Thursday, September 28, 2017

O JALECO E O HAMBURGER (uma crônica de Marcus Vinícius Batista)

ilustração: Osvaldo DaCosta 


Ariovaldo vestia todos os equipamentos de segurança para um trabalho de poucos riscos. Usava capacete branco, comum na construção civil, calça camuflada modelo militar, botas sete léguas, camisa escura e jaleco, além de luvas de borracha. Em silêncio, ele estava sozinho no combate. O exército de um homem só.

Embora veja como coletiva sua responsabilidade profissional, Ari prefere agir por si mesmo. Ele não consegue lutar em grupos. Prefere fazer o serviço isolado. Assim, o controla. Garante a eficiência, sem palpites de subordinados ou chefes! Não se importa com os comentários; afinal, comunica-se discretamente e transpira vergonha. Conversa? Apenas o necessário, pois o trabalho é infinitamente mais importante do que jogar palavras com qualquer um. Pode ser alguém que passa apressado. Pode ser alguém que trabalha por ali e o vê duas, três vezes por semana.

Depois de alguns segundos de reflexão, Ari se abaixou e recolheu um punhado de folhas. As luvas de borracha servem para isso: protegê-lo da água suja que se move lentamente na sarjeta. Abraçou, então, três caixas de papelão, que serviram para embalar cosméticos na farmácia em frente. Andou mais cinco metros e recolheu quatro caixotes de madeiras, daqueles que saíram do Ceagesp e encontraram destino final (até a chegada de Ari) no ponto de venda, um supermercado de bairro.

Aquele sujeito, de 30 anos, não é parte do mapa. Muda o relevo das imediações da Igreja da Pompéia, bairro nobre de Santos, mas não recebe o crédito. Para ele, crédito existe para quem tem os documentos do governo. Nem se parece com dinheiro. O trabalho dele é exatamente transformar em dinheiro mercadorias com ciclo encerrado na economia cotidiana, miúda até.

O jaleco atrai os olhares, mas afasta as aproximações curiosas. Preto, traz em verde fosforescente: agente ambiental. Esta é a missão que Ari impôs a si próprio. O dinheiro é conseqüência; o que o mantém animado é a mudança de cenário, a limpeza de um pedaço da praça, onde trabalhou por horas em mais um sábado de chuva.

Todo o material recolhido vai parar em uma carroça amarela, daquelas padronizadas e vistas – a desigualdade invisível – na rotina urbana. A carroça, organizada em compartimentos, é a casa e local de trabalho do agente ambiental. Ali, estão alimentos estocados, roupas de dormir, utensílios domésticos e os materiais que serão revendidos.

A chuva era contingência. Ari não diminuía o ritmo. O capacete, além da segurança, servia como improvisado guarda-chuva. Quando achou que o expediente terminara, com a carroça ajeitada, Ari esbarrou em um copo plástico à beira da calçada. E mais: outro copo boiava na água negra da sarjeta.

Ele balançou a cabeça negativamente e reclamou de que aquela tarefa parecia sem final. Foi à carroça, apanhou uma vassoura piaçava e varreu a água para o bueiro. Os copos foram parar na cestinha de lixo amarrada ao poste. Como alguém a três metros da cesta jogava dois copos no chão?

Ari não percebeu que era observado. Veio conversar com a objetividade dos diálogos de todo dia. E bombardeou com perguntas diretas:

- Eu peguei uma caixa de hambúrguer no lixo do supermercado. Venceu ontem. O que você acha? Tem problema?

Não tive tempo de responder. Ele se encarregou de completar o que poderia ser uma conversa:

- Olha, eu acho que não. Um dia só. Tenho a frigideira e o óleo. Você pode me ajudar a comprar o pão?

Com o dinheiro na mão, agradeceu e, quando ensaiava ir embora, notou que a praça precisava ser limpa novamente. O soldado verde não tinha munição para mudar a rotina da rua Euclides da Cunha. A produção de lixo era maior do que seu limite físico ou sua preocupação coletiva. Ao olhar para ele, fechado numa consciência ambiental particular, preferi não perguntar o porquê da vestimenta. Ele poderia se ofender diante de tamanha incompreensão.


(publicado originalmente em 31 de Outubro de 2008)

Marcus Vinícius Batista
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros),
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015,
e mantém uma coluna semanal
no Boqueirão News
que é aguardada com avidez
por sua legião de leitores.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
para republicação no BAÚ DO MARCÃO.

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