Passava
o dia com Mariana, um bebê de seis meses, na sala do retiro, em Nazaré
Paulista. À noite, dormíamos no Instituto Ipê, do outro lado da estrada de
terra. Quando ela descansava durante a tarde, eu aproveitava para arrumar
alguma distração, ali mesmo pela casa principal.
Os
colegas só se encontravam para as refeições, numa cozinha comunitária,
vegetariana, onde me acabei de comer carne de soja. Mais tarde, depois das 22
horas, professores de Educação Física contrabandeavam guaraná sem gelo para
suprir as carências da cidade grande.
Descobri
a biblioteca no andar de cima, uma espécie de marquise, durante um dos cochilos
da Mari. Passei pelas estantes e achei uma preciosidade: “No ar rarefeito”,
escrito pelo jornalista norte-americano Jon Krakauer.
Ele
é um dos melhores repórteres da atualidade. Preciso, meticuloso, preocupado com
o humano em suas narrativas. Krakauer é autor de “Na Natureza Selvagem”, que
virou filme sob a direção de Sean Penn e concorreu a dois Oscars. No ano
passado, ele publicou “Missoula”, nome de uma cidade nos Estados Unidos que
simboliza a cultura do estupro e sua impunidade.
Comecei
a ler “No ar rarefeito” na mesma hora. Aproveitava todos os sonos da Mari para
devorar a história da expedição ao Everest, que resultou em 12 mortes, no
caminho de volta, após alcançar o topo. Krakauer é um jornalista especializado
em montanhismo, escreve para publicações como a revista Go Outside e,
(in)felizmente), estava na expedição, contratado para escrever sobre a
mercantilização das escaladas. O livro dele se tornou um clássico da literatura
de aventura.
Por
isso, o repórter pôde contar, com riqueza de detalhes, as disputas, as
fragilidades, as fraquezas, a generosidade, a solidariedade e os medos dos
alpinistas, todos vítimas – fatais ou não – de uma tempestade.
No
domingo, a visita acabou e eu não tinha terminado o livro. O que deveria fazer?
Devolver “No ar rarefeito” à biblioteca comunitária, administrada por todos,
sem funcionários e viva pela confiança de seus frequentadores? Poderia levar o
livro pra casa? Como devolver depois, se nunca mais voltaria à Nazaré Paulista,
o que de fato aconteceu? Ou esperar para comprar a obra em Santos, com o risco
de não encontrá-la? Essa história faz 14 anos, e não havia o hábito ou a
estrutura para compras pela Internet.
Tentei
localizar um responsável pela biblioteca, mas o espaço pertencia a todos, foi a
explicação que ouvi. Não tinha com quem justificar o arrendamento literário.
Escolhi o silêncio e tomei uma decisão.
Entre
a curiosidade sobre o restante da história e o empréstimo sem autorização,
entre o amor aos livros e a irritação de quem soube do sumiço, entre a promessa
de achar um jeito de devolvê-lo e a acusação de furto, preferi levar o livro
comigo. Coloquei na mala e, no dia seguinte, retomei a leitura sem remorso,
culpa ou dúvida.
A
reportagem de Krakauer é brilhante. Não me arrependo. Conclui a leitura em mais
dois dias. Fui ao Gonzaga para tirar a prova de consciência. Nenhuma das três
livrarias tinha o livro no estoque. Uma encomenda poderia levar mais um mês.
Resolvi
devolver o livro pelo Correio. Colocá-lo numa caixa e despachá-lo seria
impessoal, grosseiro, contrário aos princípios de igualdade e respeito pregados
pelo retiro em Nazaré Paulista. Tinha certeza de que não perceberam o
sequestro, mas ficaria com a consciência pesada. Sempre cuidei muito bem dos
livros emprestados, assim como reclamo de quem desaparece com obras minhas.
Escrevi
uma carta para o pessoal do retiro. Não sabia a quem endereçar, mas procurava
explicar a situação. Agradeci pelo empréstimo, disse que me senti acolhido
naquele final de semana, pedi desculpas pela falta de aviso prévio e descrevi,
sem delongas, minhas impressões sobre o livro, que recomendava com veemência.
Dobrei
a carta, envelopei e coloquei dentro da caixa de Sedex. Mandei o pacote para o
retiro e esperei. Recebi o aviso de envio e esperei. Confirmei a entrega e
esperei. Esperei.
Sempre
tive curiosidade de saber se “No ar rarefeito” escalou a serra e as estantes do
retiro, em Nazaré Paulista. Assim como eles nunca me responderam, eu nunca
voltei lá.
Ao
ler os novos livros do Krakauer ou reler “Na Natureza Selvagem”, penso na
devolução pelo Correio. Outro dia, vi um exemplar numa livraria do Gonzaga. Deu
vontade de comprá-lo.
Em
tempo: ganhei de minha mulher, Beth, o livro de presente, na antevéspera do Dia
dos Pais. A releitura, desta vez, durou uma semana.
(publicado originalmente em 30 de Janeiro de 2017)
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros),
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015,
e mantém uma coluna semanal
no Boqueirão News
que é aguardada com avidez
por sua legião de leitores.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
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