1. O Bairro
Divisa é aquilo que separa uma coisa da outra. A alegria da tristeza. A ética da safadeza. O morro da cidade. O samba do pagode.
Na Baixada Santista, Divisa é aquele pequeno e simpático bairro que, em vez de apartar, une Santos a São Vicente. No final dos anos 60, porém, a Divisa fazia bem mais do que isso. Ela unia também a classe média e média baixa do pedaço à classe “média média” paulistana que, graças à explosão imobiliária e ao FGTS, se apossara dos milhares de modestos apartamentos de temporada que o bairro oferecia.
Ali, conviviam em paz e harmonia, manicures e peruas, estivadores e aposentados, ratos de praia e honestos pais de família, desinibidas em geral e lavadeiras, malandros e estudantes, surfistas e mulheres cigarras em férias com os filhos, dançarinas de boite e gatinhas, músicos e comerciantes, além de muitos outros tipos que compunham a variada fauna local.
Unida pelo bairro, toda essa gente dividia o fantástico visual da Ilha Urubuqueçaba e da Pedra da Feiticeira, as ondas do mar e a areia da praia, os bares e restaurantes, como o Caneca de Prata, o Caruzo, o Holliday, as caipirinhas e cervejas sempre geladas das barracas do Alemão e do Mazinho, e do carrinho do Zeca. E, lá pelas tantas, dividia também as suas mazelas e tristezas, as suas esperanças e desejos, os seus corpos brancos e bronzeados, as suas pequenas loucuras de verão. A Divisa era uma festa.
À noite, a grande questão era: será que vai dar praia? Era quase um bordão, tantas vezes era repetida a maior – senão a única – dúvida existencial daquela jovem galera.
De dia, a coisa pegava. Na praia. Um desfile impressionante de mulheres em tangas microscópicas de todos os matizes e padrões decretava que à noite a temperatura iria subir. Pra valer.
O lema da turma da praia, mais do que um conceito, era um modo de vida. Uma levada muito da santista, praiana à beça, e que se expressa fosse em palavras, poderia ser traduzida por algo mais ou menos assim: “Pega leve bicho, que ainda temos muito o que lazer”.
Portanto, pressa nem pensar. Sem essa. A única coisa absolutamente proibida no pedaço era toda e qualquer manifestação de urgência. Fora isso, valia tudo. Ou quase tudo, que respeito era bom, bonito e a patota gostava.
A Divisa era tão gostosa que se alguém, num acesso de bairrismo etílico (entre um chope e uma cachaça Colonial bem gelados), dissesse que naquele pedacinho de chão não faltava nada, que aquele era o lugar mais hospitaleiro do mundo, que era divino, encantador e o escambau, provavelmente todos concordariam. A Divisa era o máximo. Tinha tudo.
Mas, aí, um dia, sem mais nem menos, alguém teve a feliz idéia de fundar uma banda. Isso mesmo, uma banda, bem aos moldes da carioquíssima Banda de Ipanema.
- “Uma banda? Boa idéia!”, disse outro.
Aí, pintou o palpite feliz. Definitivo.
- “Que tal Banda da Divisa?”
Pronto. Banda da Divisa. Era só o que faltava!
2. A Banda
Você já assistiu a um milagre? Santa que chora sangue e homem que entorta garfo não valem. Milagre é outra coisa. É algo raro, único, inexplicável, que assim que aparece na nossa frente, a gente sabe na hora que está diante de um…milagre!
Quer um exemplo? “Carinhoso”, de Pixinguinha. Outro? A Baía de Guanabara. Mais um? A beleza da Monica Bellucci. Entendeu o espírito do milagre?
Bem, como dizíamos, em Santos, muita gente boa viu um milagre acontecer. E dos bons. Esse milagre foi a Banda da Divisa. Para entender essa história, você primeiro precisa saber direitinho como era o carnaval santista, por volta de1970.
Para começar, a cidade ainda tinha uma coisa maravilhosa chamada “corso”. Ou seja, à tarde e à noite a avenida da praia ficava tomada pelos carros, cheios de gente em cima dos paralamas, dos tetos, porta-las, etc. Valia tudo para brincar no “corso”. Era uma espécie de foliões que realmente sabiam brincar o Carnaval sem ofender ou agredir as outras pessoas.
E, nos dias de desfile das escolas de samba, a euforia não era menor. Aí, tinha início uma disputa saudável pelos “lugares” na calçada do lado da praia e da ilha central.
Ali, homens e mulheres de meia-idade com os filhos adolescentes, turistas em sua maioria, colocavam suas cadeiras de armar na avenida da praia logo pela manhã bem cedinho e ficavam guardando seus lugares até a hora do desfile, que seria apenas à noite.
