por
Luiz Mendonça (de Lisboa) para
Estreia-se hoje um filme caseiro de guerrilha, disruptivo e inconformado, que ataca o coração do nosso comodismo tão século XXI. É uma obra que vai à luta, que não tem medo de sujar as mãos e que se apresenta profundamente implicada na realidade que retrata. Visão simultaneamente satírica e horrífica do mundo sentimental. Retrato diabólico de we, the people que nos faz rir e gritar – no seu clímax conseguimos fazer essas duas coisas ao mesmo tempo. Com um riso estampado no rosto, gritamos: socorro! Gritar à gargalhada assim, dando uso à exclamação que Darren Aronofsky colocou no título para assinalar tanto a extensão do gesto – linguagem alegórica de extrema lucidez e bárbara violência – como o alcance deste filme-grito – um vírus áudio/visual que estranha e entranha, não cessando de nos trabalhar por dentro bem para lá das luzes da sala voltarem a acender. Fica já a mensagem neste parágrafo introdutório: apoie o cinema americano, o cinema americano com tomates, e vá ver Mãe! (2017).
Ao
contrário do que se tem dito e escrito, não há nada em Mãe! que sucumba ao
“delírio pelo delírio” ou a um auto-complacente capricho ou exercício de
vaidade do seu realizador. Nem tão-pouco quer este filme baralhar as cabeças
dos pobres espectadores. Entenda-se: o filme é bárbaro, mas o cinema que o
fabrica é de uma acuidade e lucidez notáveis. Portanto, não, este não é um
exercício cheio de “pontos de interrogação” ou “what the fucks”, como se tem
vendido. O filme está, sim, repleto de pontos de exclamação. São eles que vão
pontuando, em crescendo, uma parábola sobre a – não “uma”, mas “a” – brutal saga doméstica de todos nós, os vivos.
Começa, aliás, por ser um muito concreto retrato da sacrossanta instituição
social chamada “casa”. A casa como house e como home. E como corpo. Do quê ou
de quem propriamente? De uma relação heterossexual branca mais ou menos
exemplar: ele, por Javier Bardem, ela, por Jennifer Lawrence. Um casal-modelo
habitando uma casa isolada do mundo que, muito especialmente, a doce esposa preserva
com todo o amor do mundo, pintando ou repintando as paredes, mobilando ou
adornando os quartos… Cada divisão é o espelho de um amor cristalino.
O
que acontece, no entanto, é que a câmara de Aronofsky entra de rompante pela
porta da frente. Não avisa ou pede licença. Simplesmente, entra por ali
adentro. E é mal educada. E estilhaça o que era cristalino no amor. O filme
começa verdadeiramente aqui, na sua má educação. A saga matura-se em pleno acto
de invasão. Invasão da câmara dentro da casa, mas também das pessoas que a vão
tomando inopinadamente até ao momento em que a real proprietária já não
conseguir dar conta do recado sobre quem está onde, a fazer o quê. E, pergunta
inquietante que se agarra à pele, também a nossa de espectadores impreparados
para tamanha ousadia: para quê tudo isto? Para quê toda esta… celebração
diabólica? O terror, como se sabe, partilha o mesmo campo semântico da palavra
território. A administração do terror é, enfim, a administração do território.
A câmara de Aronofsky teoriza sobre esta coincidência semântica. Casa
(house/home) como corpo, corpo como casa do mais… perfeito amor.
Esta
ideia de que estamos sós, entregues aos nossos medos pré-fabricados – pelos
media -, ocupa, em pleno, esta fábrica de tudo, este circo terrífico que é a
casa de Lawrence e Bardem neste filme de puta madre de Darren Aronofsky.
Desde
o início, Mãe! fez-me recordar um cartoon. É a história do homem de gengibre na
sua casa de gengibre. Ele grita porque não sabe se a casa é feita dele ou se
ele é feito da casa. A casa e Jennifer Lawrence têm o mesmo tipo de relação.
