Thursday, January 28, 2016

O SAPO NÃO LAVA O PÉ (por Marcelo Rayel Correggiari)



Desde os primórdios do cinema, em seus mais diferentes formatos, os filmes documentários estiveram ombro-a-ombro com as obras de ficção, sendo a última mais artística e de menor apelo factual. Ora peças de propaganda promovidas por governos e sergmentos sociais, ora noticiários exibidos antes do filme principal da programação, os filmes de informação, noticiários e documentários de uma forma ou de outra sempre estiveram presentes na vida de cinéfilos e fãs da Sétima-Arte.

Os documentários, à época, talvez causasem maior interesse nas salas de exibição sendo uma das poucas fontes audiovisuais de informação. Os cutos de produção desse estilo de cinema também eram razoavelmente baixos: bastavam bom equipamento e repórter cinematográfico familizarizado com os recursos da câmera para que a quantidade de material a ser editado fosse sensivelmente abundante.

Esse mesmo avanço tecnológico cortou o cordão umbilical do documentário com a platéia: a televisão aos poucos ocupava os lares de vários países a partir dos anos 1940 (no Brasil a partir de 1950), providenciando uma linguagem própria pertinente às características técnicas desse, então, novo meio de comunicação. Além das novas possibilidades técnicas para o cinema, o que permitiu aos filmes de ficção vôos nunca antes imaginados, a televisão e o cinema começaram a trocar influências. Uma via de mão dupla que foi benéfica para ambos.

Contudo, tal advento produziu no público de cinema menor prazer nos curtos filmes de reportagem (como o Canal 100, por exemplo) e documentários antes da exibição da película principal. A instantaneidade da transmissão de televisão acabou sendo um desfavor para o filme documentário, que já a partir dos anos 1950 e 1960 passou a flertar com conceitos e aspectos de direção de arte comumente encontrados nos filmes de ficção. O documentário iniciava, assim, seu processo de ser repensado como peça artística, muito além da mera informação.

Os documentários começaram a ser roteirizados a posteriori em relação à coleta de material e já não se era mais possível imaginar uma história contada da mesma maneira. Esses filmes passaram a ter uma voz narrativa pouco usual propriamente, mas condutora das tensões entre os dados e fatos a serem exibidos ao público. O cinema documentário passava a desenvolver uma mapa neural muito mais complexo e, logo, instigante, onde os caminhos e sinapses eram mais flexíveis e móveis.

Entretanto, mesmo com esse avanço artístico dos filmes documentários, o estrago já estava feito. A televisão se tornara entretenimento barato e acessível para as massas, com uma diversidade de seduções que iam do jornalismo ao futebol, passando pelos musicais e programas de auditório. O satélite proporcionou a transmissão imediata dos chamados grandes eventos e o cinema de ficção só não foi para o ‘saco-da-vida-eterna’ por causa dos investimentos vultosos da grande indústria estadunidense que se agarrou no caráter mágico da própria ficção para encantar platéias e não ver tudo caminhar a passos largos para o vinagre.

Com isso, e especialmente no Brasil, durante muito tempo o público de cinema se desacostumou com o filme documentário. Talvez seja ainda comum encontrarmos pessoas cujo interesse ainda não se reverte na compra de um bilhete quando esse tipo de filme está em cartaz. Os fanáticos por essa forma de cinema já não conseguiam sequer lotar uma sala-de-bolso. Aos poucos, graças às iniciativas desses fãs em eventos como o É Tudo Verdade, uma das principais mostras de documentários que temos hoje em dia, mais o espírito de resistência ainda encontrado nos famosos e tradicionais festivais de cinema, o documentário ressurge tão potente quanto às produções de ficção, animações, fazendo a platéia mais uma vez se (re)aproximar desse modalidade de filme.

O cinema como documento já não se estabelece no mundo como uma simples sequência de imagens historicamente importantes com uma quantidade abissal de declarações e depoimentos. A direção de arte nas produções da virada do milênio ganhou o caráter de imprescindível e a fotografia finalmente tornou-se componente importante da linguagem cinematográfica do documentário. Além disso, montagem e edição também se tornaram fundamentais para a intenção da peça documental e artística, sentando à mesma mesa ritmo e tom.


