por Carlos Cirne
para COLUNAS E NOTAS
Na boleia do caminhão/casa, que divide com seus companheiros de estrada, Iremar (Juliano Cazarré) vislumbra um futuro diferente de seu cotidiano de manejo de bois, nas vaquejadas do Nordeste brasileiro. Almeja desenhar e produzir roupas femininas, sofisticadas e sensuais. E não, este não é mais um personagem homossexual do cinema brasileiro.
Pelo contrário. Iremar é um dos vértices deste polígono familiar, formado por Galega (Maeve Jinkings) e sua filha Cacá (a surpreendente Alyne Santana), mais os peões Negão (Josinaldo Alves) e Zé (Carlos Pessoa). À equação acrescentem-se as figuras de Júnior (Vinícius de Oliveira) e Geise (Samya De Lavor), e está completo o núcleo desta estranha fábula.
Estranha porque põe em cheque praticamente todo o imaginário da vida na estrada das personagens. Galega é forte o suficiente para dirigir e consertar o caminhão, Iremar maneja com destreza bois e agulhas – além de preferir um bom perfume Azarro a uma colônia genérica -, Junior cuida de seu cabelo com um capricho impensado – com direito a chapinha e tudo – e Geise é um misto de vendedora de cosméticos e guarda noturno, mesmo estando grávida! E tudo isso sem falar no grande trunfo do filme, a garota Cacá, dona da língua mais afiada deste lado do Nordeste. Alyne Santana, premiada (merecidamente) no Festival do Rio como Atriz Coadjuvante, dá vida a uma criança adulta, birrenta e sem papas na língua, que se coloca em pé de igualdade ao restante do elenco, todos muito bem, diga-se de passagem.
O roteiro, de autoria do próprio diretor, Gabriel Mascaro (de “Ventos de Agosto”), recheado de humor e deliciosos diálogos, dá chance de que se vislumbre uma mudança que se apresenta na região do semiárido, com um polo de confecção de roupas se instalando na região e modificando as relações profissionais ali estabelecidas. E coloca isso de modo a questionar qual o real alcance de um sonho.
Tudo isso emoldurado por uma bela e delicada fotografia, também premiada, de Diego García. Aliás, na trilha dos festivais internacionais, o filme já vem com prêmios e menções nos festivais de Adelaide, Hamburgo, Nantes, Toronto e Veneza, além de quatro prêmios no Festival do Rio 2015 – melhores Filme, Roteiro, Atriz Coadjuvante e Fotografia.
Surpreendente. Não perca!
por Ailton Monteiro
para PIPOCA MODERNA
Apesar de ser um aspecto da cultura popular, que coexiste com shows de bandas de forró, a vaquejada não é muito bem vista por quem vê crueldade na brincadeira de laçar o boi e fazê-lo ir ao chão. De fato é, mas também não se pode negar sua existência, nem perceber o quanto se trata de um tipo de negócio que movimenta uma quantidade significativa de pessoas, principalmente nas cidades do interior do Nordeste.
“Boi Neon”, o novo longa-metragem de Gabriel Mascaro, não só trata do assunto, como tem a ousadia de mostrar a vida das pessoas que atuam em seus bastidores, personagens que não passariam de figurantes na lógica de qualquer outro filme convencional, uma vez que o cinema costuma privilegiar quem fica sob os holofotes ou tem uma história de vida mais ligada a uma trajetória de sucesso.
Mascaro inverte também a lógica de gênero, evitando mostrar um vaqueiro com os estereótipos mais comuns. Iremar, interpretado por Juliano Cazarré (“Serra Pelada”), trabalha nos currais, sendo responsável por limpar o rabo do boi e prepará-lo para os peões do espetáculo. No entanto, ele sonha em trabalhar com confecção, especialmente feminina. Até tem uma máquina de costuma bem simples e monta seus manequins a partir do que encontra no lixão. E convive com uma mulher que também foge ao estereótipo feminino, Galega, a mãe solteira vivida por Maeve Jinkings (“O Som ao Redor”), que dirige o caminhão da trupe.
Como já havia mostrado em seu trabalho anterior, “Ventos de Agosto” (2014), Mascaro demonstra uma obsessão pelos corpos, seja do homem ou da mulher (e, no caso de “Boi Neon” também dos animais), e muito da força do filme vem do modo como ele visualiza esses corpos. Algumas cenas, porém, podem até ser consideradas fortes, levando em consideração como o cinema brasileiro vem se domesticando desde a década de 1990, com a chamada retomada.
De fato, o cineasta pernambucano inclui em seu filme imagens explícitas de sexo (com direito a membro em ereção) e não hesita em mostrar uma cena com um cavalo que certamente vai dar o que falar durante e depois das sessões, até por ser também engraçada. Mas apesar de se destacar dentro da estrutura narrativa, essas cenas não são feitas com um intuito sensacionalista, mas para mostrar os corpos como algo natural, ainda que momentos íntimos, como o sexo, o banho e a depilação, sejam considerados de natureza privada.
Além da naturalidade com o trato do corpo, também pode causar estranheza ao grande público a estrutura pouco convencional da narrativa, que foge ao tradicional formato “introdução-desenvolvimento-conclusão”, embora esses elementos estejam presentes, mas de uma maneira mais moderna, por assim dizer. Mascaro privilegia o recorte de determinados momentos das vidas de seus personagens, e lhes dá profundidade.
A força de cada cena e diálogo do filme, desde as simples conversas de Iremar com a garotinha que não tem contato com o pai, com os outros vaqueiros colegas ou com Galega, é captada com um senso de realismo impressionante, como já se podia notar em “Ventos de Agosto”, e próprio de um diretor que começou com documentários. Não por acaso, as cenas das vaquejadas se destacam como apropriações de eventos reais. Mas a experiência documental também pode ser traçada em sua opção por focar os bastidores e os personagens menos evidentes das vaquejadas.
É fácil entender porque “Boi Neon” fez tanto sucesso no circuito dos festivais internacionais – foi premiado nos festivais de Veneza, Toronto, Rio, Nantes, Hamburgo e Adelaide, entre outros. Difícil é não ficar encantado com a sensibilidade do filme e a forma extraordinária com que capta a vida de pessoas tão simples.
BOI NEON
(2015, 101 minutos)
Direção
Gabriel Mascaro
Elenco
Juliano Cazarré
Maeve Jinkings
Alyne Santana
Vinícius de Oliveira
Samya De Lavor
Josinaldo Alves
Carlos Pessoa
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