemplar de seu mais recente trabalho.
Assim sendo, a madrugada só é boa para quem está na ‘vibe’ do negócio, quem ainda tem energia para a curtição do horário e o encanto das luzes de neon. Para quem está atrás do balcão, ...
Isso, entendemos perfeitamente! E, acreditem... os fregueses até se queixam, mas corroboram o direito sagrado que todo trabalhador tem do descanso.
O que não imaginávamos é que o trem fosse fechar tão cedo.
Caiu na ‘night’, barbas de molho que as cozinhas fecham a uma da manhã.
Aí, já sabe, caro(a) freguês(a), é um tal de “... pergunta lá no posto ipiranga...” que é uma graça! É o último lugar a passar se o desejo é o anonimato (principalmente depois dele!). Tromba-se com todo mundo...
É um arraial caiçara, a Leblon do Manoel Carlos (ou como se diz em Belo Horizonte, a “roça grande”)! Todo mundo acaba sabendo da vida de todo mundo. Ô, inferno! Tem o lado bom: se alguém está devendo para você, já sabe onde cobrar a dívida.
Sem contar com a ‘ziquizira’ de uma hoste de gente pelo estacionamento com ‘long-necks’ na mão: bebem até a gravata do garçom! Numa boa taverna, estariam lambendo a rolha.
O lance funciona nas vontades do encontro e da fome: “Tô morta de fome”. “Eu também”. “Tu tá onde?!”. “Tô na praia”. “Fica aí que eu passo de carro. Vamos comer alguma coisa”. “Quer chocolate?!”. “Quero!”. “Então, faz como?!”. “Fica parado aí na esquina que eu te pego”.
Guardem o detalhe do chocolate: em algum momento ele será útil.
Primeira parada no Havaí-Cinco-Zero: trampo infernal para se achar uma vaga de estacionamento. OK, vaga encontrada, deixa-se o veículo e assim que se chega ao estabelecimento em questão, vem a notícia: “a cozinha já fechou”.
Volta-se para o carro: arrisca-se um passeio pelos arredores de Saint Marteen, uma espécie de outrora paradisíaco Havaí dinamarquês. Uma breve contemplação na pracinha das crianças, dos cachorros e dos casais de namorados, embica-se na Maria Máximo até a avenida.
A noite prometia, aquele “Colours of Nature” no radinho do carro, Ibiza lounge style, “... se melhorar, estraga...”. “Não, pera”...
O veículo aborda o Honolulu de canal: espanto! Tudo escuro, apagado! Pelos cálculos, as cadeiras foram para cima da mesa em torno de meia-noite! Ai, ai, ai...
Segundo estacionamento, um bar de peixe na esquina. Porta adentro e a indagação ao garçom: “A cozinha tá funcionando?!”. Um doce para quem souber a resposta...
Acabou o romance! De volta para o carro com o estômago na testa, nem pensar em roubar beijo! Lembram-se daqueles chocolates do diálogo acima?! Uma forte impressão de que a fina arte de Marco Pierre White se reduziria a barras de um areado de famigerada multinacional suíça.
Como nossa orla não nos abandonará (jamais!), o veículo apontou para o melhor da culinária escocesa: um dois andares mais desmontado do que Ministério da Cultura. Um terceiro sanduíche feito por alguém com ódio da própria existência: torradinho, o pão, mais queimado do que o presidente da República.
Valeu a noite?! Claro que valeu: pela companhia, pelo encanto e pela cumplicidade.
Contudo, para quem curte uma “magia ao luar”, bons romances com generosas doses de “fotossíntese lunar” noite afora, já se é possível cantar a musiquinha: “... dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial, cebola e picles, num pão com gergelim...”.

Tudo porque a maldita da cozinha já está fechada...


Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO

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