Por isso, gritamos: socorro! Já viramos em Black Swan (Cisne Negro, 2010) como
Aronofsky é capaz de fabricar um terror localizado na carne, mas é aqui que ele
filma a sua grande “metamorfose”, a meio caminho entre a carne e a parede,
entre o sonho capitalista – a casa como o paraíso de todas as comodidades – e o
terror descontrolado da criação – Bardem interpreta um poeta martirizado, que
não consegue escrever, que não consegue foder.
O
que se passa é que Mãe!, dividido em dois grandes blocos, é em si mesmo um
filme que se transforma na sua própria pele. O que assinala definitivamente a
mudança – de pele, claro – é a entrada em cena de Kristen Wiig. Para os
cinéfilos mais atentos, por exemplo, apreciadores das comédias de Paul Feig, a
aparição de Wiig é a mensagem mais eloquente sobre o que muda. No primeiro
bloco, temos o registo horrífico, de home invasion, devedor de Repulsion
(Repulsa, 1965) e The Strangers (Os Estranhos, 2008); o olhar implacável do
matrimónio e da maternidade, algures entre Rosemary’s Baby (A Semente do Diabo,
1968) e Possession (Possessão, 1981); um princípio de reflexão sobre o
isolamento e a natureza perversa da criação vizinho de Un tranquillo posto di
campagna (Um tranquilo lugar na província, 1968); e a desfaçatez extrema que
nos mordisca a alma tanto quanto… esse verdadeiro naco de cinema anarquista
chamado Killer Joe (2011). No segundo bloco, nomeadamente quando Wiig entra em
cena, acresce a mais exclamativa comédia própria de uns Monty Python salpicada
pelo body horror de David Cronenberg.
Disparando
para todos os lados, o delírio – um delírio audaz, incisivo, controlado, nunca
vaidoso e aleatório como se tem bradado – toma conta da casa e transforma-a num
circo que faz troça das mais variadas representações de convulsão, de
destruição e de guerra que preenchem, em zapping, os ecrãs dos nossos Iphones e
televisores. É uma mass mediática orquestração do horror em plena casa familiar
– havíamos visto algo assim nos filmes de Kleber Mendonça Filho. Esta casa é a
nossa casa, a do filme e a de Jennifer Lawrence – já a percorremos tanto e tão
intensamente até aí que, quase por osmose, ela passou a ser parte de nós. É
aqui que Mãe! se constitui como um cocktail molotov arremessado contra as
nossas mais cristalizadas expectativas.
A
torrente de situações é de tal ordem que perdemos as nossas coordenadas. Apesar
disso, sabemos muito bem onde estamos fisicamente, tal como sabemos
perfeitamente que estamos numa saga sem fim, e sem redenção. Mas é só por isso
que Mãe! grita? Não, até porque a grande revelação está no começo, no começo
antes do começo do terror, o que marca a entrada na casa dos “estranhos”. É aí
que aparece o tema do acto poético como acto de destruição e renovação. O filme
deleita-se com a ideia de fim e, por isso, o fim é o começo e o começo é o fim.
Como Lawrence perdida na sua própria casa – desapossada do que é seu.
Lembra-se
o leitor de Luis Buñuel e da mensagem escrita no quadro da sala de aula em Las
Hurdes (As Hurdes: Terra Sem Pão, 1933), esse documentário que o espanhol
filmou e montou como se fosse um filme de horror? “Respetad los tienes ajenos.” Mãe! exclama esta lição também. E à sua maneira põe o dedo na ferida, numa
parábola política audaz, no que diz respeito às nossas fobias pelo “lugar do
outro”, por aquilo que não controlamos e que nos entra em casa, pele adentro.
Esta ideia de que estamos sós, entregues aos nossos medos pré-fabricados –
pelos media -, podia pertencer a uma fábrica de nada, mas ocupa, em pleno, esta
fábrica de tudo, este circo terrífico que é a casa de Lawrence e Bardem neste
filme de puta madre de Darren Aronofsky.
MÃE!
(Mother!, 2017, 121 minutos)
Roteiro e Direção
Darren Aronofsky
Elenco
Jennifer Lawrence
Javier Bardem
Ed Harris
Michelle Pfeiffer
Domhnall Gleeson
Kristen Wiig
Brian Gleeson
Jovan Adepo
Stephen McHattie
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