Monday, June 15, 2015

LUA NOVA PEDE UM LIVRO DENSO E INTENSO. LEIA "VOZ SEM SAÍDA" DE CÉLINE CURIOL



Tem certos livros que a gente compra sem saber exatamente porque comprou. Depois esquece na prateleira da estante por anos, também sem saber porque. Então, um belo dia, esse livro meio que sorri enviesado para você, daí você o tira da estante, começa a ler, fica encantado com o altíssimo gabarito artístico tanto da autora quanto do romance, e, quando termina, sai se perguntando que diferença aquele livro teria feito em sua vida se você o tivesse lido tempos oito anos atrás, quando o comprou.

Acabo de ler "Voz Sem Saída", romance de estréia da escritora francesa Céline Curiol (Editora Nova Fronteira, 2006, facílimo de encontrar na Estante Virtual, a preços bem camaradas), que arrancou elogios rasgados de Paul Auster na ocasião de seu lançamento, a ponto dele insistir com seu editor que, se comprasse os direitos para editá-lo nos Estados Unidos, ele, Auster, escreveria o prefácio. Seu editor topou, e em 2008 sua tradução, "Voice Over", chegou às livrarias americanas, agradando em cheio à legião de leitores de Paul Auster.

É fácil entender o que tanto agradou Paul Auster na prosa de Curiol. O universo temático dos dois é basicamente o mesmo: as relações difíceis e às vezes impermeáveis entre homem e mulher, o anonimato cruel das grandes cidades e a dificuldade em se sentir vivo num mundo em que há cada vez menos espaço para o indivíduo. Mas por mais que todos esses temas são comuns aos dois, ver uma mulher trafegando por esses temas de forma tão destemida deve ter fascinado Auster. Quem conhece sua obra, sabe que, para ele, é muito mais fácil mergulhar na mente de um cachorro -- como fez, de forma brilhante, em "Tibuktu" -- do que na mente de uma mulher, como tentou fazer em seu filme "Lulu On The Bridge".

Céline Curiol é uma escritora muito vigorosa. Não traz absolutamente nada do vanguardismo estéril do nouveau roman francês. Sua investigação na alma humana está muito mais próxima de Albert Camus e Arthur Schnitzler, mas seu ponto de vista feminino faz toda a diferença. Não hesita em mergulhar fundo em rompantes existencialistas  por ser francesa, mergulha fundo num rompante existencialista, já que isso é praxe nas artes de lá. Já americanos tendem a ser um pouco parcimoniosos em relação a isso.
Mas as semelhanças entre os Auster e Curiol param aí. A personagem dela é uma locutora de Gare du Nord, uma estação de trens em Paris. Seu nome, desconhecemos. No entanto, logo fica claro que sua voz onipresente carece de uma vida interior. É, de certa forma, uma voz quase desencarnada.  Apaixona-se obsessivamente por um homem que tem um envolvimento com outra mulher, e não consegue relacionar-se com ele. Sente a felicidade e a aflição das pessoas nas chegadas e partidas na Estação, mas não tem como interferir nelas, ou usufruir delas. É como se vivesse num limbo. 

Daí, num ato de quase desespero, sai pela noite da cidade em busca da vida que falta a si própria, sempre atrás da beleza, da emoção e de algum tipo de aventura. Obviamente, o que ele encontra vai bem além, ou bem aquém disso. Cai nos braços de desconhecidos, todos muito estranhos -- o que incluí um traficante do Norte da África, um sadomasoquista que fugiu de um Hospital Psiquiátrico e um travesti que faz shows em boites da cidade. E então, finalmente, consegue o que queria desde o começo: aproximar-se do homem que ama, ainda que de uma maneira pouco recomendável e nada romântica.
Esta descida ao Inferno, cercada desse elenco assustador de criaturas da noite, é narrada em terceira pessoa por Curiol usando frases curtas, que sempre privilegiam a tensão ao climático, e a ação à reflexão. Não julga sua personagem em momento algum, mas demonstra um carinho enorme por esses anjos caídos na noite parisiense. E consegue preservar um ponto de vista emocional feminino que, de certa forma, acaba sendo o grande diferencial de sua narrativa. Pois é justamente no detalhamento delicado e obsessivo das cenas que sentimos a aproximação carinhosa de Curiol por sua personagem sem nome e sem rumo.

"Voz Sem Saída", foi o único grande sucesso editorial internacional de Céline Curiol. Seus três romances seguintes não tiveram a mesma sorte, apesar de bem recebidos pela crítica no mundo inteiro. Mas, infelizmente, o meio editorial é assim mesmo: sucessos artísticos raramente vem acompanhados de reconhecimento do público. 

O importante é que, quase dez anos depois de sua publicação, "Voz Sem Saída" não perdeu nem um pouco de seu impacto, e permanece como um intenso e impactante "walk on the wild side" parisiense.
      





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