De acordo com esses critérios mais contemporâneos, se fossemos fazer uma lista dos 50 melhores documentários da história do cinema nesses últimos 100 anos, seria impensável a lista dos ‘10 mais’ não contar com o filme Manda Bala, do diretor norte-americano Jason Kohn, lançado em 17 de agosto de 2007, com fotografia de Heloísa Passos e edição de Andy Grieve, Doug Abel e Jenny Golden.

Filho de um empresário argentino e mãe brasileira radicados nos Estados Unidos, o interesse de Jason pelo Brasil nunca passou de alguns aspectos relacionados à cultura artística e música. Entretanto, o futuro cineasta passou boa parte da vida ouvindo histórias do pai sobre o nível absurdo de corrupção em nosso país, além dos indíces anuais de homicídios para lá de escabrosos.

Tudo ia bem até que trombou com o relatório de Jean Ziegler, o enviado especial da ONU ao Brasil em 2001. Na época, o relatório de Ziegler continha dados corroborados posteriormente por declarações polêmicas em entrevistas: "Em um país onde o solo é fértil e rico com clima tropical, passar fome é genocídio"; "Existe uma guerra de classes no Brasil. Quase 40 mil pessoas são assassinadas por ano. Para a ONU, 15 mil é um indicador de guerra".

Nascia, assim, um Brasil para Jason que não era mais um ‘bundalelê’ insosso com musiquetas ora para dor-de-cotovelo, ora para saudar o sol, a prainha e o barquinho. Era um país para lá de ‘punk’, onde a vida vale quase nada e é capaz de produzir aberrações como favelas lado-a-lado de condomínios luxuosos, com um estilo de vida que chega a ser agressivo diante de tanta ostentação.

Na abertura do filme, já é possível saber para que veio Jason Kohn. Logo nas primeiras cenas, um aviso de que o filme não pôde ser exibido no Brasil. A sequência inicial, uma espécie de ‘teaser’ para o conteúdo a ser desbravado ao longo de 85 minutos, conta com cenas intercaladas de vídeos enviados por sequestradores onde as vítimas de sequestro imploram aos prantos para que suas famílias paguem logo o resgate. A proibição do documentário no Brasil, em especial nos primeiros anos de lançamento se deve à coluna-mestre do roteiro do filme.

A parte inicial do documentário começa numa fazenda de rãs. Rotinas de trabalho, criação, alimentação e até abordagens sobre desregulação nutricional dos exemplares, principal causadora de incidentes de canibalismo entre os bichos em confinamento. Até que uma das perguntas feitas por Jason é sobre um escândalo de corrupção envolvendo o ranário, razão pela qual o gerente da fazendo solicita o desligamento da câmera. Entende-se, então, porque o documentário teve sua exibição proibida em território nacional na época em que foi lançado.

A fazenda de rãs está ligada ao derradeiro escândalo da falecida Sudene (Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste), cuja figura principal é/era o senador pelo Pará, Jader Barbalho. Jader havia solicitado à Sudene valor de R$ 9 milhões para a construção das instalações daquele ranário, mas o valor real da obra não passava de R$ 350 mil. A diferença? Poxa! Não me façam perguntas difíceis...

O escândalo naquele ano derrubou Jader Barbalho, então presidente do Senado Federal, num confronto de farpas e dedos-em-riste com o senador Antônio Carlos Magalhães. Pela primeira vez Jason tinha um dado real sobre a terra de sua querida mãe: o Brasil historicamente tinha saído das Capitanias Hereditárias, mas as Capitanias Hereditárias ainda não tinham saído do Brasil.

O desfalque e apelo escandalizante-orgiástico dos meios de comunicação aceleraram privatizações e o sepultamento da Sudene. Mas Jason acertou em cheio: seu filme ganhava a coluna-mestre de disposição das histórias conferidas em Manda Bala. Todas as narrativas, assim, giram em torno do processo de produção e comercialização da carne de rã: desde os viveiros até as danadas devidamente empanadas e crocantes na boca dos famintos apreciadores de distinta iguaria.

Intercaladas com as fases de produção e consumo da carne de rã estão as narrativas que incluem depoimentos de policiais civis da anti-sequestro, vítimas de sequestro (com as devidas orelhas reparadas por habilidosos cirurgiões plásticos), sequestradores, o procurador geral da República, delegados, um empresário abonado sob o nome fictício de ‘Mr. M’, dono de um belo inglês norte-americano, justificando o mercado dos carros blindados e a relevância dos cursos de direção defensiva, além de uma criança sequestrada, em completo estado de choque e pânico, numa gravação em vídeo enviado aos pais para fins de aceleração do pagamento do resgate.