O resultado era uma festa linda, colorida, alegre e carregada de certa inocência. O espírito de Momo estava no ar, junto com todos os confetes e serpentinas do mundo, assim como o indescritível e delicioso olor do lança-perfume Rhod´Ouro. Bons tempos.
Naquela época, o buraco era mais em baixo. E, acima de tudo, estava a alegria de brincar o carnaval. Santos tinha escolas de samba como X-9, Império do Samba, Brasil e Padre Paulo. Tinha o apito de Nêgo Wilson, a tradição de Dráuzio e família, o talento, a leveza e a malandragem de Graciano, de Jaburú e de uma reserva inesgotável de outros sambistas, ritmistas, carnavalescos e passistas. Era tanta gente boa que dava até para exportar.
A isso devemos somar o incrível sucesso editorial do jornal alternativo carioca O Pasquim, que com sua tiragem de quase 200 mil exemplares semanais (acredite!), espalhou por todo o Brasil um bordão que ficou famoso.
Era uma espécie de chamamento para que a resistência à ditadura se fizesse inclusive pelas vias malemolentes do samba. A máxima decretava: “Um bloco em cada esquina, uma banda em cada bairro”.
Irresistível, a frase pegou. Em toda a parte. E, lógico, em Santos, no bairro da Divisa, onde caiu como um fósforo acesso sobre a já bastante inflamável adolescência do bairro.
Em questão de dias, um grupo de jovens dava por começados os trabalhos de fundação daquela que seria a filha pródiga do pedaço: a incrível Banda da Divisa.
E pelo tanto que fizeram pelo Carnaval da Baixada Santista, seus nomes mereciam estar numa placa de prata. Sem exagero.
Peninha, Vadinho, Cauê, Niger, Tazinho, Betinho, Bola 7, Osni, Genival, Glauco, Oscarzinho, Chico Preto, Carlinhos Pepe, Paulinho Hepatite, Piramo, as irmãs Zilah, Zilca e Zilmar, Dirceu, Zeca, Mazinho, Miltão, Marinheiro, Galego, Dr. Oswaldo.
A estes componentes de primeira hora, vieram juntar-se muitos outros que também deram sua contribuição em ritmo, suor e paixão para o enorme sucesso da Banda da Divisa.
Bitenquinha, Sant´Anna, Bitencão, João Português, Luizinho “Careca”, Cobra, Claudison, Nivaldo, Jair, os dois irmãos “Malacas”, Orlandão, Zézinho, Euzébio “Queridinho” e muitos outros.
Toda essa gente junta botou para quebrar na avenida como poucas vezes se viu. Foram dez carnavais maravilhosos, um mais animado do que o outro. Uma década do mais puro samba e alegria. Um sucesso tão estrondoso que mereceu chamadas e matérias na Rede Globo de Televisão, assim como nas rádios e jornais de Santos, São Vicente e da Capital. Prova disso é que hoje ainda tem gente que jura que leu sobre a Banda no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro. Verdade.
Tudo foi uma festa até que, em fevereiro do décimo primeiro ano, rolou um clima estranho. Como se tivessem previamente combinado, nenhum dos principais responsáveis pela agremiação dizia nada sobre o carnaval já tão próximo.
A impressão que dava é que ninguém mais queria saber da Banda da Divisa. Ou, melhor dizendo, que ninguém de dentro da Banda queria saber da Banda. Pois o povo de Santos e de São Vicente não via hora do carnaval chegar pra ver a Banda passar.
A verdade inconfessa é que não havia mais quem agüentasse enfrentar novamente a maratona insana de trabalho que é botar um bloco como aquele na rua. Haja esforço, paciência e amor ao samba!
Estranho fenômeno. A Banda contraiu uma espécie de virose cujo principal sintoma era a mais aguda e surda rejeição por ela mesma. Ou seja, a Banda não queria mais saber da Banda.
O problema é que o bairro da Divisa, Santos e São Vicente queriam. O povo queria. E a Rede Globo também. E muito. Afinal, onde a emissora carioca iria encontrar – em São Paulo – uma banda com 500 garotas deslumbrantes vestindo tangas minúsculas para exibir no horário nobre?
Infelizmente, a vontade da minoria silenciosa prevaleceu. E assim, sem choro nem vela e nem uma fita amarela por ela, há poucos dias do carnaval de 1981, a tão querida Banda da Divisa desapareceu do mesmo modo como havia surgido: milagrosamente.
Carlão Bittencourt é redator publicitário e cronista,
autor de "Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo dos salões de bilhar de São Paulo,
e escreve toda semana em LEVA UM CASAQUINHO.
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