Ah, em tempo: uma entrevista com o próprio Jader Barbalho! Sim, senhor(a)! O documentário oferece dentro do possível, sempre, o direito ao contraditório. Aliás, a evolução da carreira política de Jader, entre empresas de comunicação de sua propriedade e relatos de desafetos do senador, também está presente no documentário. Tudo entre uma caixa e outra de rãs, ora exportadas, ora transportadas para várias cidades de nosso país a fim de atender ao sacratíssimo consumo interno.


Cinematograficamente, "Manda Bala" acerta em dois aspectos. O primeiro está relacionado à direção de fotografia. Escolha certa do equilíbrio de cores, utilização de uma textura dramática na instalação das imagens e perfeito estudo do balanço de luz que aproveita a luminosidade comum em nosso país, mas sem ‘chapar’ o branco ou provendo certa involução dessa qualidade com o avanço do filme. Isso permitiu ao diretor obter mais dramaticidade nas tomadas, como nos testes de tiro contra vidros blindados ou nas macros dos girinos.

O segundo tem a ver com a montagem e edição filme, que beira à perfeição. Sem a irritabilidade comum que ritmos ‘clipados’ possam causar, o passo do filme apresenta o mesmo equilíbrio da fotografia. Acelerado, em certos trechos, mas ainda reflexivo pelos contrastes apresentados no filme. Nesse ponto, Jason Kohn mata a pau! Ele consegue chocar quem assiste ao documentário pela beleza das imagens e mantém a contemplação no nível de uma reflexão bastante forte do conteúdo apresentado ao término da exibição. Em suma, ele consegue prender a platéia num imagético bem longe do ‘arrastado’: nas curvas ele diminui para sentar o pé no acelerador quando os retões se avizinham.

Já vi muitos documentários nessa minha breve vida. Alguns, inclusive, que aparecerão nessa humilíssima Mercearia. Entretanto, não citar Manda Bala entre as ’10 mais’ da história do cinema de documentário é de se suspeitar quem organizou a lista, bem como os critérios. O filme tira qualquer um do lugar. É o exemplo do cinema de documentário como arte. O documento concomitante ao artístico, o artístico a serviço do documento. Igual a sexo com muito tesão, sem cair na prática do coito em ambiente meramente genitalizado: um filme onde o ‘pega’ é tão potente quanto à penetração.

Enfim, a cereja do bolo: imaginem um dos melhores documentários da história do cinema cuja trilha sonora se impõe com canções do movimento Tropicalista! Imagens cuidadas e ritmo brahmiano com trechos inteiros de faixas de ‘Estudando o Samba’, de Tom Zé. Vão se catar Listz e Wagner: sem a menor necessidade de viagra!

Ao final desse filme de 2007, uma constatação, triste, mas tão verdadeira quanto nossos dias atuais: caminhamos, caminhamos, caminhamos... mas não saímos do lugar. Para se repensar uma civilização que se possa chamar de ‘brasileira’: sequer o ‘para casa’ estamos fazendo. O filme se torna atualíssimo, mesmo com esse hiato de quase 9 anos: marcar passo deve ser a vocação (presumo!) do país! Uma nação onde o(a) sofista continua sendo o(a) tal, um inequívoco exercício de retórica e nada de ‘mãos à obra’.

Dizem que se conselho fosse bom, era vendido e não dado. De qualquer forma, vai aqui o meu: se esse filme pintar em Enguaguaçu ou qualquer endereço perto de casa, assistam, assistam, assistam... assistam... assistam!

(P.S. – o senador pelo Pará continua sendo Jader Barbalho)


MANDA BALA
(Send the Bullet, EUA/Brasil, 2007, 85 minutos)

Diretor
Jason Kohn

Fotografia
Heloísa Passos

Edição
Doug Abel (editor senior)
Jenny Golden
Andy Grieve

Produtores
Joey Frank
Jared Ian Goldman
Jason Kohn

Produtor associado
Mário Kohn

Produtor Executivo
Júlio de Pietro

Produção
Kilo Films
Whitest Pouring Films

Pós-produção
Goldcrest Post Production (Nova York)
Nuncle (design e animação)


inédito nos cinemas e em dvd no Brasil
consta do cardápio da NETFLIX



Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e é o mais novo colaborador de
LEVA UM CASAQUINHO

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